27 de agosto de 2011

escolhas - do (i)limitado

Tim Roth, em cena do filme "A Lenda do Pianista do Mar"

Em 1998, o cineasta italiano, Giuseppe Tornatore, dirigiu "A Lenda do Pianista Do Mar". O filme é uma fábula travestida de alegoria, a especialidade de Tornatore. Aqui, um bebê recém-nascido é abandonado pelos pais num navio, na alvorada do ano de 1900. Três são as personagens que sustentam a alegoria do diretor: (i) o transatlântico onde o menino nasce e é adotado por um trabalhador das fornalhas, embarcação cujo único destino, por anos a fio, é conduzir imigrantes europeus ao Novo Continente, a América dos cansados, pobres e desnorteados; (ii) o mar, sempre alto, gigantesco e prenhe de novidades. E o órfão, nomeado então "1900", morador eterno do navio, pianista autodidata e virtuoso, que aprende a ler com as colunas de corrida de cavalos nos jornais de seu pai adotivo. Além destes, há Max, o trompetista e narrador da história, o elo que une os espectadores à ilha que o próprio pianista personifica.

1900 passa a vida cruzando o Atlântico, convivendo com gente movida por sonhos, anseios e esperança, entretendo a tripulação com a sua exímia habilidade ao piano; uma vida de idas e voltas, onde é ouvinte atento e músico extraordinaire. Um gênio humano, que acolchoa a quem precisa, alternando silêncio e música. Entre milhares de passageiros com pouco mais na bagagem além de sonhos, 1900 é o sonhador maior que, através da platéia, realiza as próprias aspirações. No entanto, o intrigante na história dessa figura não é o seu talento nato, mas o motivo pelo qual alguém tão enormemente talentoso e com tamanho potencial e carisma jamais deixará o navio onde nasceu, cresceu e vive, nem mesmo quando este, anos depois, estará prestes a ser destruído por uma explosão.

No decorrer de décadas, quando transatlânticos deixariam de ser necessários aos imigrantes, 1900 recusa-se a abandonar o barco - trocadilhos à parte - e a sequer por os pés além do convés. Para compreender essa dinâmica em princípio surreal, basta assistir ao filme e deixar-se embalar pelas ondas e pela trilha sonora de Ennio Morricone. O pianista do mar de Giuseppe não é apenas um homem: ele é o barco, o mar e o piano; gigantesco em si mesmo, vê o infinito do mundo além da embarcação como uma limitação ao imensurável que a sua alma contém. 1900 é o ideal platônico de arte, de vida, morte e, principalmente, de amor. Ele apaixona-se uma única vez - na cena que, provavelmente, é a mais tocante do filme - e, diante da visão de um amor provável, improvisa a canção mais bela de sua vida.

 
"Quanto mais alto voares, maior o tombo". Este é um provérbio português. Um outro, inglês, muda o meio de transporte, embora se atenha ao tema: "os pequenos barcos não devem se afastar da margem". Ou, ainda: "muito para o leste, já é oeste". Todas variações sobre o mesmo tema. Um alerta tácito para quem enxerga o mundo como 1900: existe, sim, uma zona de conforto, a sombra que protege as asas de cera de Ícaro contra os calores fatais do mundo exterior à sua ilha. O horizonte é imenso, infindas são as possibilidades. Entretanto, tais como as teclas de um piano, finitos são os seres humanos, ainda que se possa compor, num átimo de segundo de vida, incontáveis elementos sinfônicos. A "música" que se compõe é eterna; o "pianista", mortal. Se fosse diferente, a vastidão do firmamento não se transformaria numa linha longínqua, onde o céu encontra o mar, parecendo-se despencar no nada. Pois assim é a "visão" do mundo: finita, ainda que numa ilusão de óptica.

Diante das múltiplas escolhas, toda a gente se confunde. Não é por acaso que o tempo passe, a tecnologia evolua e as organizações ainda usem o sistema de "marque a alternativa correta" para testar candidatos a vagas de emprego ou em universidades. A mente limitada, em constante busca pela moldura, não se sai muito bem com alternativas, o que dirá de múltiplas. E é na calada da alma, quando nenhuma sirene desperta para alertar sobre uma emergência de incêndio - ou naufrágio - que as múltiplas oportunidades embaralham mais a visão. Na conveniência das praças de alimentação, por exemplo, é inconveniente o número de opções de restaurantes. Na ausência de apetite, roda-se feito um galináceo tonto para encontrar o lugar ideal; mas, na hora da fome apertada, é o primeiro arroz-com-feijão que satisfaz. Dá-se, nesse momento, a limitação de si mesmo.

O que nos leva a optar por um caminho entre milhares, a tomar uma decisão em detrimento de outras? Não somos ilhas, nem tampouco mobília animada de navio, como a personagem de "A Lenda do Pianista do Mar". Se vivemos num mundo sem fronteiras, onde imperam a visão, extracorpórea e imediatista, e a mobilidade, presencial e virtual, qual o sentido em escolher apenas um trabalho, um hobby, um apartamento, uma cidade, uma mulher ou um homem quando, a rigor, podemos ter centenas? Para que compor apenas um tema e uma única melodia de amor quando se pode alternar ritmos, estilos, partituras, teatros...? De onde brotam as escolhas? E, o crucial, de onde brotam a necessidade ou a vontade de optar?

