30 de dezembro de 2011

prece


"(...) que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba (...)"

29 de dezembro de 2011

aqui


São onze da noite. Os pingos grossos de chuva repicam sobre as folhas da jabuticabeira do quintal. À tarde, o sol rebenta as nuvens num calor implacável e ausente de brisa, espaventando a gente para dentro das casas, onde a sombra e os pisos de pedra trazem refresco e refúgio para o torpor de dezembro. No meio do dia, as mulheres se abanam com fraldas de pano, filhos mais velhos jogando gude no terreiro, os menores ao colo, a espera do leite do peito, dorminhocos no balançar dos quadris de suas mães. Vez ou outra um peão cruza a estrada de terra, sujeito preguiçoso meneando “boa tarde” com o rosto coberto de suor. Aqui, não há muita brisa para fazer dançar as folhas das goiabeiras, os cabelos compridos das moças e os chapéus de palha dos velhos. Mas, o que falta de vento sobra em água, porque o córrego trespassa a pinguela antiga de madeira, caudaloso de chuva, escuro, espesso de barro e fértil de peixe. 

No verão, o céu vira chumbo todo dia, antes do cair da noite, e as nuvens pesadas desabam sobre a terra, tingindo o pasto de verde e enchendo as várzeas; as madrugadas são frescas e têm cheiro de umidade, dos sumos que o solo libera depois do temporal. Quando cessa o ruído da chuva, os vaga-lumes vêm acender a noite com o seu baile de pisca-piscas; eles valsam sobre o canavial e a plantação gotejante de arroz, enchendo de brilho os olhos da criançada. Aqui, a gente vai dormir com as janelas abertas e os ouvidos embalados pela música soporífera dos grilos e as batidas ritmadas dos sapos-martelo que moram no açude. Às vezes, um galo canta solitário ou um cachorro late para a escuridão e, na alvorada rósea, os bezerros mugindo de fome avisam que é hora do café. 

No inverno, o curral amanhece molhado de sereno e o ar frio e limpo entra pelos pulmões, desentupindo vias, preenchendo veias e faxinando a memória. É em julho que o céu tem mais estrelas e a lua fica mais perto das mãos, grande, gorda e silente. À noite, o saibro reflete o luar, e o chão parece salpicado de brilhantes. Mate com leite morno aconchegam as almas de manhã e, juntos, os meninos esquentam as mãos diante das brasas adormecidas do fogão a lenha. As galinhas vão dormir ainda mais cedo, empoleiradas corpo a corpo, e os cachorros se enroscam junto aos portões, respondendo de vez em quando a um latido distante. Aqui, quando faz frio, o verde dá adeus aos morros e a paisagem se reveste de marrom tostado, um bege sedento, com galhos retorcidos e carrapichos teimosos. 

Nessa terra, adoçante, saladinhas e sopa instantânea não têm vez, e a gente almoça e janta como se a boa forma exibida no calçadão não fosse importante porque, de fato, relevantes são a canjiquinha com costela de porco, a banana frita e a raspa de arroz. Ninguém sente embaraço pelos dentes cheios de fiapos de manga e a língua roxa de jamelão, e as unhas manchadas de barro e os bichos-de-pé não levam dama alguma ao desespero até porque, aqui, dondoca vira ração de muriçoca. Quem vive aqui ou vem para cá fala um dialeto próprio, com direito a gongolo, embornal, arenga, manguaça, escambau, cocoruto, cambito, tiquim, quede, bago, garapa, encangado, lavagem, debulhar, aporrinhar, arregar, coarar e fiofó. Capiau é o mesmo que caipira, e matuto que se preza compreende cada vocábulo desses sem precisar do Aurélio para Bocós Iniciantes. 

Ninguém precisa – deveria ou conseguiria – pertencer a um alqueire apenas de terra na vastidão que é o mundo e na inconstância que é o ser. Entretanto, por mais leve e liberta que seja uma pluma, ela não pode flutuar ao sabor do vento; é preciso que se tenha um “aqui” para aonde voltar, quando o mar é bravio demais para se insistir em remar e despedaçar-se de encontro aos rochedos. Para mim, o aqui é terra, aonde venho descarregar os raios que, na polis distante, vêm cair nas extremidades de meu corpo, retorcendo-me a alma, vergando-me a espinha, cegando-me os sentidos, roubando-me a identidade e podando-me os brotos. 

Sei que estou perto quando o cheiro do gado, do pasto e do ar toma-me narinas adentro, fazendo-me recordar a diferença entre âncoras e raízes. Afundo os pés descalços no solo rutilante, cravando-lhe as unhas, olho para o céu e deixo confluir o pessimismo, a derrota, o cansaço. Da terra, do tempo que, aqui, é puro anacronismo e das histórias que ouço e conto, recarrego as células, eletrifico-me e sinto novamente as extremidades outrora dormentes, semi-mortas. O piar de um bacurau soa como alforria, o banho de rio é festival e o capim vasto, promessa de retorno. Aqui é onde reencontro tudo que esvaiu. Aqui é o ciclo que jamais se esgota. Aqui é onde, pluma, torno-me pássaro.

