20 de novembro de 2017

Vericídio

"Nenhuma verdade pode ser tão dolorosa que justifique uma mentira". Foi com essa máxima que eu, ainda criança, aprendi a não mentir. A verdade era um negócio muito sério para o meu pai. Ele se doava ao mundo com laços de confiança, respeito e admiração que, segundo ele, só poderiam ser amarrados com transparência e boa-fé. Assim, eu fui ensinada, treinada e moldada para ser um livro aberto, carapuça que me serviu naturalmente, tamanho era o meu temor que confundissem uma possível tentativa minha de "omitir" com "mentir". E, para garantir que alhos jamais fossem tomados por bugalhos, eu dividia livremente meus pensamentos, sentimentos e ações, o que abria um portal para o escrutínio pleno da minha família. Na casa dos meus pais não havia segredos, pelo menos nunca da minha parte - pai e mãe são, afinal, magnânimos, e detém a prerrogativa de nem sempre agir de acordo com as lições que pregam.



Mas a verdade dialética e das discussões filosóficas habita um universo muito distinto da verdade que aprendemos a contar quando crianças e das mentiras brandas ou cataclísmicas que escondemos debaixo dos tapetes da vida. Isso porque, em prática, grande parte de viver em sociedade se apoia no fato de que a verdade precisa ser flexível e conveniente, especialmente na esfera da convivência social, onde cada esbarrar nosso produz arestas pontiagudas demais para que a verdade nua e crua possa ser dita sem consequências desastrosas. Uma coisa é sempre dizer a verdade na proteção e privacidade do lar e à sombra da família; outra, bem diferente e muito mais perigosa, é expressar toda e qualquer opinião a céu aberto, simplesmente porque nunca fomos tão encorajados a ser sinceros, a ter e a exibir uma personalidade forte e a abraçar a nossa autenticidade. Se, há algumas gerações, os pais ensinavam os filhos a observar mais do que falar e, acima de tudo, a calar antes de dizer qualquer coisa ofensiva ou inoportuna, hoje os indivíduos que não falam o que pensam a qualquer custo são taxados de fracos. E mais uma vez os polos se invertem em nosso prejuízo: a verdade que aprendíamos a contar em casa ultrapassa os muros do privado para ganhar proporções sociais incômodas e levianas, ao mesmo tempo em que, no ambiente doméstico, as meias verdades e a hipocrisia infestam famílias que, sem elas, não estariam verdadeiramente coesas.

Você provavelmente desconhece José Datrino, mas este é o nome verdadeiro do Profeta Gentileza, e aqui se entende porque a verdade às vezes é super-estimada. O pregador carioca é conhecido pela frase "gentileza gera gentileza". Da mesma forma, o aparente modismo de se falar o que se pensa em nome dessa tal verdade, gera brutalidade, mal-entendimentos, rancor e isolamento. A liberdade de expressão nunca foi tão livre e desimpedida; hoje, diz-se o que vem à cabeça sem o menor receio de ferir sentimentos alheios; o que importa é que a minha opinião seja preservada e expressada, que a minha personalidade forte prevaleça, que a minha autenticidade se mantenha. Não há mais tempo nem lugar para gentilezas. O cara gentil é fraco. O sujeito amistoso é um borra-botas. A mulher obsequiosa e amável é puxa-saco. Se antes a boa-fé era um sinal de honradez e boa-vizinhança, um convite para portas abertas e aperto de mãos, hoje ela é um escárnio, um deboche moral, uma mácula social, um fardo, um fastio visto por vezes com indiferença outras com desconfiança. "Verdade" e "gentileza" não deveriam, a priori, ser excludentes em si mesmas, mas por alguma razão, não conseguimos processá-las simultaneamente. Aparentemente, quanto mais "verdadeiro" alguém se propõe ser, menos "gentil" em relação ao outro ele será, e esta pode ser uma infeliz dicotomia, feito uma singularidade espaço-tempo para a qual não há equação final. Para resolver tal oximoro, é preciso abrir mão de algum desses vieses: já sabemos que não dá para ser honesto e gentil ao mesmo tempo. E parece que essa escolha já vem timbrada em cada um de nós, muito antes de nos darmos conta da existência do problema.

E esse problema é que em nome da sinceridade brutal e da autenticidade narcísica dos millennials e pré-millennials que se intitulam como tal, a verdade é proferida em vômitos ardidos quando, fosse um pensamento sensato reservado à situação, bastariam um comentário cordial, uma mentira social conveniente, polida e agradável ou simplesmente o silêncio com um sorriso para evitar o desconforto, a ofensa e o ressentimento por parte de quem recebe a bofetada tantas vezes desnecessária. E daí comete-se vericídio: suicídio através da revelação da pretensiosa verdade. Mas o que seria a "verdade" nas relações sociais de trabalho, entre amigos e colegas que se veem a cada seis meses, parentes em reuniões de família, mães do grupo de Whatsapp da escola, a galera da academia, o pessoal da praia, a babá, o namorado, a amante, o marido, os pais? E em que momento começa a valer a pena, realmente, ser tão sincero e ter uma personalidade tão forte e uma autenticidade tão insuportável a ponto de rasgar o peito do outro em função de uma verdade que é muito mais legítima e faz muito mais sentido para você do que para ele? O quão gloriosa, devastadora e pateticamente inútil é a morte de um kamikase, no frigir dos ovos? Porque o vericídio é isso: uma "morte" de dois gumes. Aqui, saem em desvantagem tanto quem foi alvo de um comentário de uma honestidade brutal e devastadora, quanto quem perdeu a oportunidade de ficar calado, para variar.

Fratricídio, genocídio, vericídio. Qualquer tipo de assassinato é condenável, mesmo que este seja um neologismo, porque ainda que a palavra seja inventada, a ideia é muito literal e palpável. Nunca houve tanta liberdade de escolha para pensar, falar e agir, e nunca o indivíduo foi tão valorizado em detrimento do bem coletivo e social. Vem daí a noção exacerbada de que há um direito implícito de dizer o que se pensa, independente dos sentimentos dos outros e das próprias implicações absurdas do que se diz. Mas o preço dessa "verdade" é altíssimo: ela leva consigo a beleza e a candura no tratar entre as pessoas, enterra a tal gentileza sobre a qual o "seu" José pregava, faz com que os indivíduos desconfiem e debochem de quem é deferente e elogioso e, em contrapartida, venerem como forte aquele que tece comentários cáusticos e totalmente dispensáveis ao próximo. Uma barganha miserável, que verdade alguma nesse mundo justificaria. 

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