Para os que amo. Os que importam.
Reza a lenda que caipira de verdade pode rodar o mundo, degustar os mais refinados vinhos, deleitar-se com os mais elaborados manjares, caminhar entre cosmopolitas e urbanoides e, ainda assim, jamais perder a sua essência de jeca. Gosto de caipiras. Um bocado. Em terras caipiras passei dias memoráveis, destes que revisito vez em quando, com uma pitada de saudade e a lembrança do cheiro de mato e da terra orvalhada do mês de julho. Não há orgulho nem embaraço em mim quando digo que sou caipira. Algumas coisas são como são simplesmente porque assim o são, sem que, para isso, deva haver elementos positivos ou negativos. Em certas ocasiões pergunto-me se, em tempos e lugares que habito, não seria sensato mascarar a minha essência Mazzaropi, ainda que esta seja um tanto conspurcada pela descendência de imigrantes alemães - afinal, o Amacio era italiano, o mais siciliano dos caipiras tupiniquins.
O jeca é, por excelência, o reverso do que se valoriza em tempos de, por um lado, ausência de fronteiras e limites físicos e, por outro, da abundância corrosiva de velocidade, informação e atividade. Mazzaropianos somos os introspectivos, à caça da lua cheia, de estrelas e vaga-lumes. Caipiras somos os que preferem se sentar à beira do riacho cuja música é familiar a voar léguas em busca dos desconhecidos sons do estrangeiro. Jeca de verdade acha um barato fincar os pés descalços na grama, dobrar as barras das calças e acocorar-se à sombra de uma mangueira. Não é por coincidência que o verbo "matutar", jeito caipira de se referir à introspecção elucubrativa, derive de outro vocábulo para designar o "jeca". O caipira até compreende que o mundo pode caber na palma de sua mão, em "iPortáteis" e afins, mas, para ele, o universo jamais deixará de ser um "mundão"; a praia será sempre um "marzão" e sociais com mais de meia dúzia de convivas são, inconteste, um comício. O jeca esconde os dentes quando sorri - tradição milenar, de gente que, bicho-do-mato, se envergonha e acabrunha com facilidade porque prefere o horizonte cercado e entrecortado por colinas à vastidão assustadora das planícies. Mas, punho cerrado sob o bigode a velar o riso, a gargalhada não foge aos olhos do caipira; está lá, boiando num lago pequeno, ainda que profundo, de uma raça cuja sina e senda é a terra, as raízes e o sereno.
É pelas raízes que o fincam ao tempo, à história e às emoções que o caipira, mais do que o homo urbanus, teme a perda, a rejeição e a vastidão. O matuto cheira a chuva antes que ela chegue, vê circundando a lua um aro amarelado que prevê a seca, ouve cigarras cantando e sabe que o tempo vai virar, mordisca o capim para saber se a terra está aguada ou enxuta. Sem céu, lua, insetos ou mato, a sabedoria crua e despida de certificados do capiau se perde, sua essência se esgarça até volatilizar e ele, o chapéu, o riso escondido e as decisões orientadas pelos sentidos passam a inexistir. Por isso o matuto é arraigado e receia embarcar e deixar a areia da orla para trás. E, quando ousa fazê-lo, retorna à poeira do chão batido, refresca a lembrança com memórias de naftalina e, inadvertidamente, se esconde. Todo caipira é metade tatu, metade avestruz; embuça-se para proteger a identidade, os sentidos e o riso.
Nessa tarde de domingo enervante, meio sol-meio nuvem, revisitei as origens caipiras. Aterrada em prédios, concreto, buzinas, freadas e maresia, a música cantada por lábios mudos de um iPortátio é a maneira mais conveniente, rápida, eficaz e doída para fazê-lo. Esse tipo de busca é, como o ritual de picar fumo de rolo, um mecanismo intrínseco, meio masoquista e muito doido do capiau. Algo parecido com os happy-hours regados a whisky, olhares de esguelha e piadas galhofas de escritório do homo urbanus. Mudam-se os cenários e as personagens, mas, no frigir dos ovos, as neuroses tão somente se transferem, adaptando-se a rótulos e conceitos, celas às quais sempre falhamos em escapar. Minha neurose "caipiro-dominical" foi cavar em terras imaginárias um buraco no qual pudesse me esconder, usando à guisa de enxada uma canção caipira: "Tocando em Frente". Quando Almir Sater e Renato Teixeira a compuseram, em meados da década de 1970, não imaginariam que uma música sertaneja seria regravada por todos os seus sucessores, sem mencionar demais nomes da música popular brasileira que nada têm a ver com o universo caipira. Mais do que isso: como compreender que uma letra de música jeca seria utilizada em escolas e universidades para análise de discuso? Coisa de gente da cidade grande, talvez, que vê poesia onde há e não há poesia.
