19 de janeiro de 2017

ex-fulanos e tabus


"A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme"
Virginia Woolf

As palavras têm poder. A gente antiga já dizia isso e vivia a se benzer quando ouvia alguém dizer qualquer coisa que considerasse agourento: nome de doença sem cura, entidade maligna, suposição pessimista. Até quem morria costumava ser considerado tabu há algumas gerações, principalmente nas cidades provincianas do interior, onde os costumes enraízam mais profundo e vão se apagando mais lentamente. O indivíduo partia desta para melhor e perdia o seu nome próprio para adquirir a alcunha de "o falecido" ou "o finado". Chamar um morto pelo nome não era apenas considerado rude e desrespeitoso. Havia também a aura de superstição que o poder da palavra engendra; usar o vocativo é, como já o diz a própria palavra, invocar. E se há algo que muito cedo aprendemos com os nossos avós ou com filmes de terror é para não se mexer com quem está quieto.

O tabu de hoje é o politicamente correto e se no passado esteve confinado à sociedade miúda e a práticas amatutadas, atualmente ele corre às soltas nas artérias de um mundo interconectado em nível capilar pela internet e governado pela agilidade voraz da notícia, seja esta o que lhe convier. No coração dessa sociedade sem limites e global, pulsam minorias sociais cada vez mais estratificadas e pequenos ódios recém-nascidos e bem alimentados, numa contradição irascível que sustenta e simultaneamente contesta democracias e neo-liberalismo mundiais. É nesse cenário complexo de expansão sócio-cultural, ocorrendo paralelamente a movimentos de reforço de expressões e identidades de minorias, que se justificam a atitude e terminologia politicamente corretas. Para que tais grupos sejam não apenas preservados, mas poupados contra assédio moral e preconceito em uma sociedade cada vez mais monolítica e pariforme.

Entretanto, nada justifica a atitude politicamente correta e o pronome de tratamento, leia-se "apêndice", dos ex-amantes, pelo menos na cultura ocidental. Eu já vinha ensaiando abordar este tema há uns bons anos, mas o temor da polêmica me mantinha distante do assunto em nível público. Acontece que chega um momento na vida do escritor em que encarar o branco da página e o cursor piscando faz a coragem aflorar à revelia de prováveis julgamentos e preciosismo na escolha da pauta. Além do mais, as palavras têm poder, e esse poder é ainda mais expressivo quando a palavra é repetida à exaustão. Porque poucas coisas podem ser mais letais do que a reiteração, "ad vomitorium", destas duas palavras tão diametralmente desconexas e, no entanto, casadas - o trocadilho é intencional - na mesma frase: o meu ex.

Ou "a minha ex", o gênero dos fatores não altera o resultado. Que é o mesmo: um contrassenso absurdo e ultrajante por uma série de razões. Observe abaixo a definição do prefixo "ex", lembrando-se sempre que uma palavra não é apenas prenhe de sentido e significado, mas poder:

ex- 
(prefixo latino ex-, .ação de tirar, saída, acabamento, .ação de levar, privação ou negação, reforço)
prefixo
1. Indica fora de, derivação, saída, separação, afastamento, apartamento, .extração, em palavras de várias categorias morfológicas (ex.: exterritorialidade).
2. Quando unido por hífen a um substantivo, indica que o nome indicado deixou de ser aquilo que era (ex.: ex-mulher) ou de exercer o cargo ou função que tinha (ex.: ex-presidente).
3. [Informal]  Pessoa que já teve com outra uma relação de casamento ou namoro, em relação a esta última (ex.: tem uma relação conflituosa com as suas duas ex).
4. [Informal]  Pessoa que deixou de ser alguma coisa

