11 de julho de 2015

desaprender

Para Juan Fernando Merino


Quatro anos sem postar. Um mandato presidencial. Uma Copa do Mundo. O tempo que se leva para abandonar o hábito de escrever. Para perder a inspiração - ou para parar de buscá-la. Para os primeiros (odiosos!) cabelos brancos começarem a despontar nas têmporas. Para o temperamento amansar e o tempo amainar. Será que escrever é como andar de bicicleta?

Por falar nisso, por que comparar atividades que, teoricamente, a gente nunca esquece, justamente com andar de bicicleta? Por que não sapatear? Pintar? Velejar? E quem jamais sequer aprendeu a andar de bicicleta? Vai usar o que para pesar a memória na balança? Mas, enfim, não é este o ponto. O ponto é: a gente desaprende? Perde hábitos? Ou para aonde vai a inspiração?

Abandonar esse blog foi um processo sorrateiro que eu engavetei nos cantos de difícil acesso da memória, como se engavetam sonhos, projetos, resoluções de ano-novo, dietas... Para mim, não foi muito diferente de como é para você ou para qualquer outra pessoa que diz para si mesma: vontade é coisa que dá e passa. Um dia, a vontade (inspiração?) chega, mas você está cansado demais para fazer qualquer coisa que reflita você de verdade, o você de 20 anos atrás, e não a sua rotina corporativa feijão-com-arroz. No outro, o medo de que o futuro não seja e-xa-ta-men-te como você planejou te faz se envolver em tanto trabalho e minúcias da vida prática que escrever - leia-se sonhar, começar aquele curso de fotografia que você vem adiando há dez anos, viajar para o Pantanal - já não é mais possível. Pior; não é nem razoável. Daí, não custa muito para que tudo que saia do roteiro estrito dos dias se torne irrelevante.

A mais bem sucedida, ou assim dita, tática de sobrevivência é sobrevoar os dias e olhar para eles da sua incrível bolha protetora flutuante como se eles estivessem envoltos por neblina espessa, daquela de cortar com faca.  Como se os dias não fossem de fato "seus", mas você deles. Vivenciá-los em contagem regressiva: sete dias até o dia em que você pode dormir até mais tarde, ou até sua esposa te acordar e te convencer a pedalar até a Vista Chinesa. Ou até o seu filho te chamar porque você precisa levá-lo a uma social em Jacarepaguá. Ou até o cachorro, o gato, o papagaio... Seis dias até o dia em que você vai poder relaxar na praia, com muita fé no coração de que, dessa vez, a areia não vai estar tão lotada. Cinco dias até você receber seu salário e tentar, dessa vez para valer, guardar uma parte para aquela viagem para o Caribe. Quatro dias até que cada item da sua imensa lista de afazeres de adulto responsável esteja riscado. Três dias até que o seu corpo esteja suficientemente cansado para fazer sua consciência despencar em sono profundo, sem sonhos. Dois dias para a cervejinha com os amigos. Um dia até que seja socialmente aceito beber uísque no lugar de mate com limão. Oito horas para você se vangloriar por ter sobrevivido à semana e se preparar direitinho, porque amanhã começa tudo de novo.

Das duas, uma: ou a inspiração sai correndo pela porta porque nem ela é tão brasileira para não desistir nunca; ou você deixa de lado todo desejo utópico e apaixonado, apaga da memória cada projeto engavetado e abraça de peito aberto e um suspiro de resignação abafado a sua rotina de comercial de margarina. Porque, sim, você se tornou o cara daquela canção que diz assim: "sou tão feliz quanto os felizes, sob as marquises me protejo do temporal".

Dizem que isso é virar adulto e que, se a gente soubesse que era assim, todo mundo ia padecer de síndrome de Peter Pan; que esta é a vida de verdade, a vida que todo mundo leva, e que sonho, dúvidas existenciais e filosofia não pagam as contas; que é para isso que serve a adolescência: para você viver os mais loucos (coloridos?) anos da sua vida e, depois, tomar juízo e desempenhar a litania de projetos de vida normal e sã, mesmo que por pouco você não saia dela trajando camisa de força.

Não me leve à mal; não estou pregando anarquia e não-conformismo, a revolução dos costumes. Minha rotina vai bem, obrigada, e talvez ela seja muito mais bússola do que os mais profundos desejos de subversão social - que, no caso, não seriam bússola, mas tempestade magnética. Vai ver a gente é besta mesmo, sempre desejando o inatingível, o que não se tem. Feito o cara recém divorciado que sai para a noitada com os amigos solteiros e não entende porque, agora, estar disponível não tem mais a menor graça. Ou o sujeito que reclama do trabalho o tempo todo e, de férias, diz que fica doido se não tiver o que fazer para ocupar a cabeça.

Eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas depois de quatro anos sem inspiração ou fugindo dela para ser um adulto sensato e produtivo, eu quero o caminho do meio. Nada dessa coisa de desapego budista e teoria do zen elemental, mas o meio termo. Será que não dá mesmo para nascer, crescer, reproduzir-se, pagar as contas e não passar pelos dias feito um autômato? Será que a vida prática, de segunda a sexta, não comporta os sonhos, as aspirações, a inspiração? Por que querer o mais e o melhor, querer o diferente, questionar o possível e concreto e se arriscar pelo incerto e desejado não podem figurar no comercial de margarina também? Por que se proteger do temporal sob as marquises faz a gente ser apenas tão feliz quanto os felizes, e não mais? Por que não dá para ancorar no cais mas ter a certeza de que será igualmente possível cavalgar ondas altas? Quem foi que disse que não dá para viver uma vida simples, normal e rotineira MAS/E incrível ao mesmo tempo? Será que a alma precisa mesmo enferrujar para a gente ter a ilusão de que está correndo atrás das coisas certas? Até parece que na falta de sentido dos dias a gente se ocupa e vive na pressa para nem ter tempo de pensar ou responder caso alguém pergunte: mas para que?

