17 de agosto de 2015

pra que paixão?



Romantismo apaixonado é invenção moderna, pelo menos quando aplicado à vida prática. Porque na literatura e nas artes, ele vem inspirando e alimentando penas e pincéis desde o século XVIII. Em resumão com cara de cursinho pré-vestibular, a história é mais ou menos assim: na Inglaterra e na Alemanha dos anos 1700 e blau, a galera se enche do classicismo e a turma boêmia e descolada da época passa a plantar as sementes românticas que seriam espalhadas pela França para todo canto. Em seguida, o Romantismo se tornaria a expressão artística do individualismo, da subjetividade, dos sentimentos, da entrega plena ao amor e do heroísmo. São desse grupinho de românticos o escritor Goethe, o compositor Beethoven, o pintor Delacroix e, claro, o dramaturgo Shakespeare, como não.

O problema aqui nem é tanto a ideia de romance, mas essa nova conotação que a palavra "paixão" adquiriu, como se fosse coisa muito boa e recomendada, não apenas nos relacionamentos amorosos, mas na vida profissional também. Outro dia uma aluna de 16 anos me contou que não faz ideia do que vai estudar na faculdade porque ainda não descobriu a atividade pela qual ela é - veja bem, "é", e não "está" - apaixonada. E daí dois alarmes soam na minha cabeça endurecida pelos anos e experiências românticas traumáticas: você precisa ter paixão até pelo ofício que o sustenta para que ele seja legítimo e, contra-senso ainda maior, você é apaixonado por coisas e pessoas, assim mesmo, com o verbo ser, e não estar, como se paixão fosse característica inerente, e não estado de espírito.

Assim, a "paixão" correu morro acima, dos primórdios de pati - em latim, sofrer, aguentar - ao auge do amor e do êxtase, imbuída de sentido benéfico e super estimada. Todo mundo quer estar apaixonado. Pela vida, pelo trabalho, pela cidade onde mora, pela comida que come, pela atividade física que pratica, pelo analista, pelos amigos, pelo outro. Porque se você acorda às seis da manhã sem cantar com os passarinhos e sem se sentir super animado porque é segunda-feira e você é tão completamente apaixonado pelo que faz, então deveria mudar de profissão e fazer algo que o faça "feliz". E se o seu coração não acelera no peito, as mãos não suam e a alma não se deleita quando você encontra o seu marido depois de um longo dia de trabalho não passional, então a relação está em crise e é hora de você rever os seus conceitos. Ou de se apaixonar novamente, de certo por alguém diferente, como se isso fosse resposta ou solução para casamentos, bem sucedidos ou à beira do colapso.

Daí se conclui que os reles e vis mortais que não são necessariamente apaixonados pela vida, por frases motivacionais e balões coloridos; que às vezes se lembram da etimologia da palavra "trabalho" - tripalium, da junção de "tri", três, e "palum", madeira, tripalium sendo um instrumento de tortura constituído de três estacas de madeira afiada para pobres e escravos que não tinham dinheiro para pagar seus impostos e, portanto, "trabalhavam"; que são mais amigos de seus cônjuges do que amantes passionais em lua de mel ad infinitum; que não são positivamente apaixonados por seus papéis alternados de mãe, pai, filho, filha, empregado, patrão, esposa, marido; que não sabem dizer exatamente se são felizes ou o que seja a felicidade, muito embora admitam que tristes também não são; os indivíduos restantes, destituídos de paixão e fervor por tudo que os rodeia, são meros zumbis. Se esta for de fato a bússola que nos orienta em tempos modernos (pós-modernos? Ou já inventaram um termo novo?), haja paixão que baste. Pois para quem servir a carapuça, nós, os não-apaixonados, somos uma nação, um mundo de mortos-vivos, desapaixonados e incertos, uma constelação de olhos vazios e leitosos, sem o brilho inconfundível dos arrebatados.

