23 de setembro de 2011

pronto, falei

Para Mi, Má, Bi, Lina e todos os meus companheiros de credo e cruz. 


Há alguns meses, em viagem a São Paulo, alguém que havia acabado de me conhecer soprou a pergunta inevitável dos círculos sociais: "Então, você faz o que?". Esse tipo de indagação só faz sentido para falantes de português e, ouso dizer, para brasileiros. Parece-me que palavras como "emprego" e "profissão" são nevrálgicas, quem sabe virulentas, para nós. Já ouvi dizer "com o que você trabalha?", mas, confesso, em raras ocasiões. Das duas, uma: ou o brasileiro espirra à menor menção de labor, ou se sente culpado demais para dizer que possui um. Daí a corruptela tosca "o que você faz?". Como se, a essa pergunta, fosse possível escapar com sandices convenientes como: "corto as unhas dos pés no tapete da sala", "adio compromissos" ou "adoto cães abandonados". Pelo jeito, qualquer coisa, risível ou não, é muito mais interessante do que dizer a verdade, a não ser que a sua seja uma profissão muito descolada, como a de um rockstar, um artista de teatro ou um sommelier.

Era um programa típico de um paulistano típico: pizza. E, entre uma fatia acebolada e outra azeitonada, respondi: "Sou professora de inglês". A decepção era visível nos olhos do meu interlocutor. Tão visível que, de notável, tornou-se palpável, ao ponto de outra pergunta, esta descuidada, vir em seguida: "E você pretende fazer o que depois?". Desnecessário dizer que perdi o apetite. Na ausência de uma resposta adequada para satisfizer a fome voraz de staus social e senso de modernidade dos convivas, tentei explicar que essa é a minha profissão, que não estou nela por comodidade ou atitude simplória e que não tenho intenção de fazer nada diferente depois ou durante disso. Em vão. Certos conceitos são ainda mais nocivos do que preconceitos. Como cracas, grudam-se às naus e, aos milhares, levam-nas, primeiramente, ao ancoradouro; em seguida, ao naufrágio.

Ensino inglês há 14 anos. Nesse meio tempo, cursei um ano de Engenharia, fui à faculdade de Comunicação Social, estagiei três anos em telejornalismo, trabalhei em varejo farmacêutico, tive um filho e fiquei um ano sem saber exatamente quem eu era ou o que deveria fazer. Mas, então, um dos muitos trens em que embarco sem bilhete acabou me trazendo de volta para aonde eu havia começado, há tanto tempo. A estação mudou, o cenário é diferente, a minha mala, mais pesada. No entanto, o meu trabalho é exatamente o mesmo, os alunos ainda tem as mesmas dúvidas e a gramática ainda não sofreu revisões. A diferença é que, hoje, o quadro-branco e o marcador foram substituídos por smartboards e por algo muito bacana chamado multimodality. Cidades e tecnologia mudam, mas o sentimento do professor por vocação é o mesmo. E, para a (in)felicidade geral da nação, idênticos são os narizes torcidos que vemos quando alguém com mais de trinta anos de idade admite ser professor de língua estrangeira não como um "bico", mas como profissão.

Sou relativamente tolerante à imbecilidade da gente que deseja mostrar para o mundo a aparência perfeita e o imaculado verniz social, ainda que, para isso, sua qualidade de vida e a realização pessoal estejam comprometidas ou mesmo extintas. Sob esforço intelectual, entendo a razão pela qual o status faz o mundo de algumas pessoas girar, e não o sentido de vida e a busca por felicidade. Afinal, quem dá a mínima para a metafísica do "ser" e "sentir" quando é tão mais in ter um apartamento bacana com vista mais bacana ainda, um carro à altura, um vasto álbum de fotografias de viagens ao exterior, um celular de última geração, mil amigos no Facebook e, claro, um emprego "digno"? Mas, afinal, o que é um emprego digno? Aquele que atende às suas ambições profissionais, materiais e pessoais ou, ao contrário, a profissão que atende às expectativas dos outros, nas rodas de amigos em happy hours, nos encontros de mães em playgrounds e no intervalo para alongamento das academias...?

Tudo isso tem um leve cheiro de ralo de discurso demagógico e parece vibrar com as cores psicodélicas dos hippies ativistas da década de 1970, mas não é. Dinheiro é bom, necessário e todo mundo gosta. Não pretendo, aqui, fazer um manifesto contra os profissionais altamente bem pagos e, muito menos, contra os bens que os seus salários compram. O que não dá para tolerar é o desrespeito gerado pela desqualificação profissional de alguns e as cracas das ideias pré-concebidas, o peso morto dos rótulos, o olhar de pedantismo de quem se acha mais valoroso (ou valioso...?) porque sabe dançar conforme a música do marketing pessoal. Se é tão cool ser moderno, esclarecido e "antenado", igualmente ou ainda mais bacana seria passar a valorizar pessoas e profissões pelo que são, e não por suas imagens que, como sombras, representam um pensamento pasteurizado, reproduzido e caduco. Assim, não haveria um oceano divisório entre profissões "maiores" e "menores" - para não dizer "boas" e "más" -  mas apenas ofícios, trabalhos que existem justamente porque há gente candidatando-se para eles.

