7 de dezembro de 2016

filofobia, ou "o medo de amar"

Filofobia
Psiq.
Substantivo.
1. Aversão e medo mórbido, irracional, desproporcional, persistente e repugnante de se apaixonar ou de fazer amigos;
2. Medo do amor. A palavra se origina do grego "filos", que significa "amar ou amado". Os indivíduos que sofrem desta fobia têm medo do amor romântico ou de formar laços emocionais, de qualquer tipo.


Envolver-se emocionalmente com alguém no século XXI é o equivalente simbólico a brincar de roleta russa no escuro com um bando de desafetos dos tempos de colégio. É perigoso, irracional, inaceitável. Ninguém mais faz isso; é démodé, quixotesco, prova cabal de que o praticante está nadando a braçadas sôfregas contra a maré e vai aguar na praia. Um passo em falso desnecessário, uma estrada de terra esburacada sem a bênção da tração quatro-por-quatro, a aposta mais alta no cavalo desconhecido, ações de risco máximo no auge da recessão econômica, o sobrenome do cônjuge, as chaves de casa, do carro, da alma.

Em algum momento entre o escopo gigantesco do universo, durante o milionésimo de segundo em que o ancestral mútuo do homo sapiens e do chimpanzé passou a desenvolver consciência de si próprio, e o minúsculo e confortável umbigo do mundo de nossos dias, em que mulheres passaram a usar calças-compridas e a votar e a pós-modernidade tornou-se um conceito por demais volátil para fazer qualquer sentido prático, a ideia de "relacionamento" e "envolvimento emocional" foi eclipsada por fatores sociais e culturais que a modificaram definitiva e irrevogavelmente. No ápice do individualismo, consolidado pela independência sócio-econômica feminina e pela igualdade entre gêneros, o desprendimento emocional nunca foi tão liberador, conveniente e simples.

Um exemplo contundente desta liberdade para ambos os sexos é a metáfora máxima e metonímia do desapego relacional: o fim do matrimônio. Com o tempo, separações judiciais cuja burocracia levava anos para se concluir e cujo estigma social cinzelava chagas na reputação e auto-estima dos ex-cônjuges, passaram a ser resolvidas cada vez mais frugalmente e, um sopro de alívio para quem está pronto para colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto, sem o drama e as fofocas do passado. Casar nunca foi tão fácil; e descasar, mais fácil ainda.

E daí me pergunto porque esse ensaio, que era para ser uma reflexão sobre a tal filofobia, esse medo louco de amar, de se apaixonar, de se envolver emocionalmente e se entregar ao abandono próprio das emoções, acabou resvalando para algo totalmente acadêmico, cheio de palavras compostas, com hífen e o escambau. Talvez uma introdução fosse necessária; é realmente fascinante e monstruoso perceber como vamos nos tornando cada vez mais dispostos a não ceder, a não nos comunicar, a não ouvir, a não doar, a não abrir os braços em abraços, a não sorrir, a sempre não, não, não. Talvez filofobia seja apenas uma de muitas moléstias lazarentas a tolher os sentidos e acovardar; ou quem sabe cinco parágrafos sejam como um jogo de espelhos, fumaça, uma bela, porém ineficaz máscara que o autor use enquanto ganha tempo para amaciar a própria carne e preparar o leitor para a verdade inevitável.

Afirmar ou mesmo crer que a grande pedra no sapato dos relacionamentos humanos seja o medo de amar seria, no mínimo, muito ingênuo. Indivíduos decidem não se envolver emocionalmente uns com os outros por um número infindo de razões consideravelmente plausíveis; há quem tenha vivido só por tanto tempo que não consiga imaginar a vida de outra forma, sem falar nos que nunca viveram sós mas tampouco querem se dividir com outro alguém. Tem aqueles que preferem gatos, cachorros, papagaios, cobras e lagartos, e acabam se envolvendo emocionalmente com eles. Há também os solteiros inveterados, os corações aventureiros, ciganos pelo mundo que, por razões auto-explicativas, causariam estrago considerável a outrem caso permitissem a estes se envolver emocionalmente consigo. Tem quem não troque sua liberdade por porto seguro algum no universo conhecido, nem pelos pés mais quentes e macios nas noites mais frias de inverno. Em grande número existem também os desacreditados que, atordoados pela primeira ou última desilusão amorosa, desistem da empreitada romântica drasticamente, por temor ao coice, à espora, ao facão. Esquecem-se, por certo, que um dia é da caça e o outro, bem... Às vezes também.

