14 de março de 2019

não faça como o tio sam


O vídeo acima não é nenhuma novidade; vem do país líder no número de mass shootings (tiroteios em massa) no mundo. O vídeo é institucional, e foi feito em dezembro de 2012, por ocasião do tiroteio na escola do ensino fundamental Sandy Hook, em Connecticut, Estados Unidos. Adam Lanza, com então 20 anos, dirigiu até a escola numa manhã de sexta-feira e utilizou duas pistolas de calibre pesado para abrir fogo contra alunos e funcionários da escola. Ele feriu duas pessoas e matou 20 crianças entre seis e sete anos de idade, além de seis funcionários, dentre eles professores, assistentes, a psicóloga e o diretor da escola. Lanza cometeu suicídio logo após os disparos aleatórios. Antes do tiroteio, entretanto, ele também havia atirado na própria mãe e a matado, o que a polícia viria a descobrir logo em seguida.

O incidente em Sandy Hook é mais um dos que entram no rol das bizarrices da sociedade americana, que engendra jovens que, aparentemente, matam a torto e a direito. No entanto, Sandy Hook em especial, pelas próprias circunstâncias e pela eventual repercussão política, tornou-se o tiroteio em massa com mais vítimas fatais em uma escola nos EUA, e o quarto com mais vítimas fatais cometido por apenas um atirador. O vídeo faz parte de uma iniciativa de familiares de vítimas de Sandy Hook. Eles criaram a ONG "Sandy Hook Promise", que orienta pais, professores, adolescentes e a comunidade a reconhecer sinais - na maioria das vezes ignorados ou desconhecidos por familiares e docentes - de apologia às armas e à violência, e de bullying, depressão e risco de suicídio em adolescentes. Mais do que isso, a ONG trabalha para conscientizar os americanos em relação à intervenção federal em políticas mais severas de controle do porte e uso de armas.

Sandy Hook Promise  (saiba mais)

Criar uma ONG como a Sandy Hook Promise não é demagogia de esquerda, como alguns afoitos extremistas hão de apontar, mas uma tentativa de trazer objetividade e compreensão analítica a um ato de violência que deve estar associado não apenas a questões culturais e sociais, mas principalmente políticas. De acordo com o "Gun Violence Archive", órgão americano que contabiliza o número de incidentes e vítimas envolvendo armas de fogo, 340 mass shootings ocorreram nos EUA apenas em 2018. Embora o CRS, órgão de pesquisas de política pública do Congresso americano, admita que não haja uma definição amplamente aceita do conceito de tiroteio em massa, um evento onde um indivíduo atira em quatro ou mais pessoas indiscriminadamente e as mata deve ser categorizado como tal. Entretanto, diante das consequências de um mass shooting para as famílias das vítimas, para a sociedade e para a política pública, pouco importa o nome dado aos bois nesse caso. A mancha de sangue e a mácula moral falam mais e mais alto. 

Os dados do "Gun Violence Archive" mostram, entretanto, que quando se trata de posse e porte de armas e de violência, o buraco é sempre mais embaixo. Em um total de mais de 57 mil incidentes com armas de fogo nos EUA em 2018, 340 constituíram tiroteios em massa. Por mais assombrosos, aleatórios e violentos, não foram a maioria. Incidentes durante invasão de domicílio, por exemplo, contabilizaram 2.095; o número de disparos acidentais foi de 1.617; e de defesa pessoal, 1.805. Esses números apontam diretamente para o resultado da facilidade ao acesso às armas de fogo. Mesmo nos casos de legítima defesa - bandeira máxima da 2a Emenda da Constituição americana, promulgada em 1789 e segundo a qual todo cidadão tem o direito de portar armas e formar milícia organizada para proteger um Estado livre, o uso de armas de fogo por civis incorre no aumento da violência doméstica e na comunidade, no aumento de ferimentos (fatais e não fatais) entre os envolvidos, e no aumento de mortes.