A capacidade de comparação é mãe de toda mazela existencial humana. Se de fato há pessoas tão constantemente apaixonadas pela vida e por tudo e todos que a perpassam, surpresa mesmo seria se os demais não se sentissem inferiores, menos felizes e mais banais em comparação. O mecanismo é o mesmo dos padrões de beleza estampados em capas de revistas, tanto femininas quanto masculinas, embora a carga seja mais pesada para as mulheres: como se olhar no espelho e se perceber "adequado" quando o modelo super exposto, super explorado e super estimado é tão diverso do seu próprio? Seria possível classificar a vida como "feliz" quando a cada dia novos artigos e livros contemplando o segredo da felicidade chegam às prateleiras? Como considerar um relacionamento amoroso "saudável" ou, no mínimo, "compatível", quando os amantes estão cada vez mais liberados, sensuais, poderosos, seguros de si e ultra orgásmicos? E quanto a julgar suas "conto-nos-dedos-de-uma-mão" amizades como suficientes quando nada é atualmente mais valioso do que uma vida social fecunda e apaixonadamente documentada em fotos e likes no Facebook? Nunca houve tanto acesso a tantos preceitos de vida, nem de forma tão instantânea. Não é surpresa, assim, que nunca tenha havido tamanho grau de insatisfação pessoal em igual proporção.

Se na literatura as histórias de paixão - marinadas em suspiros e tormentos do amor platônico - funcionam, no feijão com arroz do dia a dia elas só atrapalham. O amor romântico - assim como a paixão eterna, a felicidade, o ideal de beleza, o sexo perfeito, a vida social irreprovável - é inatingível, não se realiza, não acaba em casamento e rotina, até porque, se acabasse, a história não teria graça nenhuma. Dá para imaginar um final alternativo para Romeu e Julieta, onde os amantes trocam votos conjugais, alugam um apê em Verona - ela, dona de casa, ele, funcionário público - e três moleques mimados brigam pelo controle do videogame na sala de estar?  E se Werther pudesse ter se unido a Charlotte? Será que iriam resolver a crise dos sete anos com terapia de casal? Como nossas vidas parecem comuns, tediosas e patéticas comparadas a paixões devastadoras, ao fascínio do romance, ao ardor e à carga dramática eletrizante da literatura...

Ninguém almeja o que é possível obter, mas o que não pode ser alcançado. Essa é a condição sine qua non do bicho humano e sua maior sina, um calabouço onde nos enclausuramos e cuja chave não nos preocupamos em reaver. Eva vê a uva mas não pode comê-la, e por isso a fruta é tão saborosa. Os sapatos na vitrine da loja de grife que você jamais terá cacife ou coragem para comprar serão os mais belos, principalmente porque não vão estar no seu armário. O nerd espinhento e anti-social do ensino médio nunca se apaixona pela garota igualmente caxias da sala, mas pela futura modelo esportista e super popular. A grama do vizinho é sempre mais verde porque, ora, é do vizinho. E essa gana sem fim nem propósito é ainda mais dolorosa quando o objeto de desejo é a paixão, o romance.

A gente antiga, de cidade do interior, não falava em paixão; o termo usado, então, era paixonite, assim mesmo, feito doença: tendinite, apendicite, amigdalite, bursite. Pena que não conste paixonite em nenhum compêndio de moléstias físicas e/ou psíquicas. Porque coração disparado, aumento da pressão arterial, suor frio, perda de sono e apetite e incapacidade de concentração não são características fisiológicas exatamente desejáveis. Isso sem mencionar os atuais índices recorde de divórcios apenas no mundo ocidental. Casar-se apaixonado parece ser receita de divórcio em menos de cinco de anos. Situação semelhante é a de recém-formados desempregados: optar pela profissão dos sonhos, aquela pela qual se é apaixonado, nem sempre é garantia de que a mesma esteja em alta no mercado de trabalho. Ainda assim, vale tudo pela paixão e felicidade, certo?

