17 de agosto de 2015

pra que paixão?



Romantismo apaixonado é invenção moderna, pelo menos quando aplicado à vida prática. Porque na literatura e nas artes, ele vem inspirando e alimentando penas e pincéis desde o século XVIII. Em resumão com cara de cursinho pré-vestibular, a história é mais ou menos assim: na Inglaterra e na Alemanha dos anos 1700 e blau, a galera se enche do classicismo e a turma boêmia e descolada da época passa a plantar as sementes românticas que seriam espalhadas pela França para todo canto. Em seguida, o Romantismo se tornaria a expressão artística do individualismo, da subjetividade, dos sentimentos, da entrega plena ao amor e do heroísmo. São desse grupinho de românticos o escritor Goethe, o compositor Beethoven, o pintor Delacroix e, claro, o dramaturgo Shakespeare, como não.

O problema aqui nem é tanto a ideia de romance, mas essa nova conotação que a palavra "paixão" adquiriu, como se fosse coisa muito boa e recomendada, não apenas nos relacionamentos amorosos, mas na vida profissional também. Outro dia uma aluna de 16 anos me contou que não faz ideia do que vai estudar na faculdade porque ainda não descobriu a atividade pela qual ela é - veja bem, "é", e não "está" - apaixonada. E daí dois alarmes soam na minha cabeça endurecida pelos anos e experiências românticas traumáticas: você precisa ter paixão até pelo ofício que o sustenta para que ele seja legítimo e, contra-senso ainda maior, você é apaixonado por coisas e pessoas, assim mesmo, com o verbo ser, e não estar, como se paixão fosse característica inerente, e não estado de espírito.

Assim, a "paixão" correu morro acima, dos primórdios de pati - em latim, sofrer, aguentar - ao auge do amor e do êxtase, imbuída de sentido benéfico e super estimada. Todo mundo quer estar apaixonado. Pela vida, pelo trabalho, pela cidade onde mora, pela comida que come, pela atividade física que pratica, pelo analista, pelos amigos, pelo outro. Porque se você acorda às seis da manhã sem cantar com os passarinhos e sem se sentir super animado porque é segunda-feira e você é tão completamente apaixonado pelo que faz, então deveria mudar de profissão e fazer algo que o faça "feliz". E se o seu coração não acelera no peito, as mãos não suam e a alma não se deleita quando você encontra o seu marido depois de um longo dia de trabalho não passional, então a relação está em crise e é hora de você rever os seus conceitos. Ou de se apaixonar novamente, de certo por alguém diferente, como se isso fosse resposta ou solução para casamentos, bem sucedidos ou à beira do colapso.

Daí se conclui que os reles e vis mortais que não são necessariamente apaixonados pela vida, por frases motivacionais e balões coloridos; que às vezes se lembram da etimologia da palavra "trabalho" - tripalium, da junção de "tri", três, e "palum", madeira, tripalium sendo um instrumento de tortura constituído de três estacas de madeira afiada para pobres e escravos que não tinham dinheiro para pagar seus impostos e, portanto, "trabalhavam"; que são mais amigos de seus cônjuges do que amantes passionais em lua de mel ad infinitum; que não são positivamente apaixonados por seus papéis alternados de mãe, pai, filho, filha, empregado, patrão, esposa, marido; que não sabem dizer exatamente se são felizes ou o que seja a felicidade, muito embora admitam que tristes também não são; os indivíduos restantes, destituídos de paixão e fervor por tudo que os rodeia, são meros zumbis. Se esta for de fato a bússola que nos orienta em tempos modernos (pós-modernos? Ou já inventaram um termo novo?), haja paixão que baste. Pois para quem servir a carapuça, nós, os não-apaixonados, somos uma nação, um mundo de mortos-vivos, desapaixonados e incertos, uma constelação de olhos vazios e leitosos, sem o brilho inconfundível dos arrebatados.

