30 de novembro de 2011

à distância

para/por Luiz Tavares


A mão que se estende para tocar a do soldado derrotado, enlameado e débil é como o sol que entra pela fresta da janela, ainda que as cortinas estejam cerradas: inesperada, sutil e aliviante. Na meia-noite dos meus dias, os demônios correm soltos, à garupa de cavalos sem rédeas nem sela. No breu sufocante da noite que parece jamais amanhecer, as mãos que vejo, borradas ou sombreadas pela tarde que escalda a pele do lado de fora, ainda se estendem. São reais, firmes, persistentes e tentam mover o paredão de escombros que sou. Dia desses dei um tiro no pé ao me perguntar porque meu filho me ama, gratuitamente; como meus pais ainda não desistiram de mim; porque meus alunos me admiram. Como ainda sou capaz de manter amigos. Quando se vive muito perto da lama, é natural que você se sinta como um porco. E pior do que sustentar sentimentos suínos, é se ver como um porco; via de regra, é por nossos próprios olhos e a partir da concepção que fazemos de nós mesmos que somos revelados - e nivelados - aos olhos e à apreciação dos outros.

Essa noite, a mão estendida ao porco veio na forma de uma voz, ainda que silente, dizendo: "só é porco aquele que insiste em chafurdar". Palavras que, à distância, lamberam feridas e aliviaram a dor, como um bálsamo feito sob encomenda. Quando no chiqueiro, costumo me ausentar do mundo, como que para evitar que o ranço da derrota e do vazio contaminem o habitat de quem ainda não caiu do cavalo de Troia. Ainda assim, as mãos insistem em chegar, as vozes em ecoar, o reforço, a maca e o torniquete em socorrer. Então, talvez, sobreviva no porco a porção humana de mim. E, assim, talvez ainda valha à pena remar contra a corrente, suspirar profundamente, sair da lama e olhar o horizonte largo, e não pelo olho claustrofóbico de uma agulha. Seguem, agora, as palavras de Luiz, que, de outra dimensão, sussurra: "já se viu pérola hoje?". Aos porcos, fava. Que sejamos todos, na lama, no mar, em terra ou no ar, humanos.

"Sabe que, ao invés de insistir na pergunta, na notícia, fui espiar um pouco seu blog. Lá uma resposta bastante interessante poderia ter. E lá estava. Impressiona a fluidez com que você escreve, é quase como falar, em língua materna, entre íntimos... E vejamos que sua sala de estar é aberta a quem quiser estar, sem necessidade de bater à porta; intimidade com o mundo, algo poderoso. Mas por mais que sua escrita seja bastante (senão toda) cunhada em suas próprias vivências (no melhor estilo quando somos crias de nós e nossas circunstâncias), intimista (vale a repetição), como toda criação ela é apenas uma fração do criador. E eu, que não sou bom leitor de biografias, gosto muito mais de saber sobre o dono da pena, do lápis, da caneta, dos dedos que habilmente batem tecla a tecla as imagens de sua mente. Vez mais, por mais intimista suas crônicas, são uma fração de suas angústias, aflições, desejos, tristezas. Não tem o gosto das lágrimas, tampouco o sorriso fácil ao rever seu filho. Indubitável o meu gosto pelas suas cronicas, é algo de muito valor que ainda há de ter mais amplo reconhecimento, mas irremediável minha preferência pela escritora. Gosto do produto das mãos, mas prefiro a moça dos brincos de pérola. Problemas todos temos, e não há de se fazer uma aposta por quem sofre mais. A referência para todos os problemas é sempre aquele que os sofre. Eu tenho uns monstros bem grandes para lidar todos os dias. Contudo, ao contrario do dizer de seu pai, que sua esperança não passe. Se perto eu seria absolutamente inútil ajuda, longe sou menor ainda. Posso, isso sim, soprar o desejo de um sono tranquilo ao passo que lhe escrevo". 

Amigo, para quem ama as palavras, um pingo é odisseia, enciclopédia, o melhor dos presentes. Pelas muitas letras, palavras que, hoje, faço públicas, obrigada. Sempre.

6 de novembro de 2011

das coisas


Essas malas me entristecem
Com suas alças rotas, rodas emperradas
A náusea da naftalina
E as botas do inverno passado

Esses livros me perturbam
Com seu abandono mudo
Arquivos mortos em pó
E as páginas arrancadas a gotas

Essas provisões me assustam
Com seu prazo de validade expirado
Bocas secas, estômagos ocos
E a fome do tempo que se abortou

Esses armários me apunhalam
Com suas portas quebradas
Tramelas vãs, sem chaves
E o ranger incessante da memória

Esse cubículo do mundo me estanca o sangue
Com suas rotas traçadas, às cegas percorridas
Valas abertas de agora, bueiros lacrados amanhã
E o branco-e-preto taciturno das fotografias

Esse ir e vir, sem pegar nem largar
Com suas migalhas, entre o lá e o cá
O muito que é seco, do pouco que sobra
E o vazio que engole fendas e escava as coisas