30 de setembro de 2011

Balboa, a terra e o mar

Em 25 de setembro de 1513, um espanhol de nome Vasco Núñez de Balboa - não o Rocky, fique isso claro - descobria o Oceano Pacífico. Na época, o explorador batizou aquela que seria a maior façanha de conquista espanhola na América de "Mar do Sul". Balboa saiu em um périplo de 30 dias com o objetivo de descobrir o mar de que tanto falavam os indígenas, povo com quem já convivia há três anos, quando fundara o primeiro estabelecimento permanente em terras continentais americanas, Santa Maria de la Antigua del Darién, hoje um local perdido na costa da Colômbia. 

Balboa reivindicando posse do Mar do Sul
Descobrir um oceano é uma proeza e tanto, ainda mais se considerarmos as condições nada convenientes de transporte, sobrevivência e visão de mundo do século XVI. Ainda assim, Vasco Balboa não passa de um ilustre desconhecido da história, uma estátua com pose elegante em Madri, ninho e toilete de pombos com nenhuma consciência cívica. Aliás, destino infeliz é virar estátua de praça. Tais esculturas não são apenas alvo de intempéries e ocasionais descargas de colombas; estátuas são igualmente tristes, grosseiras, desconhecidas aos olhos humanos e ainda enfeiam o cenário. Deve haver um meio mais justo e palatavelmente estético para homenagear figuras históricas no ambiente público; falta-nos apenas a imaginação.

O Balboa descobriu um oceano, não foi para o Guinness por isso e ainda está condenado à solidez e inutilidade de uma estátua para toda a eternidade, ou até que o departamento de turismo da prefeitura de Madri decida removê-lo de lá. Enquanto isso, seus olhos pétreos de vítima de Medusa observam as mudanças de estação e o desfolhar patético das árvores, os velhos a jogar xadrez, os jovens se entregar ao primeiro amor e as crianças a brincar de pique-pega. Estátuas me comovem. Mais do que isso, acendem em mim um sentimento desconfortável de piedade. E de empatia.

Em 25 de setembro de 2010 eu descobria um novo continente denominado blogger e decidia postar minhas elucubrações, não antes de organizá-las em forma de texto razoalmente passível de leitura. O Expresso tem sido, desde então, uma nau incrivelmente ativa, onde embarco sonhos, frustrações, aprendizado e confissões; um meio de transporte muito particular e íntimo que, inesperadamente, conquistou outros passageiros. Durante um tempo, não foi apenas trem e navio, mas bússula. E, então, leitores mais assíduos, ou que conheciam mais de perto o condutor, encontravam aqui os meus ponteiros e as direções para aonde apontavam.

Escrever é uma religião no sentido etimológico mais puro da palavra: liga autor e leitor numa comunhão de ideias em que o pensamento se faz fagulha: começa neste teclado e só se completa e define na tela do seu computador, através de seus olhos, experiência e do destino que você decidir dar às brasas: extingui-las ou  reavivá-las. No terreno mais inóspito de mim, não me perdi porque um fio diáfano, porém resistente, magnetizava os meus pólos mais distantes em consonância com os seus. O que me dá a certeza, afinal, de que toda via é de mão-dupla e de que, sim, o desejo maior de qualquer diário é ser descoberto e devorado por olhos e mentes famintas.

Sempre pensei nesse meio de "transporte" como um oximoro em si mesmo, uma figura mitológica de um corpo e duas cabeças: trem e balão, a terra e o ar. Nunca me ocorreu associar o Expresso a caravelas, como a que Balboa deve ter comandado em direção ao Pacífico. O mar me aterroriza. Sua infinitude e fluidez não fazem nascer em mim a sensação de liberdade, mas uma profunda angústia e um doloroso  sentimento de pequenez, solidão e austeridade. Diante da arrebentação, sinto-me estátua; sou Balboa, paralisado no tempo, a contemplar gaivotas que, em breve, pousarão na ponta do meu nariz sem sequer notar que, por baixo da pedra, há carne e consciência.

Nasci, cresci e passei grande parte da vida em lugares cercados por montanhas. Olhar para o céu e vê-lo entrecortado por rochas e verde, delimitado, portanto, me conforta. Fincar os dedos nus na terra e ouvir o barulho do vento nas árvores: trens e balões. Com estes me locomovo; neles, me encontro. Marés, correntes, sal e toneladas de água são um fardo oneroso demais para que, através deles, tente explorar qualquer novo território. Na mata, há ventania alternada com silêncio. Mas o mar, este não se cala nunca. E o barulho das ondas não me acalma. Petrifica.

O Rio de Janeiro continua lindo, com suas montanhas e praias. Fevereiro e março se foram, abraços vieram e, ainda assim, esqueço que, a poucas quadras daqui, há um mar aberto a quebrar na areia, esperando por mim, pela vida e pelo mundo. Evito a orla, a maresia, o rugido das ondas, o calçadão. Olho para a esquerda e vejo prédios, carros, homens engravatados, mulheres de tailleur, gente de óculos de sol e chinelos de verão; posso viver aqui, delimitando o meu mundo em um raio de cinco quilômetros. Então, num olhar de esguelha para a direita, o anil intenso da água junto ao azul pálido do céu sobressaem de encontro ao vermelho das barracas. Mais cinquenta passos e toco a areia: dois universos paralelos, totalmente intercambiáveis. Isso é assustador.