A capacidade de comparação é mãe de toda mazela existencial humana. Se de fato há pessoas tão constantemente apaixonadas pela vida e por tudo e todos que a perpassam, surpresa mesmo seria se os demais não se sentissem inferiores, menos felizes e mais banais em comparação. O mecanismo é o mesmo dos padrões de beleza estampados em capas de revistas, tanto femininas quanto masculinas, embora a carga seja mais pesada para as mulheres: como se olhar no espelho e se perceber "adequado" quando o modelo super exposto, super explorado e super estimado é tão diverso do seu próprio? Seria possível classificar a vida como "feliz" quando a cada dia novos artigos e livros contemplando o segredo da felicidade chegam às prateleiras? Como considerar um relacionamento amoroso "saudável" ou, no mínimo, "compatível", quando os amantes estão cada vez mais liberados, sensuais, poderosos, seguros de si e ultra orgásmicos? E quanto a julgar suas "conto-nos-dedos-de-uma-mão" amizades como suficientes quando nada é atualmente mais valioso do que uma vida social fecunda e apaixonadamente documentada em fotos e likes no Facebook? Nunca houve tanto acesso a tantos preceitos de vida, nem de forma tão instantânea. Não é surpresa, assim, que nunca tenha havido tamanho grau de insatisfação pessoal em igual proporção.

Se na literatura as histórias de paixão - marinadas em suspiros e tormentos do amor platônico - funcionam, no feijão com arroz do dia a dia elas só atrapalham. O amor romântico - assim como a paixão eterna, a felicidade, o ideal de beleza, o sexo perfeito, a vida social irreprovável - é inatingível, não se realiza, não acaba em casamento e rotina, até porque, se acabasse, a história não teria graça nenhuma. Dá para imaginar um final alternativo para Romeu e Julieta, onde os amantes trocam votos conjugais, alugam um apê em Verona - ela, dona de casa, ele, funcionário público - e três moleques mimados brigam pelo controle do videogame na sala de estar?  E se Werther pudesse ter se unido a Charlotte? Será que iriam resolver a crise dos sete anos com terapia de casal? Como nossas vidas parecem comuns, tediosas e patéticas comparadas a paixões devastadoras, ao fascínio do romance, ao ardor e à carga dramática eletrizante da literatura...

Ninguém almeja o que é possível obter, mas o que não pode ser alcançado. Essa é a condição sine qua non do bicho humano e sua maior sina, um calabouço onde nos enclausuramos e cuja chave não nos preocupamos em reaver. Eva vê a uva mas não pode comê-la, e por isso a fruta é tão saborosa. Os sapatos na vitrine da loja de grife que você jamais terá cacife ou coragem para comprar serão os mais belos, principalmente porque não vão estar no seu armário. O nerd espinhento e anti-social do ensino médio nunca se apaixona pela garota igualmente caxias da sala, mas pela futura modelo esportista e super popular. A grama do vizinho é sempre mais verde porque, ora, é do vizinho. E essa gana sem fim nem propósito é ainda mais dolorosa quando o objeto de desejo é a paixão, o romance.

A gente antiga, de cidade do interior, não falava em paixão; o termo usado, então, era paixonite, assim mesmo, feito doença: tendinite, apendicite, amigdalite, bursite. Pena que não conste paixonite em nenhum compêndio de moléstias físicas e/ou psíquicas. Porque coração disparado, aumento da pressão arterial, suor frio, perda de sono e apetite e incapacidade de concentração não são características fisiológicas exatamente desejáveis. Isso sem mencionar os atuais índices recorde de divórcios apenas no mundo ocidental. Casar-se apaixonado parece ser receita de divórcio em menos de cinco de anos. Situação semelhante é a de recém-formados desempregados: optar pela profissão dos sonhos, aquela pela qual se é apaixonado, nem sempre é garantia de que a mesma esteja em alta no mercado de trabalho. Ainda assim, vale tudo pela paixão e felicidade, certo?