Ainda assim, o saldo de tiroteios em massa, principalmente quando ocorrem em escolas, é estupidamente mais contundente, tanto na representatividade numérica quanto na força que as notícias ganham através do seu pathos e do ethos do leitor, por exemplo. Um atirador que mata a própria mãe, vinte crianças e seis funcionários de uma escola, e depois dá cabo da própria vida com um tiro na cabeça, da forma mais casual possível, tem um peso insuportável; é algo injustificável. Não há formas de se construir uma ponte, pinguela que seja, entre este ser-humano dantesco e incompreensível e um que usou a mesma arma para se defender de um assaltante que invadiu seu apartamento no meio da noite e, acidentalmente, tirou a vida não apenas do ladrão, mas a da esposa e da filha. Tal comparação é impossível porque esses universos, ambos segregados mas contraditoriamente amalgamados em violência, são de fato intransponíveis. A única coisa que une o adolescente matador insano e o marido que tenta defender sua família do malfeitor é a arma de fogo; todo o resto que flutua entre esses personagens, toda a vã filosofia, a discussão acadêmica e a treta familiar são questões morais secundárias que não pertencem ao dilema em si. E armas de fogo, os preceitos que as regem e quem deveria utilizá-las na sociedade são uma questão política, e não moral.

Propor debates políticos de gun control nos EUA, com medidas de controle e restrição ao porte e à posse de armas de fogo, é algo culturalmente complexo. Parece haver uma noção primal de que o americano perderia seus direitos inerentes de cidadão e, por conseguinte, de ser humano, se tivesse o seu direito de portar armas garantido pela 2a Emenda revogado. O americano é uma espécie de iconoclasta ao seu modo, onde os símbolos religiosos são uma série de referências kitsch do universo cultural americano que o cidadão verdadeiramente WASP cultua, dentre elas a indefectível figura do cowboy armado até os dentes. Restringir-lhe este poder, este direito, é mexer em um vespeiro político de mais de duzentos anos, e que muitos analistas e sociólogos não veem com otimismo em termos de mudanças. Isso porque a sociedade americana, de acordo com estudiosos, é estruturalmente violenta. Literal e metaforicamente violenta. Engendrada numa violência política e sociológica que move o próprio país e os cidadãos, que quebra a inércia e gera cinética, que promove a própria história. Tanto que a maior parte desse povo livre, democrático, informado e consciente prefere pagar o preço alto e sangrento do porte de armas em contrapartida à participação do Estado em um controle mais rigoroso do mesmo.

O tiroteio na escola da cidade de Suzano, em São Paulo, tem alguns elementos semelhantes aos de Sandy Hook, a começar pela história de um dos assassinos. Tivemos também outros tiroteios em outras cidades, outras mortes; todos leram sobre isso nos jornais e assistiram ao noticiário. Como nos EUA, esses casos são sempre muito noticiados, logo viram estatística. Mas as semelhanças com o tio Sam param por aí. Ou não? O presidente Jair Bolsonaro baseou sua campanha presidencial em grande parte no mote e na promessa da liberação do porte de armas de fogo, e muitos dos seus eleitores o apoiaram exatamente por isso. O Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, segundo o qual está proibido o porte de armas por civis, com exceção por necessidade comprovada, é criticado pesadamente em tempos onde a violência urbana é incontrolável, a polícia é ineficaz ou corrupta, e quando os líderes políticos prometem soluções "mágicas" e que não vão de encontro às causas reais dos problemas. Desemprego, tráfico de drogas, desigualdade social e econômica profunda, favelas controladas por milícias, tráfico de armamento pesado. Questões de ordem sócio-econômica e política complexas são as razões para o aumento da violência urbana, e armar a população não é uma solução para o problema, tampouco uma forma de evitar que ele ocorra novamente. Como os números do "Gun Violence Archive" apontam, o fato de um cidadão possuir uma arma de fogo não impede que a violência ocorra; estatísticas e estudos recentes apontam o contrário, na verdade. Estar armado, embora aumente a sensação de controle e de segurança do indivíduo em posse da arma, aumenta também as chances de erro do usuário e, portanto, de ferimentos, lesões e de morte entre os envolvidos em um provável incidente.

acesso a armas X conflitos com mortes (saiba mais)

A história brasileira é diferente da história americana e, enquanto povo, somos estruturalmente diversos. Não temos uma 2a Emenda, e isso talvez seja ótimo, porque somos livres para voltar atrás numa decisão de dois séculos. Ainda há tempo para que o governo como um todo - legislativo e executivo - repense sua decisão de flexibilizar o porte e a posse de armas de fogo, principalmente depois do evento em Suzano e da repercussão que a coisa toda gerou e ainda vai gerar. Ninguém quer carregar nas costas o peso da possibilidade de ficar feito os malucos dos americanos, um caso de tiroteio em escola por semana. Mais do que isso, a responsabilidade de fazer justiça com as próprias mãos traz consigo também o ônus do erro, da dúvida, do julgamento, da consciência. É para contornar este equívoco e para isso que existem o Estado e a política, fundamentalmente para regulamentar a vida em sociedade. Se cada homem decidir tomar para si o papel de Leviatã, empunhar uma arma e fazer justiça, haverá poucos e parcos heróis e paladinos quixotescos, mas copiosos matadores de aluguel e assassinos em série. 

