26 de agosto de 2011

estrangeiro


Sentimento assustador é descobrir-se estrangeiro. Um forasteiro em si mesmo, alógeno encarcerado num corpo que é invisível aos próprios olhos, à deriva, na anomia da sensação de não-pertencer, não-poder, não-estar. É estrangeiro tudo que foge aos moldes, à ordem e aos hábitos; é o alienígena que pousa em terras desconhecidas e, por trás dos seus óculos de ET, enxerga o cotidiano túrbido dos nativos; o estranho no ninho. Em meio aos iguais - entre si, mas não para com ele - o estranho repara-lhes as bocas se movendo, escuta-lhes o som das palavras e vê as cores dos sorrisos e o borrão das lágrimas, mas, ainda assim, não compreende o que capta a sua percepção. Em território estrangeiro, o forasteiro é ignoto; caminha entre pares e, na dessemelhança, traça rotas cegas ao sabor das correntes, insulado, fragmentado, atinente à nada.

Para o estrangeiro nato, que jamais memoriza os pontos de referência, as avenidas largas e os cruzamentos das terras que, sem sucesso, tenta habitar, mapas nem sistemas integrados de GPS vem a calhar. Rimas, tampouco. O turista é, por natureza, torto, perdido, míope e alheio. Aliena-se e é alienado. Abraça o opróbrio para escapar à humilhação do ostracismo: late e morde antes de ver o ladrão adentrar o quintal. Olha as palmas das mãos e as desconhece. Em linhas cruzadas, ignora o destino que a si cabe traçar. De quem são esses anéis? A que se propõem digitais que apontam para uma não-identidade...?

Há quem nasça pertencente ao mundo: adaptável, moldável, volátil. Co-cidadão. Na contramão destes, os forasteiros: andarilhos cosmopolitas, caipiras high tech, vampiros do meio-dia. Burgos, aldeias, vilas, cidades, países inteiros a eles se apresentam tão obtusos quanto à rotina dos dias: casa, trabalho, sorvete, cerveja, cigarro, casa. Ou o contrário. Fugiu-me à memória. Pois carentes de memória episódica somos os estrangeiros. Em nós, sobeja o peso das correntes do passado semântico: terminologia elegante para algo nada vistoso: a melancolia e os aspectos gerais da lembrança, desta que não delimita, mas, ao contrário, borra o cenário que pintam os moradores.

Sensação agreste esta de saber-se estranho, de que o tempo corre a milhas à frente e ele, analfabeto em línguas pátrias e estrangeiras, perde bondes e entradas por não ler as placas. Por não pertencer, o estrangeiro deveria sentir-se leve, livre do peso das raízes, da responsabilidade, da opressão que é nascer, viver e morrer na mesma e única casa. Entretanto, por tão frugal e vaporosa a sua existência, o alienígena arrasta consigo o peso de toneladas moleculares, cerebrais, sentimentais. Âncoras que não o seguram ao porto, mas lhe retardam as velas e retalham o convés. Peso morto. O ônus inafiançável de quem é estrangeiro e prisioneiro de si.    

12 comentários:

  1. Anônimo26.8.11

    excelente...

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  2. Obrigadíssima! Bom escrever novamente. Melhor ainda receber comentários.

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  3. Anônimo27.8.11

    Vs sempre demonstrou uma profunda capacidade de colocar sentimento nas palavras.
    Parabéns !!!
    Sinto saudades...
    FC

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  4. Marcelo27.8.11

    Eu gostei como sempre. Mas vc sendo uma pessoa muito culta E inteligente usou tanta palavra difícil que para mim, pobre engenheiro que vê nos números seus amigos e nas palavras estrangeiros, nao fluiu. Mas há emoção e isso que te diferencia. Bjs

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  5. Erica27.8.11

    Oi Roberta, muito legal o texto! Vc trabalhou bem no tendão... hehehe. É assim mesmo, meio manco, a torto e a direito, que a gente vai caminhando nas "esquinas da vida"...

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  6. Anônimo 2
    Obrigada. É verdade; não vejo outra forma de escrever, a não ser com sentimentos. Muito, muito obrigada. Abraço grande.

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  7. Marcelo, meu amigo, não há tantas palavras difíceis assim, vai. O bom desses textos, sentimentais ou não, é que levam a gente a usar o dicionário, não é mesmo? Um abraço gigantesco!

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  8. Olá, Erica! Obrigada, querida. É, mesmo. Aos trancos e barrancos vai-se caminhando, imagino. Abraço muito, muito grande.

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  9. Alberto27.8.11

    Oi Roberta, estou muito feliz pelo seu retorno e mais feliz ainda, pelo retorno com um texto brilhante!!! Aliás, estamos todos felizes,porque o expresso faz parte de nossas vidas.Um abraço enorme !!

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  10. Obrigada, meu amigo. Saber que o Expresso faz parte das vidas de gente tão importante e única como vocês é um alento sem medidas. Abraço enorme.

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  11. Roberta Brandão23.9.11

    gostando de te conhecer.

    copiei.

    vontade de ter um blog, desenvolver a escrita, trabalhar ideias, dialogar com meus pensamentos.

    a culpa é sua.

    belos textos. parabéns.

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  12. Obrigada, Beta. Faz o seu. Hoje mesmo! A culpa vai ser nossa, e eu vou adorar ler os seus escritos, tenho certeza. Abraço enorme!

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