É notável o numero de canções, filmes e livros de bolso jurando que ninguém é velho demais para se apaixonar. Tenho dúvidas, e não são poucas. Para tudo há um limite, nenhuma fonte é inesgotável, e não seria diferente com a capacidade de se apaixonar. É possível que a paixão seja renovável, reciclável, mas também faz sentido que sentimento tão descabido e nada cauteloso seja mais propício à juventude, quando se tem mais futuro pela frente do que um passado para levar de bagagem. Por certo há quem floresça com a paixão, serial ou constante, se é que esta não seja mais uma lenda para o almanaque de contradições humanas. Em contraponto, há os práticos, os céticos, os gatos escaldados. Para estes, paixão é coisa perigosa, corda bamba entre universos incomunicáveis. É assombrosa essa necessidade de estar ou ser apaixonado por tudo, feito essa urgência de ser feliz o tempo todo. Otimismo demais me cheira à histeria, paixões indistintas, à cárcere. Prefiro a alternância dos dias, a liberdade de se saber apenas mais um, outro alguém tentando sobreviver ao leão na arena, perdendo um dia, vencendo outro, imperfeito sempre.

11 de agosto de 2015

a lua quebrou

para Martha, irmã por escolha, e Pietro, nosso pequeno e doce presente


O menino tem pouco mais de um ano e está aprendendo as palavras. O corpinho frágil parece inflar, estufado com a curiosidade de criança, os olhos sempre muito atentos, devorando cores, sabores e aromas do mundo; para aqueles olhos de azeitona graúda tudo é novo, nada tedioso e a vida, uma grande brincadeira de desvendar mistérios em que ele, o detetive e explorador, fica maior e mais forte a cada descoberta, escapando ao círculo concêntrico de sua existência para abraçar o mundo.

A mãe põe seu filhote cedo a dormir; hábitos fazem homens, ela aprendera, e toda mãe tende a ensinar ao rebento o que sua própria mãe às custas lhe adestrara. Mas é noite de inverno, e toda noite de inverno é sempre mais bonita, o tempo frio e seco levando para longe as nuvens aborrecidas do céu. Por isso, nessa noite, o menino ganha um mimo: pode ficar de pé até mais tarde e ir com a mãe à varanda. Em noites frias como esta ela teme que o vento inclemente do morro faça o menino adoecer. Porém, a beleza da noite vence o desvelo materno, e o menino põe-se a se divertir, inventando formas para as estrelas no clarão do firmamento e bafejando no ar, pequeno e bravo dragão de mentira sobrevoando o mundo nos braços de sua mãe.

Concorre com as estrelas nesta noite a lua, balão de prata intumescido no céu, cheia em seu esplendor e fascínio. O menino estica o pescoço para trás e encara a imensa bola de gás suspensa na abóbada do céu, decerto por magia. Sua mãe sorri de deleite, sabendo-se a única neste momento capaz de soprar aos ouvidos sedentos do filho um chamego de descoberta:
"Viu, filho? Aquela é a Lua".
"Lu-a", o pequeno remenda, sem tirar os olhos da sua nova amiga redonda, imperatriz da imensidão finita e abençoada do céu de criança, toldo azul cobrindo o gramado da casa: "Lu-a".

Nos dias seguintes, a mãe lhe ensina também muitas outras palavras: nomes de frutas, todas aquelas na mesa da cozinha, "pera", a sua favorita; "Chico", o amigo preto e peludo que insiste em lamber as mãos do pequeno; "caminhão-baú", "trator" e outros carros grandes, que o menino apadrinha; "suco de uva"; "árvore"; "girafa", "cavalo", "boi" e "elefante", um vernáculo inteiro de bichos da fazenda e do zoológico; "caneta", lápis", "tinta" e "giz de cor", porque não tarda o menino cresce e começa a escrever a própria história; "desculpa", "por favor" e "obrigado", porque antes de saber ciências é preciso aprender boas maneiras. E a mãe mira a sua cria com orgulho, urgindo as horas a correr e o marido a chegar, para que mais tarde, sob as cobertas os dois, ela possa lhe contar os progressos do pequeno e recolher em seu abraço o cansaço doce e legítimo de mãe.

Passam-se duas semanas cheias, muitos novos vocábulos, litros de experiências inéditas que o menino bebe como um beduíno no deserto. E faz-se noite novamente, outra noite clara e estrelada a que a mãe se permite fazer uma exceção e levar o piá à varanda. Quem sabe haverá vaga-lumes enfeitando a escuridão dessa vez? Que apropriado seria ensinar ao pequeno palavra tão bela e em idade tão tenra... Sorrindo seu riso de sonho, que a mulher pensara ter esquecido até sentir o ventre inchando, prenhe de vida, ela já pode antecipar: "Viu, filho? Aquilo é um vaga-lume". A vida é mais gentil e o céu mais estrelado quando se pensa na poesia que são os vaga-lumes: milhares e minúsculos clarões de luz errantes, vagueando pelo breu e acendendo diminutas fogueiras, lampejos de esperança, aqui e ali.