A gente desaprende, sim. Somos criaturas de hábito, sem exceções. A gente se acostuma com tudo, até e principalmente com a repetição cega e sem sentido dos dias. Parece que passamos os primeiros anos de vida aprendendo maneiras de se inspirar e ser único só para crescer e desaprender tudo, esquecer ou fingir que esqueceu, e abraçar a normalidade como se esta sandice fosse normal. Daí nos tornamos uma nação, um continente, um planeta de macacos de imitação engavetando desejos e coragem, um bando de papagaios senis repetindo esse monólogo letal de que vontade dá e passa. Vontade não devia passar. Para cada vontade nossa que passa - ou que a gente sufoca, aborta, enterra - mais tênues vão ficando os contornos daquilo que nos define e nos torna visíveis num mundo que vai aos poucos apagando os seus habitantes, emudecendo cores, calando vozes.

Alguém leu um conto meu perdido na internet. Nem sei como, já que o Expresso estivera fora do ar há quatro anos. O conto não é um dos meus favoritos; fala de um barco a velas ancorado eternamente num lago quase seco; fala sobre a incoerência de viver dias seguros, espreitando de longe o azul infinito de possibilidades, sem jamais içar as velas. Na verdade, o conto é sobre a questão central de muitas vidas, talvez da sua também. O fato é que alguém leu esse conto e quer publicá-lo numa coletânea de histórias sobre o mar. O livro tem alguns elementos semelhantes: dois marujos naufragados e três aposentados, que acabam vivendo próximos à água. Um desses mora perto do mar;  o personagem do conto do meu mais novo amigo vive às margens do rio; o meu, próximo a um lago, com um barco acorrentado em águas rasas.

O livro se chama "Marinheiros em Terra" e será lançado em agosto, em Medelin, Colômbia. Também faz parte do projeto "Palabras Rodantes", que há nove anos lança livros nos metrôs da cidade para incentivar a cultura. Foi por acaso ou sorte nos dados do destino que o meu conto fosse sobre o tópico desse ano. Curioso, isso; justo eu, que sempre pensei que fosse árvore, que fosse terra, quando hoje vejo a vida muito mais fluida, muito mais mar. Talvez esta seja a resposta a todas as perguntas desse post: somos todos marinheiros em terra, pés firmes no chão e olhos sequiosos, marejados, namorando o mar. Esse conto é dedicado ao tradutor e escritor colombiano, que disse que, "ama o espírito do (meu) conto e a cena do barco no lago". Eu, que já nem lembrava que pudesse escrever e soprar vida nas palavras.

Eu não perdi a inspiração. Só a pendurei num cabide no fundo de um armário que eu não uso e que fica acumulando poeira no sótão. Quase esqueci que ela estava guardada lá, não exatamente "guardada", mas abandonada, ainda que respirando. Se bem que, confesso, nem eu sabia que ela estivera lá todo o tempo. A gente faz tanta força para caber no mundo, para esquecer que um dia foi marinheiro e capitão da própria vida, que acaba desaprendendo como levantar âncora e içar velas, como abrir as portas para o que mais se ama, como destrancar os cadeados de si mesmo. Onde está a razão e a sensatez de se viver uma vida onde você é algoz e prisioneiro de si mesmo? A gente desaprende, mas que bom que nunca para de aprender.

5 comentários:

  1. "Onde está a razão e a sensatez de viver uma vida onde você é algoz e prisioneiro de si mesmo. Perfeito, garota, perfeito. Leonardo Resende

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  2. "Onde está a razão e a sensatez de viver uma vida onde você é algoz e prisioneiro de si mesmo. Perfeito, garota, perfeito. Leonardo Resende

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    1. Obrigada, Leonardo. Onde eu estava que demorei um ano para responder...?

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  3. Ótimo Texto Roberta, hoje com nossos leques de obrigações, as vezes privamos nosso "eu" de se expressar corretamente, e ele vem na maioria das vezes em forma de arte, algo que está adormecido dentro de nós, mas que com nossa energia colocamos pra fora, e fazemos as pessoas sentir nossos pensamentos como se fossem nós próprios pensando, adoro escrever para passar o tempo, escrevo pra mim mesmo, e quando fico muito tempo sem colocar em prática, sinto-me sufocado, sinto que deveria por em prática mais vezes meus pensamentos, com o tempo passamos a nos questionar... "Perdi a inspiração?" Acredito que somos seres humanos totalmente adaptáveis em nossas rotinas, e se deixamos de lado, acabamos deixando de fazer coisas, que dê fato são muito importantes para nosso engrandecimento pessoal e espiritual, coisas pequenas, mas que no final do caminho se mostram fazer grande diferença!! Abraços!!

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    1. Obrigada, Vagner! A sua escrita é fluida, concisa, inspiradora. Sempre bom tê-lo aqui, sempre uma prazer receber seus comentários. Palavras, por mais que as preze, não são suficientes para agradecer. Abraço de urso.

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