29 de outubro de 2011

um cacho de siris

Para Rosa Maria Maneschy, a garota dos caranguejos


Meu primeiro aluno após quatro anos sem lecionar foi uma juíza com nome de flor: Rosa. A aula começava às sete e meia da manhã de uma segunda-feira ensolarada, embora um pouco fria. Naquele dia - para mim inesquecível por ser um momento em que retomava um cenário para preencher lacunas - cheguei à escola trinta minutos antes da hora marcada. Em meus padrões, uma time manager reconhecidamente fracassada, isso é muita coisa. Fiquei à espera de Rosa num sofá confortável, acompanhada por café amargo num copinho de plástico. Ela chegou às sete e quinze. "Atrasada" jamais seria um vocábulo comum ao vernáculo de Rosa. Não havíamos nos encontrado antes, de maneira que não estranhei quando lhe perguntei quem seria a sua professora e, com sua voz característica, suave, ainda que precisa, a juíza tenha me respondido: "Fernanda". Tudo era absolutamente insólito para mim naquela manhã: a nova escola, a cidade grande, os ônibus desconhecidos, o mar a duas quadras dali. Lembro-me de ter pensado que, se éramos apenas nós ali, às sete e meia da manhã de segunda-feira, sua professora deveria ser eu mesma. Quinze minutos depois, começávamos a aula. E, em algumas semanas, eu (re)descobriria com Rosa que a parte mais incrível de ensinar ainda é, definitivamente, aprender.

Rosa não é apenas a aluna mais aplicada que já tive; é, possivelmente, a mulher mais disciplinada, equilibrada, serena e divertida que já conheci. Ela é miúda, com olhos azuis grandes, que se tingem de um anil ofuscante quando o céu do Rio de Janeiro se abre sobre a cabeça do Cristo e sobre as nossas. Professores são meio como estátuas: alunos passam por nós, deixando vestígios, cicatrizes, impressões digitais. Haverá o dia em que Rosa e eu não seremos mais aluna e professora, vínculo que, inexoravelmente, tem prazo de validade. No entanto, resistirão ao tempo o aprendizado, sua risada cristalina e a expressividade de suas mãos. Rosa fala com aquelas mãos, pequenas e quadradas, adornadas com anéis que admiro. Ela gosta de lambretas que, cúmplices, chamamos de scooters. Quando Renato e Lucas, as crias de Rosa e Márcio, estiverem suficientemente independentes para seguir a vida solo - e não interpretarem uma motocicleta como sinal de rebeldia - ela vai comprar uma dessas motocas pequenas e charmosas, guardar algumas revistas Vogue na cestinha traseira e pilotar até à praia, alheia ao trânsito infernal de domingo e aos flanelinhas inconvenientes. Porque Rosa Maria é assim: brisa fresca e azulada, esgazeando-se sobre as tacanhas disputas cíveis da vida. 

E, por ser leve, lembranças não velam os olhos de Rosa. "Melancolia" é outro vocábulo que a juíza desconhece, motivo a mais para que, aqui, a professora aprenda com a aluna. Com leveza e alegria, Rosa conta-me histórias do tempo em que era menina, quando não imaginaria amar bater o martelo e quando o mundo, como ela, costumava ser pequeno, descomplicado. Minha aluna não é apenas justa; é uma excelente contadora de histórias. Sorrio agora, vendo na memória o seu riso largo e as mãos que contam casos. Pergunto-me se ela se dá conta do talento que possui para contar uma história, na língua que seja. Hoje, abuso da licença poética, quebro patentes à revelia e faço minhas as suas palavras, para escrever um conto de lembranças dessa moça paraense por origem, carioca na alma e londrina por "química", no coração.  

Em criança, Rosa costumava ir com os pais à casa de praia que possuem numa cidade do Litoral Costa Verde. No trajeto de ida, seu pai estabeleceu aquele que seria um ritual de infância feliz e, posteriormente, uma lembrança embrulhada em sons, aroma e paladar. Nas cidades litorâneas dessa região, havia vendedores de siris, que expunham a sua mercadoria nos acostamentos da estrada. Rosa tenta explicar em detalhes as diferenças entre caranguejos e siris. Ela é categórica: são criaturas completamente díspares. No zodíaco, caranguejos são o símbolo do meu signo; na história de Rosa, o personagem principal são os siris que seu pai comprava no caminho para a praia.

Siris não são como peixe, camarões ou coelhos; devem estar vivos e frescos no momento em que os compramos. Do contrário, a fervura poderia mascarar o gosto da carne em decomposição e a refeição não seria apenas indigesta, como também um motivo para péssimas memórias. Por isso, os vendedores costumavam atar os crustáceos, amarrando-os a uma vareta como bananas num cacho. Esta é a visão que a lembrança de Rosa deteve, congelada no tempo como um inseto em âmbar: um cacho de siris vivos. Neurocientistas afirmam que a visão, acima de todos os sentidos humanos, é a que impera. Ouso discordar. Nas brumas da memória, onde sobrevivem a infância e tudo que jamais deveria morrer, o som e o cheiro das imagens falam mais alto.