Envolto no calor dos seios da mãe e pela proteção imensurável dos seus braços, o menino olha ao redor e reconhece o seu mundo, casando palavras recém aprendidas às imagens que ele há de acalentar para sempre na memória, o código de sua infância: grama, portão, flor, Chico, quiosque, fazendinha, brinquedo espalhado, pedra, árvore, carro do papai, mamãe. Não há vaga-lumes esta noite. Paciência. Ela terá ainda muito tempo para lhe mostrar as coisas e seres capazes de iluminar a noite e a alma da gente. Nos braços ela leva o seu rebento, e a existência mesma do menino a torna mestre por excelência, um exemplo, alguém que ela terá que aperfeiçoar a cada dia, por ele. Afinal, qual a essência e razão em ser mãe senão nascer e crescer de novo, vencendo vícios e cultivando virtudes, tornando-se alguém menos bruto, mais refinado, pelo filho?

Então o pequeno olha para o céu. Vê pontos luminosos e distantes, alguns cintilando, outros desbotados, quase esmaecidos, e diz confiante, todo senhor de si: "Estrelas". A mãe sorri; ele aprendera. O menino inclina o pescoço um pouco mais, avista uma fatia branca e tristonha no céu e franze o cenho, uma miniatura do pai. Seus olhos refletem aquela porção já familiar do firmamento, luzindo com atenção e algo além de apenas curiosidade. A mãe o segura mais perto do peito, toda brio e satisfação; ele lembrara! O filho estende o braço e aponta o dedinho indicador gorducho e questionador para o satélite solitário e minguante no céu: 
"Mamãe, a lua quebrou".
E derrama-se no abraço dela, fazendo um beicinho de queixume dengoso.

Uma coruja pia ao longe. O vento sopra mais forte, fazendo as folhas das árvores sussurrar um farfalho moroso. Chico chega mais perto deles, o focinho gelado e úmido roçando as pernas da mulher, pedindo atenção, um último afago do dia. Dentro da casa, o pai apaga a luz da cozinha e olha para a sua família pela janela. Ele não diz palavra, mas o riso afetuoso e o meneio leve da cabeça falam alto: ele também deseja um último afago.

A mãe acena ao marido e enterra a cabeça nos cabelos macios do filho, inspirando profundamente o aroma adocicado de menino. Então ela sente uma saudade dorida desse pequeno que, antes que ela se dê conta, vai ficar grande, tão maior do que ela, um gigante a trilhar os próprios caminhos. Ela não o levará ao colo para sempre; não fará escolhas por ele; não estará presente para protegê-lo do frio, do escuro nem da solidão. Ela cerra os olhos contra a pele morna da bochecha do menino, já vislumbrando o homem que ele será. Não haverá tempo para que ela o ensine todas as palavras, os versos, as histórias e canções. A mulher compreende, então, que nem mesmo todo o ensejo do mundo lhe bastaria e ao filho, porque semear é correr contra o tempo.

Mas, nesta noite, ela ainda tem tempo. Sob o manto salpicado de estrelas e mal iluminado pela lua a minguar, abraçados os dois, ela é grande e ele, menino. No gramado macio, à espera do ipê que há de florir em plena exuberância na próxima primavera, ela ainda pode tomar a vida nas mãos e remendar-lhe os buracos, traçar os pontilhados, colorir o que desbotou, resgatar o que se perdeu, refazer, recompor, consertar. E porque em noite de inverno e quando se tem pouco mais de um ano a mãe da gente pode tudo, a mulher acende o breu com um sorriso e sussurra ao menino:
"Não tem problema, filho. A mamãe cola a lua para você".

20 de julho de 2015

clichês de papel




Está em cartaz o longa "Cidades de Papel" (Paper Towns, 2015), baseado no best seller de John Green, escritor e vídeo blogger americano que conquistou adolescentes de todo o globo, tendo seus livros traduzidos em mais de doze línguas. Adaptação fiel do livro, o filme é narrado por Quentin Jacobsen, um rapaz pacato cursando o último ano da escola antes de dar adeus a sua restrita zona de conforto e partir para a universidade, momento em que, aos olhos de Quentin, sua vida começará de verdade. Uma narrativa sobre o primeiro amor e a descoberta da própria identidade, "Cidades de Papel" é, sobretudo, uma reflexão sobre a amizade e a viagem longa, confusa, delicada e por vezes dolorosa que é amadurecer.

Q, como é chamado no livro e na adaptação para o cinema, acredita que todo mundo tem seu milagre pessoal, um momento epifânico mágico que transforma vidas insossas em algo espetacular e digno de ser vivido. Para ele, o milagre chega na forma de Margo Roth Spiegelman, uma menina que se muda com a família para a casa da frente e acaba se tornando uma companheira na infância de Q. Não é surpresa que ele seja completamente apaixonado por Margo e, mais óbvio ainda, que ela seja uma criatura exótica, destacando-se na palidez dos subúrbios americanos. Margo encanta Q com sua personalidade ousada e aventureira, uma aura de mistério da qual o rapaz não pode escapar; ela o fascina porque é inatingível.

Em entrevista à revista The New Yorker em junho de 2014, o autor John Green fala do início de sua carreira e de como seus livros foram catapultados de projetos modestos a fenômenos de venda entre o possivelmente mais fiel e rentável público de jovens adultos. Na entrevista, Green é chamado de "teen whisperer", algo como "aquele que sussurra aos adolescentes". Com efeito, Green aprendeu a falar e dominar a língua de seus fãs, e por isso vem construindo uma legião de leitores vorazes, que citam falas de seus livros como lemas, mantras para apaziguar sentimentos e pensamentos em constante e febril turbulência.

Green parece de fato ter o dom de presentear seus personagens com falas que logo se tornarão máximas entre os leitores e, devido à popularidade na internet, entre não-leitores, em semelhante proporção. Com "Cidades de Papel" o resultado não seria diferente. Entre as mais estimadas citações estão as seguintes: "Ela amava tanto mistérios que acabou se tornando um"; "Nada jamais acontece até que você imagine que irá acontecer"; "Eu amo cidades onde nunca estive e pessoas que nunca conheci"; "O prazer não está em fazer as coisas, mas em planejá-las"; "É tão difícil ir embora até que você realmente vai embora; então, isso vira a coisa mais fácil do mundo"; "Você pode amar alguém muito, mas nunca vai amar as pessoas tanto quanto vai sentir falta delas".  "De que adianta estar vivo se você pelo menos não tentar fazer algo incrível?".

Na literatura, clichês são abomináveis, uma prova irrefutável de que o autor é incompetente, prosaico e desimaginativo, e de que seu trabalho é estéril, desprovido de viço criativo, esgotado. Nas artes, o que vale é o novo, o inédito ou, na pior das hipóteses, o reinventado e "repaginado", seja lá o que esse eufemismo signifique. Todo mundo espera ler algo diferente, assistir a uma coisa nova, ser refrescado pela brisa da originalidade. Mas para cada editor ou crítico que repudia a trivialidade dos clichês, existe alguém da platéia que o adora e continuará a repeti-lo.

O talento de John Green é saber usar os clichês. Nas vozes de seus personagens, tão reais e semelhantes a seus leitores, os bordões viram lição de vida, mote, bússola. Green utiliza uma linguagem objetiva e honesta, sem voleios e grandes pretensões literárias e, por isso, fala diretamente à mente e aos corações dos leitores. Nas palavras de Margo, Q e seus amigos, os clichês são acolhedores como casa de pai e mãe, endossam dúvidas e opiniões veladas e as transformam em certezas atestadas. Os livros de Green são tão populares porque, às vezes, tudo o que se quer é eco. Ninguém precisa questionar tudo o tempo todo nem quebrar paradigmas a cada página. De vez em quando é bom e altamente recomendável para a saúde mental que a gente leia, veja ou ouça alguma coisa que reflita exatamente o que pensamos mas não temos palavras ou coragem para verbalizar. Todo mundo precisa sentir que está no "caminho certo" de vez em quando, ainda que seja através da vida imaginada de personagens fictícios.

No final de "Cidades de Papel" Q aprende sua mais importante lição pré-adultescência: "Que coisa perigosa é acreditar que uma pessoa é mais do que uma pessoa". Q acreditou que Margo fosse seu milagre pessoal, um talismã, uma criatura espetacular que mudaria a sua vida; custaram-lhe muitas páginas e lágrimas para que ele compreendesse que era diferente de Margo, que jamais seria Margo. Mas o rapaz foi esperto o bastante para perceber o perigo de atribuir ao outro a fonte e o meio da felicidade inerente, e tomou as rédeas do seu jovem, aspirante coração nas próprias mãos. Não é difícil entender o sucesso de John Green com jovens adultos aprendendo a viver: na língua deles e em clichês, o escritor acaba ensinando muito mais do que contando uma história aparentemente banal; até porque toda história, a nossa história, deve ser, por essência, cheia de sentido e incrível. Até porque, para usar as palavras da própria Margo, não dá para passar a vida numa cidade de papel, queimando a mobília do futuro para se aquecer.

12 de julho de 2015

small hours





When he's fast asleep. That's the best time to sneak out of bed and tiptoe to wherever it is you can write, because writing to him is not just another intelectual exercise, a  childish game of flattery. It's harder than any other task you've grown accustomed to performing; it's treacherous terrain, one where words could easily mute the certainty that only mended souls can share. You know you've wasted too many words already. The prose you write now must be extra gentle, extra careful, for you need to be sure it won't fall on deaf ears or escape a blind eye. He'll either hold these words dear to his heart or they'll have meant nothing at all.

But before you make up your mind and actually get out of bed, you watch him in his sleep, breathing rhythmically, oblivious to your nagging presence. You study his relaxed features, stroke the lines on his forehead, feel the prickly beard, concentrate on his fluttering eyelids. In your mind's eye, you try to picture the blue irises and even though your memory doesn't tend to fail you, it's impossible to devise that particular shade, so unique because you can see life glowing behind it, you can see home, shelter, future. And just then you wonder if he's dreaming, if you're ever in his dreams.

You resent not being his first and yet hope with every fiber of your insecure and miserable being that you're certainly his last. The past gnaws at your confidence. Despite your natural talent for nostalgia, you abhore the fact that he has a past and you weren't there. You talk to yourself in a reproachful tone; after all, your timeline isn't exactly short and untarnished. You'd expect more from a woman who'd been armed to the teeth against love and all the vulnerability it encompasses. If your heart was ever enclosed by a fortress, it's not supposed to go on doing giddy somersaults in your chest, betraying the hard face you've struggled for so long to put on. And yet... Wasn't this feeling exactly what you've always dreamed of, longed for?

You think he's mysterious in spite of all his brutal honesty. He will never feel it as you do, never see it through your eyes. It's not so much mystery as hunger for all he is, so much so that your craving never ends. You want to know it all, you turn into water so you can fill the void inside him and because he's never asked you to do so, you feel like an intrusive tourist when all you need is to be the landlord. You don't wish to possess for you've already learned that affection won't thrive in captivity. However, the barren lands of your body must be claimed, the whole lot of your heart taken. It is not his doubt that slashes through your soul, but rather his attempt to keep himself at a distance. You need no breathing room; you've breathed enough on your own. It's his breath you aspire to, his warmth to glue together all the loose and rattling pieces you've been too busy or too weak to pick up. 

You open your doors and windows and he is a downpour of life and feelings flooding the very core of you. He questions your certainties, highlights your faults, disagrees. He alters your conception of life and makes you believe in love and marriage and parethood and happiness, all of which, surprisingly enough, belonging in the same realm; he dares you to lose yourself and hope for more, always more. You wish you'd met him long ago, just so you could've had more time to make mistakes and then get them right, only not alone this time around.