Ora, a definição mesma do vocábulo é auto-explicativa e dispensa quaisquer tentativas de reforço argumentativo além da pergunta retórica: se o indivíduo em questão é um "ex" como pode ser "seu" já que, a priori, se foi, não mais faz parte de sua vida, tendo há muito - se é que já o fora um dia - abandonado a condição de "sua propriedade"? Certamente que aqui não me refiro ao valor denotativo e literal dos termos "o meu ex" ou "a minha ex", uma vez que está implícito na condição de quem termina um relacionamento amoroso fazê-lo exclusivamente com o seu parceiro. Falo do peso metafórico da expressão e do perigo que são as conotações que, como infinitas matizes de uma única cor, tingem a mente com ideias. Um "meu ex" é como um dente, um pedaço de marfim ou uma lasca de osso que o aborígene coleciona e vai pendurando ao pescoço em seu colar de troféus. Cada novo item é um peso a mais que, quando "mencionado", enverga o artefato, peso morto, até arrebentá-lo.

Pode parecer afetação ou exagero, mas a terminologia do "meu ex" está tão arraigada culturalmente que o fato de se refletir na linguagem é mero efeito colateral. Note o exemplo dado no item número três, retirado ipsis litteris do dicionário Priberam de língua portuguesa: "tem uma relação conflituosa com as suas duas ex". Até no dicionário o camarada tem uma relação esquisita com não apenas um, mas dois passados. Esse exemplo é pífio pelas seguintes razões: relata o óbvio. Notícia seria se ex-amantes tivessem uma relação harmoniosa, o que faria deles ainda amantes ou, na melhor das hipóteses, amigos, em ambos os casos anulando a necessidade do termo "ex" para designá-los; como o uso do prefixo isoladamente é vago - assim como o fazemos informalmente em todas as línguas ocidentais - é impossível dizer se o sujeito em questão tem uma relação conflituosa com as suas duas ex-namoradas, ex-esposas, ex-noivas, ex-amantes, ex-peguetes do Tinder ou ex-primeiras paixões. O que vem apenas a corroborar o óbvio: referir-se por regra a um ex-parceiro como "o meu ex", alienando-o do nome que lhe foi dado pelos pais, é patético, desnecessário e de um tom blasé forçado que não cai bem a ninguém. Como se o término de um relacionamento fosse apenas mais um término, e aquele parceiro, apenas mais um ex, sem expressividade ou importância, indigno do próprio nome. 

Conheço um sujeito que esteve num relacionamento por quatro anos. Ele não se casou formalmente, "de papel passado", como se costumava dizer no tempo em que todo mundo era obrigado a se casar de papel passado. Entretanto, houve festa, vestido branco, champanhe, buquê e troca de alianças para celebrar a união do casal, de modo que o camarada, embora orgulhoso de ser o único oficialmente solteiro entre todos os amigos casados ou divorciados, ainda se refere à mulher com quem se relacionou como "minha ex-esposa". Ele está separado há mais de três anos. Não posso evitar um sentimento de simpatia e comiseração pela mulher que se apaixonar por esse homem. Quando fala do passado, ele menciona o tempo em que estivera "casado"; se precisa citar a mulher com quem viveu, ela não possui rosto, nem nome. Será eternamente "minha ex-esposa" ou "minha ex-mulher", o tabu ambulante, a personificação do politicamente correto na vida conjugal, ocupando todo o espaço denotativo e impedindo a metáfora amorosa de acontecer.

Descobri outro dia, em conversa com amigos, que não existem "ex-sogra", "ex-genro", "ex-cunhado" e afins. Na verdade ouvi dizer, então não posso afirmar muita coisa sobre o assunto. Ainda estou em dúvida quanto a questão do "não existe". O que exatamente não existe? A terminologia ou o conceito? Porque, no contexto inter-relacional amoroso, se uma mulher murmurar as palavras "o meu ex", não haverá a menor indecisão a respeito de quem ela se refere, e o mesmo aconteceria para o homem, de maneira que a palavra e o que ela representa, em todas as suas manifestações simbólicas, exitem e caminham lado a lado, daí o seu poder em ter e criar sentido próprio para quem fala, ouve, escreve e lê. Palavras têm poder. Os nomes têm poder. E a maneira como os enunciamos, ou melhor, o discurso em si, é que dá vida às palavras e, estas, às histórias que vivemos.