É notável o numero de canções, filmes e livros de bolso jurando que ninguém é velho demais para se apaixonar. Tenho dúvidas, e não são poucas. Para tudo há um limite, nenhuma fonte é inesgotável, e não seria diferente com a capacidade de se apaixonar. É possível que a paixão seja renovável, reciclável, mas também faz sentido que sentimento tão descabido e nada cauteloso seja mais propício à juventude, quando se tem mais futuro pela frente do que um passado para levar de bagagem. Por certo há quem floresça com a paixão, serial ou constante, se é que esta não seja mais uma lenda para o almanaque de contradições humanas. Em contraponto, há os práticos, os céticos, os gatos escaldados. Para estes, paixão é coisa perigosa, corda bamba entre universos incomunicáveis. É assombrosa essa necessidade de estar ou ser apaixonado por tudo, feito essa urgência de ser feliz o tempo todo. Otimismo demais me cheira à histeria, paixões indistintas, à cárcere. Prefiro a alternância dos dias, a liberdade de se saber apenas mais um, outro alguém tentando sobreviver ao leão na arena, perdendo um dia, vencendo outro, imperfeito sempre.

11 de agosto de 2015

a lua quebrou

para Martha, irmã por escolha, e Pietro, nosso pequeno e doce presente


O menino tem pouco mais de um ano e está aprendendo as palavras. O corpinho frágil parece inflar, estufado com a curiosidade de criança, os olhos sempre muito atentos, devorando cores, sabores e aromas do mundo; para aqueles olhos de azeitona graúda tudo é novo, nada tedioso e a vida, uma grande brincadeira de desvendar mistérios em que ele, o detetive e explorador, fica maior e mais forte a cada descoberta, escapando ao círculo concêntrico de sua existência para abraçar o mundo.

A mãe põe seu filhote cedo a dormir; hábitos fazem homens, ela aprendera, e toda mãe tende a ensinar ao rebento o que sua própria mãe às custas lhe adestrara. Mas é noite de inverno, e toda noite de inverno é sempre mais bonita, o tempo frio e seco levando para longe as nuvens aborrecidas do céu. Por isso, nessa noite, o menino ganha um mimo: pode ficar de pé até mais tarde e ir com a mãe à varanda. Em noites frias como esta ela teme que o vento inclemente do morro faça o menino adoecer. Porém, a beleza da noite vence o desvelo materno, e o menino põe-se a se divertir, inventando formas para as estrelas no clarão do firmamento e bafejando no ar, pequeno e bravo dragão de mentira sobrevoando o mundo nos braços de sua mãe.

Concorre com as estrelas nesta noite a lua, balão de prata intumescido no céu, cheia em seu esplendor e fascínio. O menino estica o pescoço para trás e encara a imensa bola de gás suspensa na abóbada do céu, decerto por magia. Sua mãe sorri de deleite, sabendo-se a única neste momento capaz de soprar aos ouvidos sedentos do filho um chamego de descoberta:
"Viu, filho? Aquela é a Lua".
"Lu-a", o pequeno remenda, sem tirar os olhos da sua nova amiga redonda, imperatriz da imensidão finita e abençoada do céu de criança, toldo azul cobrindo o gramado da casa: "Lu-a".

Nos dias seguintes, a mãe lhe ensina também muitas outras palavras: nomes de frutas, todas aquelas na mesa da cozinha, "pera", a sua favorita; "Chico", o amigo preto e peludo que insiste em lamber as mãos do pequeno; "caminhão-baú", "trator" e outros carros grandes, que o menino apadrinha; "suco de uva"; "árvore"; "girafa", "cavalo", "boi" e "elefante", um vernáculo inteiro de bichos da fazenda e do zoológico; "caneta", lápis", "tinta" e "giz de cor", porque não tarda o menino cresce e começa a escrever a própria história; "desculpa", "por favor" e "obrigado", porque antes de saber ciências é preciso aprender boas maneiras. E a mãe mira a sua cria com orgulho, urgindo as horas a correr e o marido a chegar, para que mais tarde, sob as cobertas os dois, ela possa lhe contar os progressos do pequeno e recolher em seu abraço o cansaço doce e legítimo de mãe.