Sinto ainda mais pelo destino de nebuloso personagem histórico de Vasco Balboa. O capitão não apenas desbravava oceanos, como também descobriu um. Para quem não tem o mar nas veias, isso é um baita acontecimento. Posso até dizer que naveguei bastante desde 25 de setembro do ano que passou, mas vim escondida no porão do navio, metade escravo, metade impostor, entre barris de especiarias cujo aroma me fazia lembrar a terra e esquecer a brisa salobra que inflava as velas. Em terras litorâneas, ainda conquisto o meu terreno, centímetro a centímetro, e vou-me acostumando à dualidade que é sentir o cheiro do mar quando, na memória, o cheiro das montanhas reina, absoluto. Neste cruzeiro, revelo-me por vezes trem,  em outras, balão, raramente barco a vela. E, às escondidas, faço figa para não virar estátua de Drummond, à beira da praia, sem óculos.         

23 de setembro de 2011

pronto, falei

Para Mi, Má, Bi, Lina e todos os meus companheiros de credo e cruz. 


Há alguns meses, em viagem a São Paulo, alguém que havia acabado de me conhecer soprou a pergunta inevitável dos círculos sociais: "Então, você faz o que?". Esse tipo de indagação só faz sentido para falantes de português e, ouso dizer, para brasileiros. Parece-me que palavras como "emprego" e "profissão" são nevrálgicas, quem sabe virulentas, para nós. Já ouvi dizer "com o que você trabalha?", mas, confesso, em raras ocasiões. Das duas, uma: ou o brasileiro espirra à menor menção de labor, ou se sente culpado demais para dizer que possui um. Daí a corruptela tosca "o que você faz?". Como se, a essa pergunta, fosse possível escapar com sandices convenientes como: "corto as unhas dos pés no tapete da sala", "adio compromissos" ou "adoto cães abandonados". Pelo jeito, qualquer coisa, risível ou não, é muito mais interessante do que dizer a verdade, a não ser que a sua seja uma profissão muito descolada, como a de um rockstar, um artista de teatro ou um sommelier.

Era um programa típico de um paulistano típico: pizza. E, entre uma fatia acebolada e outra azeitonada, respondi: "Sou professora de inglês". A decepção era visível nos olhos do meu interlocutor. Tão visível que, de notável, tornou-se palpável, ao ponto de outra pergunta, esta descuidada, vir em seguida: "E você pretende fazer o que depois?". Desnecessário dizer que perdi o apetite. Na ausência de uma resposta adequada para satisfizer a fome voraz de staus social e senso de modernidade dos convivas, tentei explicar que essa é a minha profissão, que não estou nela por comodidade ou atitude simplória e que não tenho intenção de fazer nada diferente depois ou durante disso. Em vão. Certos conceitos são ainda mais nocivos do que preconceitos. Como cracas, grudam-se às naus e, aos milhares, levam-nas, primeiramente, ao ancoradouro; em seguida, ao naufrágio.

Ensino inglês há 14 anos. Nesse meio tempo, cursei um ano de Engenharia, fui à faculdade de Comunicação Social, estagiei três anos em telejornalismo, trabalhei em varejo farmacêutico, tive um filho e fiquei um ano sem saber exatamente quem eu era ou o que deveria fazer. Mas, então, um dos muitos trens em que embarco sem bilhete acabou me trazendo de volta para aonde eu havia começado, há tanto tempo. A estação mudou, o cenário é diferente, a minha mala, mais pesada. No entanto, o meu trabalho é exatamente o mesmo, os alunos ainda tem as mesmas dúvidas e a gramática ainda não sofreu revisões. A diferença é que, hoje, o quadro-branco e o marcador foram substituídos por smartboards e por algo muito bacana chamado multimodality. Cidades e tecnologia mudam, mas o sentimento do professor por vocação é o mesmo. E, para a (in)felicidade geral da nação, idênticos são os narizes torcidos que vemos quando alguém com mais de trinta anos de idade admite ser professor de língua estrangeira não como um "bico", mas como profissão.

Sou relativamente tolerante à imbecilidade da gente que deseja mostrar para o mundo a aparência perfeita e o imaculado verniz social, ainda que, para isso, sua qualidade de vida e a realização pessoal estejam comprometidas ou mesmo extintas. Sob esforço intelectual, entendo a razão pela qual o status faz o mundo de algumas pessoas girar, e não o sentido de vida e a busca por felicidade. Afinal, quem dá a mínima para a metafísica do "ser" e "sentir" quando é tão mais in ter um apartamento bacana com vista mais bacana ainda, um carro à altura, um vasto álbum de fotografias de viagens ao exterior, um celular de última geração, mil amigos no Facebook e, claro, um emprego "digno"? Mas, afinal, o que é um emprego digno? Aquele que atende às suas ambições profissionais, materiais e pessoais ou, ao contrário, a profissão que atende às expectativas dos outros, nas rodas de amigos em happy hours, nos encontros de mães em playgrounds e no intervalo para alongamento das academias...?