"Ex" também significa "fim", e se acabou, é porque alguma coisa morreu. Dia desses conversava com um amigo recém-separado que me contou que ele e a "sua ex" - e eu uso as suas exatas palavras - se dão super bem, se vêem todos os dias, almoçam juntos e que o divórcio está sendo "mega tranquilo". Minha expressão de paisagem diante de tal comentário é inenarrável. Porque no meu cérebro de australopiteco, se o meu amigo e a "sua ex" se dão tão bem, por que não estão juntos? Ou então, se o meu amigo e a Maria se separaram, por que não viram a página, queimam a ponte, enterram o cadáver do relacionamento e deixam o "falecido" quieto? Obviamente, eu jamais diria isso ao meu amigo e, mesmo que ele leia essa crônica, o índice de divórcios é tão alarmantemente alto e a forma como os ex-pombinhos encaram a tal fatalidade tão assustadoramente "natural", que ele jamais saberia.

Em semelhante proporção ou mais virulentas do que "ex" são as alcunhas-filhas, criadas tão somente para ecoar e abrilhantar sua pro-genitora: o "atual" e o "próximo" - não o "futuro", este, sim, com uma conotação positiva, como em "o meu futuro marido" ou "minha futura namorada". Aqui o ponto é, mais uma vez, o poder contido na conotação que as palavras possuem e como elas podem, enquanto metáforas, afetar a simbologia e os sentimentos humanos. O presente jamais terá o charme, a aura de glamour e o eterno apelo fin-de-siécle do passado, exatamente por ser agora, por ser possível e por não possuir o feitiço do distanciamento do passado. Por isso, nada é mais degradante do que ser "o marido atual" ou a "atual namorada", pois ambos estão à sombra dos eternos ex e dos ameaçadores "próximos", que não tardam a chegar, ainda que sequer existam. É da escritora inglesa, Virginia Woolf, a frase: "A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme". Se nomes têm tal peso e poder, para que rotular pessoas então?

Talvez uma epidemia de histeria coletiva pós-conjugal tenha acometido os indivíduos, deixando-os em um torpor ardente de negação, onde sorriem abestalhados para as próprias imagens nos espelhos retrovisores dos carros enquanto dirigem para a audiência de divórcio consensual com seus ex, que também são seus amigos do peito, e com quem vão tomar um chopp logo em seguida. Talvez essa febre seja apenas um sintoma brando do vulcão de ódio, frustração, solidão e pavor que ameaça explodir e revelar para o mundo o eu conjugalmente nada correto que se auto-mutila, os tabus engolidos a seco, os anos de vida a dois perdidos, em vão. Ou pode ser que a maré esteja realmente mudando e as pessoas sejam, de fato, melhores ex-amantes. Mais individualistas, com mais divórcios, mais descompromisso e desconfiança, sim. Mas, numa lógica dantesca, melhores ex, quem sabe. Afinal, quem não quer mais um ex para chamar de seu nessa terra de ninguém?

Um comentário:

  1. Interessante seu texto e ponto de vista, principalmente em relação ao "dar um nome as coisas", acredito que as palavras tem poder, aliás acho que elas são um veículo, é nossa mente a fonte, para imortalizar, e jogar ao universo nossos pensamentos,para que nos tragam, de medida exata, aquilo que lançamos a ele, penso que tudo tem uma energia, com a junção de nossa mente e nosso "coração", demos um nome e importância a algo ou pessoas, desde mais novos aprendemos a rotular as coisas, uns com mais sensibilidade outros não, eu sou meio antiquado e antes eu pensava que não deveria existir um ex amor, porque ao meu ver isso não teria sentido, mas infelizmente me parece que muitas coisas se tornaram banais, assim como eu te amo virou bom dia, eu escrevendo dessa forma, não parece ter cabimento com o seu texto, mas vejo uma coisa ligar na outra dessa forma, um acontecimento que deixa marcas em nossas vidas, sempre fará parte de nós, e nós dele, sem a necessidade de rotular, apenas sendo cientes disso, já absorvemos, tudo de bom e ruím que poderíamos.... Aproveitar, e descartar.. abraços!!

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