Passam-se duas semanas cheias, muitos novos vocábulos, litros de experiências inéditas que o menino bebe como um beduíno no deserto. E faz-se noite novamente, outra noite clara e estrelada a que a mãe se permite fazer uma exceção e levar o piá à varanda. Quem sabe haverá vaga-lumes enfeitando a escuridão dessa vez? Que apropriado seria ensinar ao pequeno palavra tão bela e em idade tão tenra... Sorrindo seu riso de sonho, que a mulher pensara ter esquecido até sentir o ventre inchando, prenhe de vida, ela já pode antecipar: "Viu, filho? Aquilo é um vaga-lume". A vida é mais gentil e o céu mais estrelado quando se pensa na poesia que são os vaga-lumes: milhares e minúsculos clarões de luz errantes, vagueando pelo breu e acendendo diminutas fogueiras, lampejos de esperança, aqui e ali.

Envolto no calor dos seios da mãe e pela proteção imensurável dos seus braços, o menino olha ao redor e reconhece o seu mundo, casando palavras recém aprendidas às imagens que ele há de acalentar para sempre na memória, o código de sua infância: grama, portão, flor, Chico, quiosque, fazendinha, brinquedo espalhado, pedra, árvore, carro do papai, mamãe. Não há vaga-lumes esta noite. Paciência. Ela terá ainda muito tempo para lhe mostrar as coisas e seres capazes de iluminar a noite e a alma da gente. Nos braços ela leva o seu rebento, e a existência mesma do menino a torna mestre por excelência, um exemplo, alguém que ela terá que aperfeiçoar a cada dia, por ele. Afinal, qual a essência e razão em ser mãe senão nascer e crescer de novo, vencendo vícios e cultivando virtudes, tornando-se alguém menos bruto, mais refinado, pelo filho?

Então o pequeno olha para o céu. Vê pontos luminosos e distantes, alguns cintilando, outros desbotados, quase esmaecidos, e diz confiante, todo senhor de si: "Estrelas". A mãe sorri; ele aprendera. O menino inclina o pescoço um pouco mais, avista uma fatia branca e tristonha no céu e franze o cenho, uma miniatura do pai. Seus olhos refletem aquela porção já familiar do firmamento, luzindo com atenção e algo além de apenas curiosidade. A mãe o segura mais perto do peito, toda brio e satisfação; ele lembrara! O filho estende o braço e aponta o dedinho indicador gorducho e questionador para o satélite solitário e minguante no céu: 
"Mamãe, a lua quebrou".
E derrama-se no abraço dela, fazendo um beicinho de queixume dengoso.

Uma coruja pia ao longe. O vento sopra mais forte, fazendo as folhas das árvores sussurrar um farfalho moroso. Chico chega mais perto deles, o focinho gelado e úmido roçando as pernas da mulher, pedindo atenção, um último afago do dia. Dentro da casa, o pai apaga a luz da cozinha e olha para a sua família pela janela. Ele não diz palavra, mas o riso afetuoso e o meneio leve da cabeça falam alto: ele também deseja um último afago.

A mãe acena ao marido e enterra a cabeça nos cabelos macios do filho, inspirando profundamente o aroma adocicado de menino. Então ela sente uma saudade dorida desse pequeno que, antes que ela se dê conta, vai ficar grande, tão maior do que ela, um gigante a trilhar os próprios caminhos. Ela não o levará ao colo para sempre; não fará escolhas por ele; não estará presente para protegê-lo do frio, do escuro nem da solidão. Ela cerra os olhos contra a pele morna da bochecha do menino, já vislumbrando o homem que ele será. Não haverá tempo para que ela o ensine todas as palavras, os versos, as histórias e canções. A mulher compreende, então, que nem mesmo todo o ensejo do mundo lhe bastaria e ao filho, porque semear é correr contra o tempo.

Mas, nesta noite, ela ainda tem tempo. Sob o manto salpicado de estrelas e mal iluminado pela lua a minguar, abraçados os dois, ela é grande e ele, menino. No gramado macio, à espera do ipê que há de florir em plena exuberância na próxima primavera, ela ainda pode tomar a vida nas mãos e remendar-lhe os buracos, traçar os pontilhados, colorir o que desbotou, resgatar o que se perdeu, refazer, recompor, consertar. E porque em noite de inverno e quando se tem pouco mais de um ano a mãe da gente pode tudo, a mulher acende o breu com um sorriso e sussurra ao menino:
"Não tem problema, filho. A mamãe cola a lua para você".