11 de fevereiro de 2011

sobre (s)saltos


Vida a gente leva muito mais no susto e no improviso do que na calmaria da certeza e na bonança dos sentimentos. Isso eu descobri há algum tempo, no olho do furacão do mundo, quando uma onda de desavisos centrifugou meus planejamentos, desejos e ambições. No estado de suspense atávico com que o inesperado selou-me a percepção, não havia diferença relevante entre mim e Dorothy, sendo transportada para o maravilhoso mundo de Oz, na primeira classe de um tufão, o universo conhecido inteiro da menina girando em seu redor, dando um adeus enfurecido para a fazenda no Kansas. Quando o assombro chega para ficar, é compreensível que se comece a ponderar a existência do destino, por exemplo, ou o poder do cosmo, criança caprichosa, a brincar conosco de teatro dos bonecos e soprar as linhas de nossas vidas como bolhas de sabão. Blup! Vão-se as bolhas, ficamos nós, aparvalhados com o descabido que é traçar metas, colecionar valores, almejar situações e ver tudo reduzido a um tombo, à sensação frustrante de que cavalgamos uma montaria sem rédeas, nem cabresto. 

Dia desses decidi abandonar a leitura por um tempo para assistir a um filme que estreava num canal de TV por assinatura. Às vezes até o seu livro preferido acaba sendo preterido, o que parece ser uma sina a qual nada, nem ninguém escapam. Após mil reviravoltas na vida da mocinha, o galã reconquistado, lágrimas derramadas e reencontros no aeroporto, a protagonista afirma, no momento de reflexão do filme de gênero não-acredito-que-deixei-meu-livro-por-isso: "não é maravilhoso que a vida seja um desconhecido constante e a gente não tenha controle sobre o mistério do amanhã?". Eu seria no mínimo desleal comigo mesma se dissesse que achei a epifania da mocinha uma pérola. A bem da verdade, a frase fez meu sangue talhar nas veias. Quer dizer, não é nada maravilhoso tomar um susto atrás do outro na vida. E não ter controle algum sobre o amanhã não é apenas misterioso, mas assombroso. Não seria simplesmente balsâmico se a vida fosse tão previsível quanto um desses filmes de sessão da tarde?

Mas então lembrei-me de que não gosto de ser contraditória. Pelo menos não a ponto de me sentir uma fraude em meus próprios domínios. Sempre escrevi sobre a necessidade da surpresa na vida, das curvas na estrada, das ondas no mar, do insight no consciente. Mudanças de cenário, aventurar-se pelo desconhecido e quebrar paradigmas são símbolos que utilizo para dizer que, sem o elemento-surpresa, o roteiro de vida que escrevemos tornar-se-ia tacanho e estupidamente tedioso, de forma a tirar de nós a curiosidade e o empenho de chegar ao final da história.

A cada vez que tenho uma inspiração para escrever, ou sempre que me foco numa determinada contradição para tentar desvendá-la e resolver a mim, mais enraizada se torna minha certeza de que nossa reação à qualquer circunstância é o elemento-chave para um desfecho positivo ou negativo no script. Ansiar por uma vida monótona, sem o improviso musical que ela mesma realiza, é ingênuo. Eu sei disso, você sabe disso, o investidor da Bovespa sabe disso. Assim, não é o improviso que arruína e assombra, mas nossa postura diante dele. O novo pode ser processado como surpresa ou susto. É incrível o que a conotação pode fazer às palavras. E ainda mais incrível como as palavras orientam a história de cada um. Para isso, cabe a nós ter ouvidos vaginais, que acolham e se maravilhem com as palavras e, através delas, definam uma visão otimista ou pessimista com relação ao estímulo externo.

Um susto é desgastante em inúmeros níveis do corpo e da consciência. A descarga de adrenalina no sangue faz com que o cérebro produza um hormônio denominado cortisol, e esta substância baixa o nível de serotonina livre nos neurotransmissores. Em outras e mais assertivas palavras: você toma um susto, seu corpo leva um choque e seus miolos começam a fritar em meio ao stress, à disforia e à instabilidade de humor. Não  falo do "susto" relacionado a fobias, ao pânico e ao sobressalto. Embora esse tipo de abalo seja igualmente assolador (imagine aqui as mazelas da vida urbana, como a criminalidade e os altos e baixos da economia), refiro-me ao susto atado à decepção, à comoção das expectativas não realizadas e ao recalque dos desejos contidos. Este parece-me um espavento de proporções ainda mais danosas porque, ao contrário do medo que nos ronda em sociedade, e que para o qual existe certa preparação psicológica, não há qualquer defesa legítima que se possa usar contra a desilusão, o logro e o desengano. Imagine que a vida seja um roteiro de cinema e nós, os espectadores-protagonistas. Confrontados com sustos - leia-se decepções - sucessivos, até o final da sessão, não seria "espantoso" que fôssemos indicados ao Troféu Framboesa da temporada. Ou então, que desistíssemos da co-autoria, da encenação e, principalmente, da direção desse roteiro. Aí, o assustado vira o Espantalho, amigo da Dorothy, que desejava um cérebro a todo custo e, pela crença na ausência do mesmo, passava cada hora produtiva de sua vida num milharal decadente, abandonado a corvos e a espantalhos.