10 de março de 2019

a bruxa da vez



Após a polêmica com o vídeo escatológico envolvendo samba, (purp)urina, glitter e paetês no Twitter, aventura que lhe rendeu duras críticas tanto de opositores quanto de apoiadores, Bolsonaro continua tomando decisões importantíssimas no terreno que mais lhe apetece:  a vida sexual (alheia). A mamadeira de piroca e o kit gay, ambos objetos tão fictícios quanto unicórnios, foram deixados de lado. Dessa vez, é algo muito real e fundamental para a educação sexual e a saúde de adolescentes que está em jogo.

O inimigo da vez é a caderneta de saúde do adolescente. As páginas finais da caderneta, apontou o presidente, trazem imagens “inadequadas para crianças”. Há uma ilustração de uma vulva e outra que ensina o leitor a colocar um preservativo em um pênis. Bolsonaro orientou pais e mães a verificar a caderneta e, se acharem que é o caso, arrancar as páginas finais. Também disse que o Ministério da Saúde imprimirá novas cadernetas, sem essas páginas e a um custo mais baixo. 

Porque, como já sabemos, educação sexual não é um papel de profissionais conceituados da escola e de um estado laico, segundo o presidente e sua ministra evangélica da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mas dos pais e da família, por mais tortos, preconceituosos, abusivos e ignorantes que sejam. Segue a foto “inapropriada” (sic) de uma das páginas que o presidente quer arrancada da cartilha, cujo conteúdo, como já diz o nome, é educativo.



8 de março de 2019

NÃO dê flores; estenda a mão


O Expresso vinha abandonado às traças já há algum tempo. Sabe como é; a vida prática e repleta destes pormenores importantíssimos e chatíssimos que ninguém pode deixar para depois - como trabalhar doze horas por dia, criar os filhos, cuidar da mente, do corpo, da vida alheia e ainda acompanhar o circo mambembe de Brasília em plena chuva dourada carnavalesca - atropela a introspecção, esta que impera sobre os sentidos e põe em ordem as ideias para que as palavras, embrião-pensamento, se torne esta coisa concreta que você pode ler agora.

Mas toda hora é qualquer hora para sair da inércia ou, neste caso, para entrar na toca do coelho de Alice no país das ideias e da reflexão. Porque basta chegar o bendito mês de março, essa época de águas abundantes e planejamento e cuidado urbanos nem tanto, temporais, deslizamentos de terra, enchentes com inúmeros desabrigados e, neste ano, Carnaval politizado, com direito a presidente chateado e bloqueado no Twitter e uma Sapucaí alagada, para mulheres brasileiras de toda idade, cor, credo e conta bancária começarem a receber "correntes" de parabéns pelo Dia Internacional da Mulher no WhatsApp. E a desinformação sobre a homenagem não para por aí. Promoções em churrascarias, ofertas imperdíveis (sic) em lojas de eletrodomésticos, rosas murchas ofertadas por funcionárias exaustas em postos de gasolina, jantares a dois em meio a silêncios constrangedores, parabéns por ser mulher (!), ditos entre olhares em elevadores impessoais à guisa de bom dia e, como não, a indefectível promoção do motel pertinho da sua casa. Mas essa oferta é enviada exclusivamente para celulares e emails de clientes masculinos, por motivos óbvios e, claro, machistas.

Nenhuma dessas mensagens-spam ou de corrente me abalou grandemente. Todo ano é sempre a mesma ladainha insossa e desprovida de conteúdo. Mas toda hora é qualquer hora para sair do próprio centro ou, neste caso, para dar um basta a si mesmo e deixar claro para o mundo, ainda que o "mundo" seja o infinitesimal e inflado universo da bolha que cerca a cada um de nós, que há algo de muito errado nesta concepção cultural e sócio-política do Dia da Mulher e, de quebra, do feminismo. Talvez ainda mais, e sobretudo, porque o dia tenha vindo no vácuo deste Carnaval tresloucado pela politica conturbada que se vive no país, pela noção incrivelmente torta e extremista que o lado da direita tem do lado da esquerda e vice-versa, do caleidoscópio cinza e horrendo de acontecimentos que vem soterrando tudo e todos, literalmente, em lama, em fogo, em água, em sangue, num ódio e numa confusão que estreitam a noção de liberdade, de esperança, da própria existência do brasileiro.

Ocorre que, em meio ao caos que existe em paralelo às questões da mulher, há ainda uma forma torpe e completamente distorcida de se "celebrar" o Dia Internacional da Mulher, definindo-a por estereótipos absurdos e inadmissíveis. As águas de março não trouxeram bossa, mas uma enxurrada de posts nas redes sociais sob o mote "ser mulher é", correntes e mensagens publicitárias no WhatsApp, ideias repetidas e perpetuadas ad nauseum de figuras de mulheres abstratas, mulheres-personagens, mulheres que outros indivíduos desejam que a mulher seja, ou imponham que ela seja a todo custo: louvores para a mulher mãe (como se o pai pudesse ser mãe, mas vá lá...), a mulher esposa, a mulher namorada, a mulher que trabalha, a mulher temente a Deus (!), a dona de casa (esta já até perdeu a alcunha de mulher), a mulher amante (porque ela tem tanto valor quanto a esposa), a mulher que treina (?), enfim, toda sorte de categorias que vão do pleonasmo ao simplesmente esdrúxulo. E, ainda assim, o que fica muito claro é que ainda inexiste a compreensão do significado real desse dia ou, sob uma lógica menos leibniziana, há um fingimento de que esta forma patética de elogios e celebração é o que cabe à mulher e a representa.

A ideia de celebrar o Dia Internacional da Mulher surgiu nos EUA e na Europa, no final do século XIX e início do século XX. O contexto eram as lutas feministas por melhores condições de vida e de trabalho, e pelo direito de voto. A a dor e a morte também ajudaram. Um incêndio catastrófico numa fábrica de tecidos em Nova York, em março de 1911, que matou 129 mulheres e 23 homens, também impulsionou esta luta. É nesse cenário que se inicia o movimento de emancipação da mulher, e os desdobramentos sociais, políticos e econômicos desse movimento mudaram profundamente a sociedade e a forma como esta se organiza. Foi devido a essas conquistas que as operárias e sufragistas guerreiras do século XIX pariram o Dia Internacional da Mulher: para lembrar a luta, para celebrar a dor que deu frutos, para berrar para o mundo dos machos que a fêmea tem força, tem voz, tem vez.

No entanto, ainda não há conclusão ou vitória possíveis para a luta por condições de trabalho justas, por direitos plenos, pela superação de preconceitos de gênero e, sobretudo, pelo fim da violência contra a mulher. Em fevereiro deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou que, em menos de dois meses, ao menos 126 mulheres foram mortas no Brasil, além de outros 67 casos de tentativa de feminicídio, em mais de 90 cidades e 21 estados. Somos o primeiro país em números de feminicídio no mundo, uma estatística não apenas apavorante, mas acima de tudo tremendamente abominável. É é para organizar a sociedade civil na luta contra essa barbárie, pelo direito de voz a todas as mulheres, e pela igualdade plena de gênero, que o movimento feminista existe e relembra o Dia Internacional da Mulher. Não é para mostrar os peitos na rua, urinar, defecar, e toda sorte de loucuras escatológicas que tentam fazer os desavisados acreditar. É para garantir que você, que eu, sua irmã, sua esposa, sua mãe, e toda e qualquer mulher existam em sua integralidade humana, invioláveis.

Por isso, não parabenize uma mulher por ser mulher no dia 8 de março. Isso é tão surreal quanto parabenizar um homem por ser homem em qualquer dia do ano. Não lhe compre eletrodomésticos de presente; isso é escravizante, é preconceituoso, é um deboche. Ao contrário, abrace a causa do movimento feminista por igualdade de gênero e de condições sociais e de trabalho; não julgue uma vítima de feminicídio ou justifique o ato criminoso por preconceito cultural; não faça comentários machistas; não crie o seu filho para “tomar” e a sua filha para “receber”; não perpetue a cultura da mulher frágil e dependente, ou exploradora e usurpadora. Neste 8 de março, não dê flores; estenda sua mão.