Todo mundo trabalha porque precisa. Se você trabalha apenas porque gosta, então este não é um trabalho, mas um hobby. Congratulations. Ou, então, você é um workaholic, o que, na escala Richter de malef(v)ícios, convenhamos, não causa o mais leve arranhão. Mas, na contramão, há quem trabalhe apenas porque precisa, o que gera, invariavelmente, indivíduos infelizes, frustados e neuróticos, independentemente do número de zeros em seu contra-cheque. Na terceira posição, há os que trabalham não necessariamente porque gostem, certamente porque precisam e, indubitavelmente, para atender às expectativas, próprias ou de outrem, de status social. Na escala Richter de malefícios, ouso dizer que estes, ainda que aparentemente satisfeitos e em harmonia com o cosmos, são tão infelizes quanto os que trabalham apenas porque, do contrário, não teriam condições práticas de subsistência. No frigir dos ovos, tudo não passa de mera questão de sobrevivência: bons vivants trabalham para que sobrevivam as suas consciências; workaholics trabalham para que sobrevivam as suas identidades; desprivilegiados trabalham para que sobrevivam as suas famílias; farejadores de status trabalham para que sobrevivam as suas imagens. E, claro, o seu status.

Não escolhi ser professora para ser milionária e, confesso, ao final da última aula de sexta-feira me vem a certeza de que workaholic não é exatamente a carapuça que me veste. Na escala Richter de status social, a minha profissão, digamos, não abala Bangu. Preciso trabalhar muito para ganhar um salário compatível com as arestas econômicas que aparo, respondo às mesmas perguntas cinquenta vezes por dia e, duas vezes por ano, fico sem voz. Não trabalho em horário comercial e sou, como todo professor de inglês, chamada não pelo nome de batismo, mas de "teacher". Não ligo a mínima ou, para quem ainda não sabe: "couldn't care less". Tenho sorte - e coragem - de trabalhar com o que gosto. Minhas aulas valem mais do que o preço de mercado porque nelas embrulho um desejo real de que os alunos aprendam o que tenho a ensinar e, com isso, sejam mais felizes, mais úteis e mais completos, até porque é assim que, trabalhando com eles, me sinto.

Não tenho ideia de quantas pessoas já estudaram inglês comigo em 14 anos. Lembro o nome de muitos até hoje e os rostos de quase todos, enquanto outros foram apagados pelo tempo e pela memória que, com aquele, vai ficando mais seletiva. Algumas turmas são inesquecíveis - para o bem e para o mal - e todos os alunos com quem ainda mantenho contato chamam-me de "teacher", mesmo que eu não seja sua professora há anos. Alguns vi crescer e amadurecer, outros se mudar para a Inglaterra, outros se casar. Um acabou de ter o primeiro filho; outros já eram pais muito antes de eu pensar em gerar uma criança. Gosto de pensar que o meu trabalho faz diferença não apenas para a minha vida, mas para as vidas dos que convivem comigo em sala de aula. Assim, minha profissão preenche minhas carências profissionais, financeiras e pessoais, e dá sentido à grande parte da minha vida: a labuta. Dizer que a carreira que escolhi me faz feliz pode soar como um clichê sentimentaloide um tanto besta, mas esta é a pura e simples verdade. E, a bem da verdade, a felicidade é bem mais simples e pura do que se pensa. See you later, alligator

10 comentários:

  1. Alberto23.9.11

    Olá minha amiga,concordo com você em tudo,ou melhor, quase tudo.Quando você respondeu,você disse: "Sou professora de inglês ".E justamente aí que discordo de você, a resposta certa seria :Sou a melhor e mais bela professora de inglês.Mas como sei que sua modéstia não deixaria você dizer a verdade,estou corrigindo pra você.Sem contar que você poderia ter dito que é uma excelente escritora também!!Abraço !!

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  2. E eu chorei. Porque, né, vivo o mesmo dilema, paradigma, vivo isso aí.
    Uó ter gente no mundo qualificando profissões: ser professor de Inglês é menor que ser whatever they think, ai que nojo, que cansaço dessa gente.
    É preciso bater o pé e dizer: eu tenho uma profissão. Eu escolhi lidar com linguagem e sou orgulhosa disso.
    E sabe em que tudo se resume? Sabe o que sempre digo?
    Se não houvessem professores, não haveriam psicólogos, advogados, médicos, engenheiros, e muita gente que só é o que é hoje em dia porque alguém teve guts, vontade e vocação para ensinar.
    Então pra esses avestruzes que acham o fim ser professor, eu digo: cafona é cuspir no prato que vc comeu.

    Foi mal o desabafo, mas isso pega na minha ferida, no meu coração, na minha vocação de querer que as pessoas aprendam muito mais que uma língua. Somos professores por opção, vamos bem, obrigada.

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  3. André Conforte23.9.11

    Bem, eu sou professor de português... precisa dizer mais? Vejo que se reanimou a escrever, Roberta. Parabéns, não pare.

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  4. Alberto, amigo, sempre bom estar com você por aqui! Obrigada pela presença, pelos comentários, que adoro, e pelos elogios. ABRAÇAOZÃO!

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  5. Mi!!!
    Só uma coisa a dizer depois do seu mais que justo desabafo: Mi P. para presidente! JÁ!

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  6. André, meu querido, pois é. Muda o idioma, permanecem os preconceitos. OBRIGADA pelo comentário. Adoro quando você passa por aqui. Abraço de urso!

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  7. Prirohem14.10.11

    Feliz dia do professor, Roberta Rohen!

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  8. Obrigada, prima linda! Te adoro!

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  9. Só tive "contato" com este texto hoje, pelo visto quase dois anos depois de publicado, mas gostaria apenas de dizer: "I totally agree with every single word". Eu compartilho este mesmo sentimento que você tão bem descreveu!

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