25 de dezembro de 2011

navidad


Desta vez, farei diferente. Não vou maldizer o Natal, ainda que este não seja a minha época favorita do ano. Para falar a verdade, não há fórmula objetiva o bastante para categorizar o tempo e compartimentá-lo em períodos de que se goste mais ou menos, a não ser que uma estação e sua comida típica sejam evocadas. Do contrário, favorecemos os meses da fortuna em detrimento daqueles banhados pela maré do azar e, na matemática inexata do tempo, a bonança e as tempestades são inexoravelmente variáveis e, assim, inclassificáveis. 

Clichês me apavoram. Evito-os a todo custo, mesmo que sejam convenientes. Assim, chorar pitangas na véspera de Natal é lugar-comum não apenas para o dickensiano Scroodge, o verde nauseabundo de Grinch ou para a descrente Natalie Wood em "O Milagre da Rua 34", mas para a subscritora inclusive e principalmente. Desta vez, não me incomodarão os pisca-piscas dos pinheiros de plástico, as barbas de algodão dos velhinhos da Coca-Cola nem o Chester que, na verdade, não passa de um galináceo geneticamente modificado. No crepúsculo de 2011, decido ser otimista, para variar. Para escapar ao clichê que, por pouco, não engole a mim.

À mesa da casa de meus pais, repousam uma bacalhoada, uma travessa de suculentas rabanadas, uma torta de chocolate e a indefectível ave, rodeada por fatias de abacaxi. São três da madrugada, acabo de assistir a dois musicais antigos na TV, o ventilador ronca a dois metros de mim, ouço grilos no jardim e a respiração pesada do casal que, à revelia do calendário, dorme sereno. Pela tarde, chegarão minha irmã e sobrinhos, bocas para consumir o lauto banquete e mãos para afagar a família pequena, separada por gerações e distância física, mas unida nas horas em que toca o alarme de incêndio, aperta o cinto e a solidão é pesada demais para se carregar sozinho. Natal é isso. Chanukah é isso. Família é isso.

Os porta-retratos, cristais e relógios me encaram - ou eu a eles. Vejo-me há quinze anos, rosto corado de sol, cabelos loiros, sorriso sem rugas, alguns quilos a menos. Ainda sou eu. Vejo a vida de trás para frente, pois é assim que as fotografias estão dispostas sobre a cristaleira. Um dragão de madeira e dois galos de prata acumulam poeira e, estáticos, perguntam-me qual daquelas épocas fora a melhor, se é que seja isso possível. Não há época melhor, nem pior. Todo Natal e Carnaval são diferentes porque, a cada virada de ano, encerra-se um ciclo e inicia-se outro. Em colheita, há os bons anos e os anos ruins. No mercado de ações, igualmente. No comércio, também. No imenso, solitário e estelar umbigo do mundo de cada um, operam-se tantas metamorfoses que "bom" e "ruim" tornam-se por demais restritos e parciais para definir o todo em expansão que somos, à revelia de datas comemorativas.

A uma semana de 2012, o ano do fim do mundo para quem compra a ideia de cataclismos, previsões astrológicas e/ou bíblicas, numerologia e filmes-catástrofe, decido celebrar. A colheita de 2011 rendeu-me mais frutos do que pragas, até porque cada parasita nos serve de alerta para regar mais, podar menos, afofar a terra e espaventar os corvos. Na entressafra da vida, tornamo-nos agricultores mais espertos e ágeis que, definitivamente, não jogam a toalha quando a vaca vai para o brejo. Na balança onde peso os lucros e as perdas, meus parasitas valeram ouro: foram degraus, trampolins, anabolizantes que substituíram meus pés de barro por vigas de aço.

Neste Natal, sou o bom velhinho de mim, e o presente que encontro no fundo da caixa de Pandora é a trindade divina fundamental: otimismo, esperança e coragem. Em meu presépio, há um punhado de sal do mar, outro de areia, uma flor de ipê amarelo, uma folha de papel em branco e uma moldura vazia. Parece oferenda para Iemanjá, mas não é. Entre quebrar o tabu do queixume e pular sete ondas há um universo intransponível de diferença. Meu presépio imaginário é um amuleto que sinaliza o ponto A - de onde parto - e o ponto B, aonde quero chegar, com histórias e imagens que irão preencher a alvorada de um novo ciclo.

Não precisei receber a visita de três fantasmas para perceber porque vale a pena celebrar o cair da cortina dos anos; os parasitas em minha colheita o fizeram. Do solo árido, rachado e escaldante, brotou verde fresco e tenro, justamente em função da praga, para combatê-la e fazer de mim paineira, musical e maleável à ventania. Envergo-me, perco folhas e sementes, dobro-me até o chão, mas não quebro. Sobrevive a enchentes quem sabe que não há temporal que perdure, nem seca que não tenha fim. Na flexilidade do caule está o mais poderoso pesticida: o poder de regeneração e cura, resiliência e celebração. Neste Natal, a mensagem escondida em meu biscoito da sorte é clara, irrevogável e brilha como o raio de sol teimoso a perfurar a nuvem de chuva: o mal que vem para o bem, não é mau em si mesmo; é útil. É Biotônico Fontoura.