Tocando em Frente
(Almir Sater / Renato Teixeira)
Ando devagar
Porque já tive pressaE levo esse sorriso
Porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte,
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei,
Ou nada sei
Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou
Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs
É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir
Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais
Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz
Se o urbanômetro do leitor for complacente, ele há de se permitir ouvir a melodia. Em tempos de You Tube, objeção estética seria a única razão para fazer o contrário. Foge-me à conta o número de vezes que já ouvi esta canção. Como disse antes, inexplicáveis e incompreensíveis são os mecanismos neuróticos, caipiras ou não. Desta vez, entretanto, a quinta e sexta estrofes me engasgaram. Pela primeira vez. Atingido pela epifania suprema, o Renato disse, em suas palavras, que viver não pode ser muito mais do que "simplesmente compreender a marcha e seguir em frente". Retardatários, embasbacados, atolados e empacados que o digam. Sou estrada? Certamente, embora outra canção, contraditoriamente, afirme que a vida seja um rio e, nós, canoa. Poesia e suas múltiplas interpretações, cara-pálida. Somos estrada porque, meio e fim em si mesmos, conduzimos a vida, nossos corpos e mentes. Compreensível. Mas, boiadeiros? Não tenho tanta certeza. Quem me garante que nós, e não a vida, as escolhas e suas conseqüências, é que não somos o gado?
Pode ser que tudo isso não passe do reflexo lusco-fusco de domingo. Ou, talvez, de um produto torto de matuto, que fica a matutar, embalado por canções de gosto duvidoso. Na roça, quando o sujeito olha para o horizonte e é visivelmente engolido pela retroalimentação das vãs filosofias, o caipira amigo logo pergunta: "Pensando na morte da bezerra? Deixa disso, rapaz!" Até o jeca mais encruado, que desconhece a existência e, portanto, a influência de Steve Jobs, entre outros gênios da modernidade e do passado, sabe que matutar demais acaba fedendo. Tal constatação não me escapa, caipira que sou. E ainda assim, em meio a todo escopo e prevenção matuta, por vezes penso-me e sinto-me gado, guiado por não sei qual boiadeiro. Em outras ocasiões, sou gado extraviado, sem dono, livre do abate, mas, por outro lado, sem pasto de qualidade. O que me leva a pensar no triste destino de nós, gado: aos melhores e mais vastos pastos, o abate certo, precoce, inevitável. Minha vaca parece ter ido para o brejo; minha bezerra, foi-se com a última enchente. E a minha égua, amarrada e selada, aguarda com olhos mansos e cansados, abanando com a cauda moscas ocasionais, o seu destino.
Cara pálida, minha menina de alma poética, com raízes definidas, mas ainda folha que flutua com o vento à espera ou ainda a procura do porto seguro... como sempre lindo... beijos.
ResponderExcluirAnos poderiam - e podem - se passar, universos paralelos podem se fundir, rios e mares podem correr e, ainda assim, este "anônimo" jamais seria desconhecido para mim. Ao contrário. Obrigada. Seu primeiro comentário aqui, após tanto tempo, é uma carícia inesquecível, ainda que tão distante. Beijo imenso, sempre.
ResponderExcluircara-pálida... termo mútuo cunhado em nossas matutadas = elocubrações mentais... por vezes, robs, via o mundo através de seus olhos, viram tanto mais que eu ... e ao mesmo tempo, eles voltaram-se pra sa terra, foram, "mansos e cansados" olhar de novo suas mendes raízes... não vi mais o mundo através deles, mas entendi que quanto mais se olha, mais se vê é dentro da gente mesmo ... e bora mascar um graveto de azedim, porque realmente "matutar demais fede" e saudar demais, dói... sou msm matuta, como tu... e matutos nao se despedem dizendo certas coisas...
ResponderExcluirBom que você voltou, Roberta. Sua prosa faz falta a quem gosta de uma boa leitura. E que o mundo fique um pouquinho mais matuto. Fará bem a todos nós. Beijo e continue!
ResponderExcluirMaíra, minha irmã, que saudade das nossas matutadas... Quantas vezes EU me vi por esses seus olhos de jabuticaba, doces, perenes, sempre prenhes de possibilidades para um amigo leal e verdadeiro. Quantas vezes você, minha caipirapolita, me tirou do chão, me banhou em luz, me fez ser gente de novo? Seu comentário me emocionou. Por essas e outras, despeço-me dizendo: te amo.
ResponderExcluirAndré, escrever aqui e ver um comentário seu já se tornou mais do que um incentivo para escrever: virou vício. Abraços, meu matuto amigo. E que todos tenhamos coragem de admitir essa porção incrível do ser.
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