11 de agosto de 2015

a lua quebrou

para Martha, irmã por escolha, e Pietro, nosso pequeno e doce presente


O menino tem pouco mais de um ano e está aprendendo as palavras. O corpinho frágil parece inflar, estufado com a curiosidade de criança, os olhos sempre muito atentos, devorando cores, sabores e aromas do mundo; para aqueles olhos de azeitona graúda tudo é novo, nada tedioso e a vida, uma grande brincadeira de desvendar mistérios em que ele, o detetive e explorador, fica maior e mais forte a cada descoberta, escapando ao círculo concêntrico de sua existência para abraçar o mundo.

A mãe põe seu filhote cedo a dormir; hábitos fazem homens, ela aprendera, e toda mãe tende a ensinar ao rebento o que sua própria mãe às custas lhe adestrara. Mas é noite de inverno, e toda noite de inverno é sempre mais bonita, o tempo frio e seco levando para longe as nuvens aborrecidas do céu. Por isso, nessa noite, o menino ganha um mimo: pode ficar de pé até mais tarde e ir com a mãe à varanda. Em noites frias como esta ela teme que o vento inclemente do morro faça o menino adoecer. Porém, a beleza da noite vence o desvelo materno, e o menino põe-se a se divertir, inventando formas para as estrelas no clarão do firmamento e bafejando no ar, pequeno e bravo dragão de mentira sobrevoando o mundo nos braços de sua mãe.

Concorre com as estrelas nesta noite a lua, balão de prata intumescido no céu, cheia em seu esplendor e fascínio. O menino estica o pescoço para trás e encara a imensa bola de gás suspensa na abóbada do céu, decerto por magia. Sua mãe sorri de deleite, sabendo-se a única neste momento capaz de soprar aos ouvidos sedentos do filho um chamego de descoberta:
"Viu, filho? Aquela é a Lua".
"Lu-a", o pequeno remenda, sem tirar os olhos da sua nova amiga redonda, imperatriz da imensidão finita e abençoada do céu de criança, toldo azul cobrindo o gramado da casa: "Lu-a".

Nos dias seguintes, a mãe lhe ensina também muitas outras palavras: nomes de frutas, todas aquelas na mesa da cozinha, "pera", a sua favorita; "Chico", o amigo preto e peludo que insiste em lamber as mãos do pequeno; "caminhão-baú", "trator" e outros carros grandes, que o menino apadrinha; "suco de uva"; "árvore"; "girafa", "cavalo", "boi" e "elefante", um vernáculo inteiro de bichos da fazenda e do zoológico; "caneta", lápis", "tinta" e "giz de cor", porque não tarda o menino cresce e começa a escrever a própria história; "desculpa", "por favor" e "obrigado", porque antes de saber ciências é preciso aprender boas maneiras. E a mãe mira a sua cria com orgulho, urgindo as horas a correr e o marido a chegar, para que mais tarde, sob as cobertas os dois, ela possa lhe contar os progressos do pequeno e recolher em seu abraço o cansaço doce e legítimo de mãe.

Passam-se duas semanas cheias, muitos novos vocábulos, litros de experiências inéditas que o menino bebe como um beduíno no deserto. E faz-se noite novamente, outra noite clara e estrelada a que a mãe se permite fazer uma exceção e levar o piá à varanda. Quem sabe haverá vaga-lumes enfeitando a escuridão dessa vez? Que apropriado seria ensinar ao pequeno palavra tão bela e em idade tão tenra... Sorrindo seu riso de sonho, que a mulher pensara ter esquecido até sentir o ventre inchando, prenhe de vida, ela já pode antecipar: "Viu, filho? Aquilo é um vaga-lume". A vida é mais gentil e o céu mais estrelado quando se pensa na poesia que são os vaga-lumes: milhares e minúsculos clarões de luz errantes, vagueando pelo breu e acendendo diminutas fogueiras, lampejos de esperança, aqui e ali.

Envolto no calor dos seios da mãe e pela proteção imensurável dos seus braços, o menino olha ao redor e reconhece o seu mundo, casando palavras recém aprendidas às imagens que ele há de acalentar para sempre na memória, o código de sua infância: grama, portão, flor, Chico, quiosque, fazendinha, brinquedo espalhado, pedra, árvore, carro do papai, mamãe. Não há vaga-lumes esta noite. Paciência. Ela terá ainda muito tempo para lhe mostrar as coisas e seres capazes de iluminar a noite e a alma da gente. Nos braços ela leva o seu rebento, e a existência mesma do menino a torna mestre por excelência, um exemplo, alguém que ela terá que aperfeiçoar a cada dia, por ele. Afinal, qual a essência e razão em ser mãe senão nascer e crescer de novo, vencendo vícios e cultivando virtudes, tornando-se alguém menos bruto, mais refinado, pelo filho?

Então o pequeno olha para o céu. Vê pontos luminosos e distantes, alguns cintilando, outros desbotados, quase esmaecidos, e diz confiante, todo senhor de si: "Estrelas". A mãe sorri; ele aprendera. O menino inclina o pescoço um pouco mais, avista uma fatia branca e tristonha no céu e franze o cenho, uma miniatura do pai. Seus olhos refletem aquela porção já familiar do firmamento, luzindo com atenção e algo além de apenas curiosidade. A mãe o segura mais perto do peito, toda brio e satisfação; ele lembrara! O filho estende o braço e aponta o dedinho indicador gorducho e questionador para o satélite solitário e minguante no céu: 
"Mamãe, a lua quebrou".
E derrama-se no abraço dela, fazendo um beicinho de queixume dengoso.

Uma coruja pia ao longe. O vento sopra mais forte, fazendo as folhas das árvores sussurrar um farfalho moroso. Chico chega mais perto deles, o focinho gelado e úmido roçando as pernas da mulher, pedindo atenção, um último afago do dia. Dentro da casa, o pai apaga a luz da cozinha e olha para a sua família pela janela. Ele não diz palavra, mas o riso afetuoso e o meneio leve da cabeça falam alto: ele também deseja um último afago.

A mãe acena ao marido e enterra a cabeça nos cabelos macios do filho, inspirando profundamente o aroma adocicado de menino. Então ela sente uma saudade dorida desse pequeno que, antes que ela se dê conta, vai ficar grande, tão maior do que ela, um gigante a trilhar os próprios caminhos. Ela não o levará ao colo para sempre; não fará escolhas por ele; não estará presente para protegê-lo do frio, do escuro nem da solidão. Ela cerra os olhos contra a pele morna da bochecha do menino, já vislumbrando o homem que ele será. Não haverá tempo para que ela o ensine todas as palavras, os versos, as histórias e canções. A mulher compreende, então, que nem mesmo todo o ensejo do mundo lhe bastaria e ao filho, porque semear é correr contra o tempo.

Mas, nesta noite, ela ainda tem tempo. Sob o manto salpicado de estrelas e mal iluminado pela lua a minguar, abraçados os dois, ela é grande e ele, menino. No gramado macio, à espera do ipê que há de florir em plena exuberância na próxima primavera, ela ainda pode tomar a vida nas mãos e remendar-lhe os buracos, traçar os pontilhados, colorir o que desbotou, resgatar o que se perdeu, refazer, recompor, consertar. E porque em noite de inverno e quando se tem pouco mais de um ano a mãe da gente pode tudo, a mulher acende o breu com um sorriso e sussurra ao menino:
"Não tem problema, filho. A mamãe cola a lua para você".

Um comentário: