29 de dezembro de 2011

aqui


São onze da noite. Os pingos grossos de chuva repicam sobre as folhas da jabuticabeira do quintal. À tarde, o sol rebenta as nuvens num calor implacável e ausente de brisa, espaventando a gente para dentro das casas, onde a sombra e os pisos de pedra trazem refresco e refúgio para o torpor de dezembro. No meio do dia, as mulheres se abanam com fraldas de pano, filhos mais velhos jogando gude no terreiro, os menores ao colo, a espera do leite do peito, dorminhocos no balançar dos quadris de suas mães. Vez ou outra um peão cruza a estrada de terra, sujeito preguiçoso meneando “boa tarde” com o rosto coberto de suor. Aqui, não há muita brisa para fazer dançar as folhas das goiabeiras, os cabelos compridos das moças e os chapéus de palha dos velhos. Mas, o que falta de vento sobra em água, porque o córrego trespassa a pinguela antiga de madeira, caudaloso de chuva, escuro, espesso de barro e fértil de peixe. 

No verão, o céu vira chumbo todo dia, antes do cair da noite, e as nuvens pesadas desabam sobre a terra, tingindo o pasto de verde e enchendo as várzeas; as madrugadas são frescas e têm cheiro de umidade, dos sumos que o solo libera depois do temporal. Quando cessa o ruído da chuva, os vaga-lumes vêm acender a noite com o seu baile de pisca-piscas; eles valsam sobre o canavial e a plantação gotejante de arroz, enchendo de brilho os olhos da criançada. Aqui, a gente vai dormir com as janelas abertas e os ouvidos embalados pela música soporífera dos grilos e as batidas ritmadas dos sapos-martelo que moram no açude. Às vezes, um galo canta solitário ou um cachorro late para a escuridão e, na alvorada rósea, os bezerros mugindo de fome avisam que é hora do café. 

No inverno, o curral amanhece molhado de sereno e o ar frio e limpo entra pelos pulmões, desentupindo vias, preenchendo veias e faxinando a memória. É em julho que o céu tem mais estrelas e a lua fica mais perto das mãos, grande, gorda e silente. À noite, o saibro reflete o luar, e o chão parece salpicado de brilhantes. Mate com leite morno aconchegam as almas de manhã e, juntos, os meninos esquentam as mãos diante das brasas adormecidas do fogão a lenha. As galinhas vão dormir ainda mais cedo, empoleiradas corpo a corpo, e os cachorros se enroscam junto aos portões, respondendo de vez em quando a um latido distante. Aqui, quando faz frio, o verde dá adeus aos morros e a paisagem se reveste de marrom tostado, um bege sedento, com galhos retorcidos e carrapichos teimosos. 

Nessa terra, adoçante, saladinhas e sopa instantânea não têm vez, e a gente almoça e janta como se a boa forma exibida no calçadão não fosse importante porque, de fato, relevantes são a canjiquinha com costela de porco, a banana frita e a raspa de arroz. Ninguém sente embaraço pelos dentes cheios de fiapos de manga e a língua roxa de jamelão, e as unhas manchadas de barro e os bichos-de-pé não levam dama alguma ao desespero até porque, aqui, dondoca vira ração de muriçoca. Quem vive aqui ou vem para cá fala um dialeto próprio, com direito a gongolo, embornal, arenga, manguaça, escambau, cocoruto, cambito, tiquim, quede, bago, garapa, encangado, lavagem, debulhar, aporrinhar, arregar, coarar e fiofó. Capiau é o mesmo que caipira, e matuto que se preza compreende cada vocábulo desses sem precisar do Aurélio para Bocós Iniciantes. 

Ninguém precisa – deveria ou conseguiria – pertencer a um alqueire apenas de terra na vastidão que é o mundo e na inconstância que é o ser. Entretanto, por mais leve e liberta que seja uma pluma, ela não pode flutuar ao sabor do vento; é preciso que se tenha um “aqui” para aonde voltar, quando o mar é bravio demais para se insistir em remar e despedaçar-se de encontro aos rochedos. Para mim, o aqui é terra, aonde venho descarregar os raios que, na polis distante, vêm cair nas extremidades de meu corpo, retorcendo-me a alma, vergando-me a espinha, cegando-me os sentidos, roubando-me a identidade e podando-me os brotos. 

Sei que estou perto quando o cheiro do gado, do pasto e do ar toma-me narinas adentro, fazendo-me recordar a diferença entre âncoras e raízes. Afundo os pés descalços no solo rutilante, cravando-lhe as unhas, olho para o céu e deixo confluir o pessimismo, a derrota, o cansaço. Da terra, do tempo que, aqui, é puro anacronismo e das histórias que ouço e conto, recarrego as células, eletrifico-me e sinto novamente as extremidades outrora dormentes, semi-mortas. O piar de um bacurau soa como alforria, o banho de rio é festival e o capim vasto, promessa de retorno. Aqui é onde reencontro tudo que esvaiu. Aqui é o ciclo que jamais se esgota. Aqui é onde, pluma, torno-me pássaro.

4 comentários:

  1. Anônimo29.12.11

    Que lindo!

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  2. Obrigada, Anônimo! Bem-vindo ao Expresso e sinta-se em casa para comentar sempre que quiser. Abraço grande!

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  3. Daniel30.12.11

    Lendo suas palavras sinto o cheiro do mato, a brisa no rosto e consigo imaginar essa moça linda com os pés descalços na sua própria casa. Parabéns por mais um belo texto cheio de momentos únicos e sentimentos próprios.
    Beijos, Daniel

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  4. Coisa boa ler um comentário seu aqui, Daniel. Para quem escreve, ter leitores que expressam suas opiniões é um presente ímpar. Obrigada, querido. Beijo enorme.

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