Se o susto causa tamanho transtorno emocional, a surpresa é aliviante, como um bafejar de ar fresco no calor soporífero do meio-dia. A surpresa dilata-nos as pupilas de curiosidade, aumenta o batimento cardíaco de excitação, faz as bochechas corar e mantém o cérebro mais atento, diferentemente do estado de letargia e marasmo em que é mergulhado numa vida de rotinas vãs, ausente de sentido e de deslumbramento. De "surpresa" chamo o abraço de mãe, quando se esperava uma reprimenda; o reencontro com um velho amigo, quando já se planejava a solidão; o sorvete na praça, com direito a beijo gelado, quando se premeditava um sábado em casa; a viagem de última hora para uma praia desconhecida, quando já se havia desistido de conhecer novas paragens; o diálogo maduro com o filho, quando ainda se pensava que ele era jovem demais; a coragem para recomeçar, quando a acomodação já fincava raízes; a honestidade crua e os olhos nos olhos, quando já se havia desistido de tanto jogo de sedução barato; um broto de amor no peito, quando o coração já estava estéril e vazio; um encontro com alguns poucos amigos no dia do aniversário, quando se imaginava ficar mais velho na companhia do Faustão.

Entretanto, como disse anteriormente, a conseqüência de um fator externo sobre a vida e a forma como aquele virá a nos impactar dependem fundamentalmente da maneira como reagimos a ele. Os exemplos que citei de surpresa têm conotação positiva apenas porque seriam surpresas agradáveis para mim e porque, no final e ao cabo, representam mudança de rotina, investimento pessoal e uma posição receptiva em relação ao outro. Imagino que para aqueles que apreciam a vida regrada e rotineira, e que estão numa zona de conforto de auto-suficiência, minhas "surpresas" seriam encaradas como tenebrosos "sustos". Por outro lado, pessoas que não valorizam tanto suas expectativas e ambições também não devem se assustar tão temerariamente quando um desejo frustrado vai para os porões do inconsciente. É sempre a mesma velha história da dualidade das coisas: "you say tomatoe, I say tomato..."

Há uns dias, conversando com um amigo de Belém, ficou claro para mim que só se assusta quem quer, ou quem não se previne. Ele tem uma filha de 14 anos, que vive com a mãe, e não vê a menina compartilhar muitos de seus valores e de sua personalidade. Como mora distante da filha, ele parecia especialmente saudoso no dia em que conversamos. Perguntei-lhe se vinha mantendo contato constante com a menina, ao que meu amigo se esquivou constrangido. Então me respondeu: "Sim, a gente conversa, mas ela é distante de mim. Aprendeu cedo a blindar seu coração. Mas é até bom; a vida não vai ser protetora para ela, então é melhor que esteja fechada. Assim, sofre menos". Meu amigo joga no time dos que esperam, apostam, tomam sustos e nem sempre alcançam. Sua filha, já antecipando toda a dor envolvida numa relação com pais separados, não nutre expectativas como o seu pai. Ou talvez até espere, mas não aposta. Assim, não toma sustos. Quanto a alcançar, acredito que, nesse mérito, estejamos todos nivelados, seja para uma surpresa, para um susto ou para a horizontalidade da vida: um dia é da caça, o outro, do caçador.

4 comentários:

  1. Poxa! Vejo-me altamente meditabundo! Depois de uma queda do ócio onírico diretamente na realidade abrupta do cotidiano desnaturado pela falta de engajamento (psíquico), isto fez toda a diferença: "Assim, não é o improviso que arruína e assombra, mas nossa postura diante dele."

    Acho que nos resta mesmo optar entre caça-dores e cassa-dores!
    Dá-lhe!

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  2. Gabe's, seus comentários são sempre uma brisa nesse trem... Quando você vai subir a bordo, para ser o bendito ao fruto por aqui? Convite feito.

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  3. haha! Do jeito que eu ando jogando ao chão os papéis em que escrevo, sem me atrever a publicá-los sequer na minha casa...
    Mas fico lisonjeado de ser reputado digno da moçada aí! Rs.

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  4. Quando voltar à ativa, faça uma parada por aqui!

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