Não me esqueço de uma aluna de 16 anos que, às vésperas de embarcar para um intercâmbio de pouco mais de seis meses na Austrália, decidiu racionalmente dar término ao namoro de dois anos e meio. Eu podia sentir a sombra da adolescente que fui, teimosa Peter Pan costurada a meus pés, murchar feito uvas ao sol. Perguntei a ela se aquilo não partiria o seu coração, se não seria uma bagagem pesada demais para levar no avião, para outro continente, para a vida naquele momento. Ela sorriu para mim (de mim?). "Foi uma decisão de comum acordo. É um momento em nossas vidas em que nós dois precisamos de liberdade para crescer, para mudar, para expandir nossos horizontes", ela me contou naquele inglês perfeito, os olhos azuis faiscando oportunidades, futuro, promessas. Aos 16 anos, eu provavelmente morria de amor pela décima-quinta vez.

Minha aluna não sofria de filofobia naquele tempo, e posso apostar meu dedo mindinho que ela ainda não faz ideia do que isso seja agora. Seu motivo para dar fim a um relacionamento e evitar um envolvimento emocional ainda maior era plausível, justificável, racional. Mas uma fobia não é coerente, longe disso; não procede, não é justificável, foge ao padrões lógicos, à ordem do raciocínio e ao bom senso. Dessa maneira, quem sofre de filofobia morre de medo de se apaixonar e de se envolver emocionalmente, mas é incapaz de explicar intelectual e racionalmente porque esse pavor existe. No entanto, ele é real e pode gerar uma série de complicações de ordem relacional - o filofóbico é arisco, pessimista, tem um grau de expectativa exacerbado em relação ao objeto de desejo e amor - e psicossomática, como transtorno de ansiedade generalizada e depressão. Não raro, esses indivíduos acabam de isolando não apenas de seus parceiros amorosos, mas também do convívio social.

Eu perdi a pessoa que mais amava esse ano. Parece ridículo, mas nunca imaginei que meu pai fosse envelhecer ou adoecer, o que dirá morrer. A coisa toda é ainda mais surreal assim, escrita, publicada: o meu pai morreu. Eu nunca tive medo de amar o meu pai. Mas perdê-lo, este, sim, era o meu maior, mais ignominioso pavor. Quando meu pai morreu, alguma coisa quebrou dentro de mim; uma peça, uma joia, uma engrenagem, a caixa de controle. Algo minúsculo o bastante que eu não saiba nomear ou não perceba em nível consciente, mas enorme o suficiente para fazer um estrago monumental. Meu pai dizia que a gente se apaixona sempre, em qualquer idade; que é impossível frear uma paixão quando ela chega, escolher a quem amar, controlar o objeto desse amor. Eu o ouvia maravilhada, com o coração transbordando de um misto de desejo de viver aquilo e um medo que vinha da certeza de que eu jamais teria a chance. E a idade, pai? Não tem idade para isso. Quando se ama, todo mundo é jovem outra vez.

O maior medo do meu pai era morrer só. Isso não aconteceu. Em seu último suspiro, que foi dorido, difícil, tortuoso e feio - a morte não é generosa, nem tranquila e não cai bem a ninguém - eu estava lá, segurando suas mãos e ombros, olhos fixos nos dele. Quando vivo, meu pai amou desbragadamente: seu trabalho, sua família, mulheres, a estrada, a madrugada, as árvores, livros, música, o amor em si. Não herdei sua coragem e muitos são os meus temores: tenho medo de perder a quem amo para a vida, para a morte, para o outro, para mim mesma; de viver experiências prazerosas porque estas, invariavelmente, chegam a um final; de amar e, sobretudo, do amor. Porque amar e amor são entidades diametralmente distintas, embora complementares.