Conheço um casal. São uma dupla pouco convencional, onde a incompatibilidade fala mais alto do que a harmonia. Unidos pelo acaso, nenhum deles sabe exatamente o que os mantém juntos. Como escritora, tenho uma prerrogativa que falta aos meus leitores: posso escolher não mencionar nomes (ah, as escolhas...), contar uma história real à guisa de ficção e, por que não, trazer à baila uma experiência pessoal e alocá-la, ou melhor, encarapuçá-la em outras vidas. Cabe a você, que lê estas linhas, decidir. Em qualquer caso, a história é esta: duas pessoas contraditórias em si mesmas e entre si, para quem tomar uma decisão pode ser algo tão tortuoso a ponto de beirar a dor. Quando penso neles, vem-me à mente a ideia de que a vida e o mar os conduzem, e não o contrário. Têm fome, os dois; são mancos, precisam de muletas. E inseguros. Marujos covardes e pianistas canastrões, envergam-se sob o peso das opções e abrem mão das infinitas possibilidades. Talvez já nem saibam mais como escolher; apenas esperam ser escolhidos.

No entanto, não são como 1900. Em suas almas, não habita o incomensurável, mas a plena, pungente e inevitável limitação. Em sua solidão, descrença e fome, contentam-se com o arroz-com-feijão nosso de cada dia, sem ao menos verificar o restante do cardápio. Delimitam-se, pois. Esgarçam-se e afunilam-se até a total nulidade de si mesmos. Toupeiras cegas, mãos unidas no suor frio do medo, eles não abandonam o barco por amor, mas por preguiça de remar de volta à praia. Apiedo-me profundamente desse par de almas penadas, perdidas e pobres. Como nenhum deles costuma ler este Expresso, não temo pelo que possam pensar quando virem parte de sua história aqui exibida, para ilustrar um ponto de vista. A questão é: de onde nasceu a decisão de estarem juntos? Em outras palavras, teriam eles de fato optado ou, ao contrário, a inércia decidiu por eles? Sabendo-se tão limitados em si mesmos, por que se firmariam a um barco à deriva? Na fome e na emergência, é a refeição mais rápida e disponível que satisfaz. Mas, tendo atingido um platô de saciedade, o que legitima sua decisão? Indolência, comodidade ou pavor?

Estes são barcos pequenos demais para se afastar da margem; o leste desse casal há muito virara oeste. Aliás, são um comandante e um imediato sem bússolas. E, desmagnetizados os dois, remando em mar aberto ou voando alto, não é para o norte que apontam, mas para uma queda brutal. Seria uma felicidade podê-los ajudar a encontrar a si mesmos e, quem sabe, um ao outro. Mas temo não possuir a melhor das bússolas. Por outro lado, temo a vastidão, o infinito e as múltiplas escolhas; nunca me saio bem em testes objetivos. Se tivesse nascido em um navio, como o pianista do mar, é muito provável que eu não o abandonasse pelo simples temor de que, em face ao infinito do mundo, minha própria finitude e pequenez se agigantassem, engolindo-me tal qual um buraco negro e me implodindo como uma supernova. Continuo sem saber de onde brotam as decisões e, confesso, para mim o mundo é tão grande quanto o caminho que traço de casa para o trabalho e vice-versa. Como um navio-fantasma. O livre arbítrio é mesmo a maldição dos indecisos, cansados, pobres e desnorteados. E viva a liberdade.   

5 comentários:

  1. Olha! O filme eu não conhecia, mas recomendo então, fortemente, a leitura de "Novecentos - um monólogo", de Alessandro Baricco.
    Beijo, Roberta!

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  2. "A mente limitada, em constante busca pela moldura, não se sai muito bem com alternativas, o que dirá de múltiplas."
    Já dizia o bom gaúcho, né:?
    "Acontece que eu não tenho escolha, e por isso mesmo é que sou livre. Não sou eu o mentiroso, foi Sartre que escreveu o livro".

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  3. Gabriel! Sua passagem por aqui é sempre tão boa, esperada e proveitosa! Obrigada pela dica, amigo. Abração!

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  4. Alberto Lacerda28.8.11

    Roberta, seria a indecisão filha do medo? da falta de coragem? ihh, as alternativas já apareceram , rsrs.O fato é que quando temos que decidir sobre nossas vidas,no momento atual ou no futuro,a coisa complica.Existem pessoas que deixam se levar pelos acontecimentos da vida e são felizes , outras que tomam todas as decisões possíveis sobre suas vidas e sempre estão tristes. Eu perdi as certezas pelo caminho e não tenho certeza se quero reencontra-las pelo simples motivo de que quando as tive pouco me valeram.Confesso que há tempos aposentei minha bússola,por achar que buscar o norte nem sempre é o melhor caminho.E como já foi dito ,"Liberdade significa responsabilidade. É por isso que tanta gente tem medo dela ".

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  5. Lin-dís-si-mo o seu comentário, meu amigo. Que bom, que briza, que bem me faz ter leitores - e amigos como você. Abraço de panda!

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