Tudo isso tem um leve cheiro de ralo de discurso demagógico e parece vibrar com as cores psicodélicas dos hippies ativistas da década de 1970, mas não é. Dinheiro é bom, necessário e todo mundo gosta. Não pretendo, aqui, fazer um manifesto contra os profissionais altamente bem pagos e, muito menos, contra os bens que os seus salários compram. O que não dá para tolerar é o desrespeito gerado pela desqualificação profissional de alguns e as cracas das ideias pré-concebidas, o peso morto dos rótulos, o olhar de pedantismo de quem se acha mais valoroso (ou valioso...?) porque sabe dançar conforme a música do marketing pessoal. Se é tão cool ser moderno, esclarecido e "antenado", igualmente ou ainda mais bacana seria passar a valorizar pessoas e profissões pelo que são, e não por suas imagens que, como sombras, representam um pensamento pasteurizado, reproduzido e caduco. Assim, não haveria um oceano divisório entre profissões "maiores" e "menores" - para não dizer "boas" e "más" -  mas apenas ofícios, trabalhos que existem justamente porque há gente candidatando-se para eles.

Todo mundo trabalha porque precisa. Se você trabalha apenas porque gosta, então este não é um trabalho, mas um hobby. Congratulations. Ou, então, você é um workaholic, o que, na escala Richter de malef(v)ícios, convenhamos, não causa o mais leve arranhão. Mas, na contramão, há quem trabalhe apenas porque precisa, o que gera, invariavelmente, indivíduos infelizes, frustados e neuróticos, independentemente do número de zeros em seu contra-cheque. Na terceira posição, há os que trabalham não necessariamente porque gostem, certamente porque precisam e, indubitavelmente, para atender às expectativas, próprias ou de outrem, de status social. Na escala Richter de malefícios, ouso dizer que estes, ainda que aparentemente satisfeitos e em harmonia com o cosmos, são tão infelizes quanto os que trabalham apenas porque, do contrário, não teriam condições práticas de subsistência. No frigir dos ovos, tudo não passa de mera questão de sobrevivência: bons vivants trabalham para que sobrevivam as suas consciências; workaholics trabalham para que sobrevivam as suas identidades; desprivilegiados trabalham para que sobrevivam as suas famílias; farejadores de status trabalham para que sobrevivam as suas imagens. E, claro, o seu status.

Não escolhi ser professora para ser milionária e, confesso, ao final da última aula de sexta-feira me vem a certeza de que workaholic não é exatamente a carapuça que me veste. Na escala Richter de status social, a minha profissão, digamos, não abala Bangu. Preciso trabalhar muito para ganhar um salário compatível com as arestas econômicas que aparo, respondo às mesmas perguntas cinquenta vezes por dia e, duas vezes por ano, fico sem voz. Não trabalho em horário comercial e sou, como todo professor de inglês, chamada não pelo nome de batismo, mas de "teacher". Não ligo a mínima ou, para quem ainda não sabe: "couldn't care less". Tenho sorte - e coragem - de trabalhar com o que gosto. Minhas aulas valem mais do que o preço de mercado porque nelas embrulho um desejo real de que os alunos aprendam o que tenho a ensinar e, com isso, sejam mais felizes, mais úteis e mais completos, até porque é assim que, trabalhando com eles, me sinto.

Não tenho ideia de quantas pessoas já estudaram inglês comigo em 14 anos. Lembro o nome de muitos até hoje e os rostos de quase todos, enquanto outros foram apagados pelo tempo e pela memória que, com aquele, vai ficando mais seletiva. Algumas turmas são inesquecíveis - para o bem e para o mal - e todos os alunos com quem ainda mantenho contato chamam-me de "teacher", mesmo que eu não seja sua professora há anos. Alguns vi crescer e amadurecer, outros se mudar para a Inglaterra, outros se casar. Um acabou de ter o primeiro filho; outros já eram pais muito antes de eu pensar em gerar uma criança. Gosto de pensar que o meu trabalho faz diferença não apenas para a minha vida, mas para as vidas dos que convivem comigo em sala de aula. Assim, minha profissão preenche minhas carências profissionais, financeiras e pessoais, e dá sentido à grande parte da minha vida: a labuta. Dizer que a carreira que escolhi me faz feliz pode soar como um clichê sentimentaloide um tanto besta, mas esta é a pura e simples verdade. E, a bem da verdade, a felicidade é bem mais simples e pura do que se pensa. See you later, alligator

19 de setembro de 2011

so obvious...

"O Expresso está às moscas". Sei disso. Mas, é por pouco tempo. Enquanto isso, para aquecer a semana...