O cerne de todo pavor é a finitude das coisas. É exatamente o fugaz e a certeza de que nada dura para sempre que dão o tom de receio e pusilanimidade tão inerentes à condição humana. Tememos, a priori, o tempo, porque nele tudo finda, nada se mantém. Tempus fugit, ou seja, "o tempo urge". Somos nossa memória contra o tempo, nossos corpos contra o tempo, nossas paixões contra o tempo, nossa história contra o tempo e, sem exceções, ele é sempre o vencedor. Em semelhante proporção temos pavor do que prezamos e podemos, uma vez em risco, perder. Teme pela vida quem sabe que pode desperdiçá-la, daí o senso de valor e significado próprios à mesma. Não é de admirar que as palavras "temor" e "respeito" estejam tão intrinsecamente correlacionadas em certas línguas e culturas; quem ama algo ou alguém, o respeita e valoriza e, portanto, teme profundamente deixá-lo escorrer pelos dedos.

Quando se trata de amar, somos feito espadas, forjadas pelo fogo, martelo, bigorna e as batidas incansáveis do ferreiro das histórias, dos desamores, vitórias, do espólio de guerra dos relacionamentos de cada um. As chamas lambem e incandescem o metal, as batidas da vida entortam, moldam, curvam, recurvam e vão nos transformando nessas "armas para amar". Cada um ao seu jeito, da maneira muito peculiar que o seu ferreiro o forjou. Muito me admira que duas espadas deem bossa, quanto mais façam um samba, principalmente se o leitor imaginar uma cena de batalha de "Game of Thrones", por exemplo. Mas, já dizia o provérbio, no amor e na guerra, vale tudo. O fato é que cada um ama a seu modo e ama de maneira diferente à medida que novas batalhas, leiam-se "experiências" - vão o moldando. Há quem perca o medo de amar com o tempo; há quem ame com mais ou menos intensidade; há quem decida se mudar para Pasárgada e virar ermitão. E há também quem trace suas investidas militares numa linha consideravelmente reta, sem muitos sobressaltos ou mudanças, utilizando-se da mesma velha e intocada espada em toda nova batalha.

O medo de amar apenas não é maior do que o pavor do amor. Tem medo de amar quem não quer sofrer uma perda ou uma rejeição. Medo de se envolver emocionalmente equivale a ter expectativas que você imagina que o outro jamais irá suprir. Fobia irracional de se apaixonar é um nível desconfortável de ansiedade que consome o indivíduo e gera um pavor e a certeza de que ele não será correspondido em seus sentimentos. Tem pavor de amar quem possui a auto-estima tão alquebrada que se sente um estrangeiro na própria pele, desculpando-se a todo tempo, movendo céus e terra para agradar e acuando-se ao menor sinal de reprovação por parte do objeto de amor e desejo. Filofobia é uma guerra injusta que o indivíduo trava constantemente dentro de si: ele quer amar e precisa ser amado. No entanto, seu pavor de rejeição é tão grande que seu desejo é pôr fim ao relacionamento, mas ele é fraco demais e dependente demais do outro para fazê-lo.

Imagine que você tenha passado anos em um quarto escuro, sem uma brecha de luz sequer. Quando sair de lá e for para a mais bela das praças, sob um céu rebentando de azul e cerejeiras em flor, a beleza e a luz hão de lhe incomodar os olhos, cegá-lo brutalmente. Isso acontece porque o ser humano é uma criatura de hábitos e, sendo assim, acostuma-se a qualquer coisa, inclusive e especialmente ao ruim, ao ignóbil, ao medíocre. Por isso tanta gente teme o amor: porque, muitas vezes, ele é a luz e a cor após um período imenso e inacreditável de trevas e, sendo assim, cutuca, atiça e reaviva os sentidos calejados, adormecidos e maltratados pela dor. Finda a estiagem da alma, o amor chega numa tormenta que faz o sangue fluir, dá vida a sonhos antigos e cria outros, novos, desperta desejos, põe ideias na cabeça, faz o corpo se mexer, salga feridas e rompe a inércia da morte em vida. Pode-se ouvir os ossos enrijecidos e os sentimentos artríticos lentamente degelar ao calor inesperado que é sentir-se e saber-se humano novamente.

