8 de março de 2019

NÃO dê flores; estenda a mão


O Expresso vinha abandonado às traças já há algum tempo. Sabe como é; a vida prática e repleta destes pormenores importantíssimos e chatíssimos que ninguém pode deixar para depois - como trabalhar doze horas por dia, criar os filhos, cuidar da mente, do corpo, da vida alheia e ainda acompanhar o circo mambembe de Brasília em plena chuva dourada carnavalesca - atropela a introspecção, esta que impera sobre os sentidos e põe em ordem as ideias para que as palavras, embrião-pensamento, se torne esta coisa concreta que você pode ler agora.

Mas toda hora é qualquer hora para sair da inércia ou, neste caso, para entrar na toca do coelho de Alice no país das ideias e da reflexão. Porque basta chegar o bendito mês de março, essa época de águas abundantes e planejamento e cuidado urbanos nem tanto, temporais, deslizamentos de terra, enchentes com inúmeros desabrigados e, neste ano, Carnaval politizado, com direito a presidente chateado e bloqueado no Twitter e uma Sapucaí alagada, para mulheres brasileiras de toda idade, cor, credo e conta bancária começarem a receber "correntes" de parabéns pelo Dia Internacional da Mulher no WhatsApp. E a desinformação sobre a homenagem não para por aí. Promoções em churrascarias, ofertas imperdíveis (sic) em lojas de eletrodomésticos, rosas murchas ofertadas por funcionárias exaustas em postos de gasolina, jantares a dois em meio a silêncios constrangedores, parabéns por ser mulher (!), ditos entre olhares em elevadores impessoais à guisa de bom dia e, como não, a indefectível promoção do motel pertinho da sua casa. Mas essa oferta é enviada exclusivamente para celulares e emails de clientes masculinos, por motivos óbvios e, claro, machistas.

Nenhuma dessas mensagens-spam ou de corrente me abalou grandemente. Todo ano é sempre a mesma ladainha insossa e desprovida de conteúdo. Mas toda hora é qualquer hora para sair do próprio centro ou, neste caso, para dar um basta a si mesmo e deixar claro para o mundo, ainda que o "mundo" seja o infinitesimal e inflado universo da bolha que cerca a cada um de nós, que há algo de muito errado nesta concepção cultural e sócio-política do Dia da Mulher e, de quebra, do feminismo. Talvez ainda mais, e sobretudo, porque o dia tenha vindo no vácuo deste Carnaval tresloucado pela politica conturbada que se vive no país, pela noção incrivelmente torta e extremista que o lado da direita tem do lado da esquerda e vice-versa, do caleidoscópio cinza e horrendo de acontecimentos que vem soterrando tudo e todos, literalmente, em lama, em fogo, em água, em sangue, num ódio e numa confusão que estreitam a noção de liberdade, de esperança, da própria existência do brasileiro.

Ocorre que, em meio ao caos que existe em paralelo às questões da mulher, há ainda uma forma torpe e completamente distorcida de se "celebrar" o Dia Internacional da Mulher, definindo-a por estereótipos absurdos e inadmissíveis. As águas de março não trouxeram bossa, mas uma enxurrada de posts nas redes sociais sob o mote "ser mulher é", correntes e mensagens publicitárias no WhatsApp, ideias repetidas e perpetuadas ad nauseum de figuras de mulheres abstratas, mulheres-personagens, mulheres que outros indivíduos desejam que a mulher seja, ou imponham que ela seja a todo custo: louvores para a mulher mãe (como se o pai pudesse ser mãe, mas vá lá...), a mulher esposa, a mulher namorada, a mulher que trabalha, a mulher temente a Deus (!), a dona de casa (esta já até perdeu a alcunha de mulher), a mulher amante (porque ela tem tanto valor quanto a esposa), a mulher que treina (?), enfim, toda sorte de categorias que vão do pleonasmo ao simplesmente esdrúxulo. E, ainda assim, o que fica muito claro é que ainda inexiste a compreensão do significado real desse dia ou, sob uma lógica menos leibniziana, há um fingimento de que esta forma patética de elogios e celebração é o que cabe à mulher e a representa.

A ideia de celebrar o Dia Internacional da Mulher surgiu nos EUA e na Europa, no final do século XIX e início do século XX. O contexto eram as lutas feministas por melhores condições de vida e de trabalho, e pelo direito de voto. A a dor e a morte também ajudaram. Um incêndio catastrófico numa fábrica de tecidos em Nova York, em março de 1911, que matou 129 mulheres e 23 homens, também impulsionou esta luta. É nesse cenário que se inicia o movimento de emancipação da mulher, e os desdobramentos sociais, políticos e econômicos desse movimento mudaram profundamente a sociedade e a forma como esta se organiza. Foi devido a essas conquistas que as operárias e sufragistas guerreiras do século XIX pariram o Dia Internacional da Mulher: para lembrar a luta, para celebrar a dor que deu frutos, para berrar para o mundo dos machos que a fêmea tem força, tem voz, tem vez.

No entanto, ainda não há conclusão ou vitória possíveis para a luta por condições de trabalho justas, por direitos plenos, pela superação de preconceitos de gênero e, sobretudo, pelo fim da violência contra a mulher. Em fevereiro deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou que, em menos de dois meses, ao menos 126 mulheres foram mortas no Brasil, além de outros 67 casos de tentativa de feminicídio, em mais de 90 cidades e 21 estados. Somos o primeiro país em números de feminicídio no mundo, uma estatística não apenas apavorante, mas acima de tudo tremendamente abominável. É é para organizar a sociedade civil na luta contra essa barbárie, pelo direito de voz a todas as mulheres, e pela igualdade plena de gênero, que o movimento feminista existe e relembra o Dia Internacional da Mulher. Não é para mostrar os peitos na rua, urinar, defecar, e toda sorte de loucuras escatológicas que tentam fazer os desavisados acreditar. É para garantir que você, que eu, sua irmã, sua esposa, sua mãe, e toda e qualquer mulher existam em sua integralidade humana, invioláveis.

Por isso, não parabenize uma mulher por ser mulher no dia 8 de março. Isso é tão surreal quanto parabenizar um homem por ser homem em qualquer dia do ano. Não lhe compre eletrodomésticos de presente; isso é escravizante, é preconceituoso, é um deboche. Ao contrário, abrace a causa do movimento feminista por igualdade de gênero e de condições sociais e de trabalho; não julgue uma vítima de feminicídio ou justifique o ato criminoso por preconceito cultural; não faça comentários machistas; não crie o seu filho para “tomar” e a sua filha para “receber”; não perpetue a cultura da mulher frágil e dependente, ou exploradora e usurpadora. Neste 8 de março, não dê flores; estenda sua mão.

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