Seguem viagem o pai, compenetrado, dirigindo pelas montanhas sinuosas da Serra do Mar; a mãe, no banco do carona, vê pela janela a natureza exuberante e úmida da região; no porta-malas, os siris acompanham a família atados ao seu cacho, seguindo o mesmo trajeto. E Rosa, espichada no banco de trás, olhando o céu azul em ângulo, escuta-lhes as patas salpicando a lataria: uma sinfonia de reco-recos no samba abençoado da memória. Uma curva mais fechada, os siris rojam de um lado para o outro da mala e a música fica mais alta, num tic-tic de patas ansiosas e antecipação pela chegada.

Antes mesmo de retirar e desfazer as malas, ir ao supermercado mais próximo para abastecer a geladeira com compras e salgar o corpo nas águas verdes do Atlântico, é preciso dar atenção aos siris. Qualquer criatura viva tem um destino a cumprir, ainda que mal se dê conta disso. Por "criatura viva" entenda-se não apenas plena de suas funções vitais, mas prenhe de propósitos. O destino dos pais de Rosa, além de fazer dela uma mulher de valor intrínseco, capaz de voar com as próprias asas e preparar os seus próprios filhos, foi imprimir em sua memória momentos com os quais, hoje, regozija-se. O meu destino, além de tentar voar e ensinar a mesma arte a meu filho, é em parte contar esta história. O destino dos siris em cacho, em princípio órfãos à beira da estrada, era pertencer àquela família, moldar lembranças com cor, som e sabor e virar refeição. Se o desígnio de um crustáceo é integrar a cadeia alimentar, que não morra na praia, como muitos cetáceos, gadus e marinheiros; mas à mesa de uma família que, anos depois, terá nesse fado uma história.

Na panela com água fervente, sob a tampa de alumínio gotejada em vapor, chega ao fim o destino dos siris e começam a história e os casos de Rosa. Pai, mãe e filha sentam-se à mesa, aguardando o cozimento dos bichos, antecipando na saliva o gosto tenro e típico da carne. Enquanto põem à mesa, tecem comentários antigos, outros mais recentes, refrescam-se do calor sob ventiladores Arno, ouvem uma canção no rádio e preparam a farofa de tapioca que, em breve, vai se juntar à sobremesa: o creme gelado de açaí. Acima das risadas e da música, do zum-zum das hélices do ventilador e das brincadeiras da menina, ouvem-se as patas dos siris arranhando a panela. No início são frenéticas, em seguida mais sôfregas e entregues e, finalmente, serenas e satisfeitas por, após uma longa jornada do estuário para o acostamento da Rio-Santos e, daqui, para o porta-malas do carro de Doutor Renato, terem cumprido o seu destino de siris em cacho, siris com uma história para contar.

Perguntei à Rosa porque ela jamais havia considerado a possibilidade de escrever sobre um caso tão peculiar como este. Ela me ofertou um sorriso radiante e sinalizou a mais lógica e sensata das respostas: "Porque todo aquele ritual era muito natural para mim, oras!". Faz sentido. O natural só é extraordinário a olhos e ouvidos virgens, velados pela distância inquebrantável do tempo, que adquire ares de magia e imortalidade. Assim são as veredas e as narrativas por elas assolapadas: senhores ou sujeitos de nossos destinos, usamos a pena da lembrança para escrever casos e, com eles, registrar a história, mesmo que alguém a ouça, faça as vezes de narrador e imortalize, em palavras e som, o que, por natural, é belo demais para ser deixado para trás.

6 comentários:

  1. Bela história, que deve acontecer em muitas famílias e como Rosa disse era uma coisa natural que acontecia.
    Aqui em minha família se formos à praia e não comprarmos pro meu filho os benditos siris, ele não sossega. E em casa quando chegamos é o ritual do Flavinho e do Flávio para preparar os siris. Ferver, limpar, ferver novamente... Fazer um molhinho mega bom, colocar para ferver pra finalizar. Depois sentar-se a mesa e se lambuzar... rsrsrs... Um salve para os "SIRIS".. Beijo pro cê.

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  2. Bom saber, Cirlene, que algum rituais, por tão plenos de significado, tornam-se tradições, que nos definem, redefinem, delimitam, expandem. Boa sorte para o Flávio e para o Flavinho no preparo dos siris (rs). Bom apetite e, acima de tudo, felicidade plena em sua família e em suas histórias. Beijo grande!

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  3. Obrigada Roberta, como sempre mestre nas palavras. Mega beijo!

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  4. Ótima história! Talvez vc não se lembre, mas foi uma "estátua" importante no meu aprendizado de inglês... Grande abraço!
    Gustavo Machala

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  5. Como eu possivelmente me esqueceria de você, Gustavo? Lembra que foi você quem me ensinou a palavra "scoop"? Aquela nossa turma foi memorável. Muitas, infinitas saudades. Beijo enorme!

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