A princípio, o amor dói pois quebra paradigmas, põe toda e qualquer certeza em cheque, esgarça horizontes, embirutece a gente. Primeiro, assusta e lacera, tudo junto, num caos emocional sem precedentes, pelo menos até a próxima dor de amor, que Deus nos livre. Depois, passado o choque inicial, enche a alma desse amor novo, dessa felicidade e plenitude que são o maior e mais precioso tesouro do universo, que nem imaginávamos possível existir. O êxtase é tão primal e a realização dos sonhos tão possível que nos tornamos Midas em semanas: tocamos o ar e, dele, extraímos castelos de ouro forjados na crença de que somos, finalmente, dignos dessa tal felicidade. E, então, vem o medo, aquele pavor horrendo de que o tempo seja mais rápido que o amor e ele murche, ou que haja uma outra mulher, ou que ele tenha câncer, ou que viaje para a China, ou que se canse do seu jeito, ou do seu corpo, ou das suas mazelas, ou que queira filhos, ou que não os queira, ou que tudo tenha sido apenas sexo, ou que não queira passar o Natal com você, ou... ou... ou...

Há alguns anos, quando meu pai ainda era vivo e me dava muitos conselhos, meu maior medo na vida era envelhecer só. Ainda é; hoje, a lista apenas aumentou. Por querer me proteger de um mundo que ele via muito grande para mim, compreendo agora, meu pai não foi um conselheiro otimista, muito menos politicamente correto ou didático, o que pode ter rendido alguns poucos fusíveis queimados em minha caixola, nada que eu faria diferente, a bem da verdade, tratando-se da figura única e tão amada que foi meu pai. Quanto à questão de envelhecer só, meu pai, esse grande amigo meu, dizia, aqueles olhos de mel carinhosos fixos nos meus, sempre: "Todo mundo quer alguém para amar, momó querido. Mas é difícil. Aprende a viver sozinha, que é mais certo". Aquele enigma esfíngico (profecia?) jamais sanou o meu medo e muito menos respondeu a minha pergunta, mas ninguém pode dizer que o homem estava errado. Era o jeito Mestre dos Magos do meu pai, que ficou para contar história. 

4 comentários:

  1. Eduardo Mello Guimarães12.12.16

    Talvez só um cara que tenha amado e vivido intensamente possa dizer: "aprende a viver sozinha". Eu me considero uma ótima companhia para mim mesmo.Talvez tenha aprendido mesmo a viver sozinho. So que não hesitaria um segundo em colocar alma e coração para viver intensamente um novo amor. Um dia a brevidade da vida deixarará de ser invisível para a menina que foi para Austrália cheia de razões e certezas. A filofobia deve ser tratada com doses de coragem e foda-se ou o paciente corre o sério risco de apodrecer em vida.

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  2. Sua moderação é incrível, Eduardo. E, no entanto, você consegue ser ao mesmo tempo parcimonioso e intenso, o que é no mínimo intrigante, incrível, invejável. Não poderia concordar mais. Mas, meu amigo, como é difícil ser ótima companhia para si mesmo e estar pronto para mergulhar no amor... Qual é o segredo?

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    1. Roberta, quem sou eu pra saber o segredo? Errei na dose várias vezes. Perdi mulheres incríveis por egoísmo, descuido, intensidade...Talvez tenha aprendido a gostar da minha companhia quase que por obrigação...rs. Ou talvez o meu mérito seja me recusar a aceitar "o morno", a mediocridade. Aí desfruto da minha companhia na ausência de um amor para mergulhar fundo.

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