So much wishing for... If you could go back in time, you would've been less stubborn and proud, not as skittish, definitely not so vain. You close your eyes and can still picture the abyssal ravine cracked between you. What if it hadn't been possible for you to reach out to each other and brace yourselves for the fall? But then again, what if you're simply the perfect human being for him and see all your aspirations mirrored in his eyes? Would it hurt too badly for you to put your shield down and matter of factly believe you've found him? Could you embrace it and at the same time not feel terrified of losing him? And would he be able to give himself to you, limitlessly, anyway?

Relationships are books written and told by four hands and two voices. In all likelihood they will fail and you'll find yourself mourning over an idealized story and unreal characters. Your relationship can't host any perfection especially because you're not building it alone; it is bound to break, to crack, to stain. You'll try not to let your heart sink for knowing both of you are painfully imperfect and fallible. And maybe, just maybe, the imperfection won't really matter, because you will be flawed and make mistakes together, side by side, as one.

11 de julho de 2015

desaprender

Para Juan Fernando Merino


Quatro anos sem postar. Um mandato presidencial. Uma Copa do Mundo. O tempo que se leva para abandonar o hábito de escrever. Para perder a inspiração - ou para parar de buscá-la. Para os primeiros (odiosos!) cabelos brancos começarem a despontar nas têmporas. Para o temperamento amansar e o tempo amainar. Será que escrever é como andar de bicicleta?

Por falar nisso, por que comparar atividades que, teoricamente, a gente nunca esquece, justamente com andar de bicicleta? Por que não sapatear? Pintar? Velejar? E quem jamais sequer aprendeu a andar de bicicleta? Vai usar o que para pesar a memória na balança? Mas, enfim, não é este o ponto. O ponto é: a gente desaprende? Perde hábitos? Ou para aonde vai a inspiração?

Abandonar esse blog foi um processo sorrateiro que eu engavetei nos cantos de difícil acesso da memória, como se engavetam sonhos, projetos, resoluções de ano-novo, dietas... Para mim, não foi muito diferente de como é para você ou para qualquer outra pessoa que diz para si mesma: vontade é coisa que dá e passa. Um dia, a vontade (inspiração?) chega, mas você está cansado demais para fazer qualquer coisa que reflita você de verdade, o você de 20 anos atrás, e não a sua rotina corporativa feijão-com-arroz. No outro, o medo de que o futuro não seja e-xa-ta-men-te como você planejou te faz se envolver em tanto trabalho e minúcias da vida prática que escrever - leia-se sonhar, começar aquele curso de fotografia que você vem adiando há dez anos, viajar para o Pantanal - já não é mais possível. Pior; não é nem razoável. Daí, não custa muito para que tudo que saia do roteiro estrito dos dias se torne irrelevante.

A mais bem sucedida, ou assim dita, tática de sobrevivência é sobrevoar os dias e olhar para eles da sua incrível bolha protetora flutuante como se eles estivessem envoltos por neblina espessa, daquela de cortar com faca.  Como se os dias não fossem de fato "seus", mas você deles. Vivenciá-los em contagem regressiva: sete dias até o dia em que você pode dormir até mais tarde, ou até sua esposa te acordar e te convencer a pedalar até a Vista Chinesa. Ou até o seu filho te chamar porque você precisa levá-lo a uma social em Jacarepaguá. Ou até o cachorro, o gato, o papagaio... Seis dias até o dia em que você vai poder relaxar na praia, com muita fé no coração de que, dessa vez, a areia não vai estar tão lotada. Cinco dias até você receber seu salário e tentar, dessa vez para valer, guardar uma parte para aquela viagem para o Caribe. Quatro dias até que cada item da sua imensa lista de afazeres de adulto responsável esteja riscado. Três dias até que o seu corpo esteja suficientemente cansado para fazer sua consciência despencar em sono profundo, sem sonhos. Dois dias para a cervejinha com os amigos. Um dia até que seja socialmente aceito beber uísque no lugar de mate com limão. Oito horas para você se vangloriar por ter sobrevivido à semana e se preparar direitinho, porque amanhã começa tudo de novo.

Das duas, uma: ou a inspiração sai correndo pela porta porque nem ela é tão brasileira para não desistir nunca; ou você deixa de lado todo desejo utópico e apaixonado, apaga da memória cada projeto engavetado e abraça de peito aberto e um suspiro de resignação abafado a sua rotina de comercial de margarina. Porque, sim, você se tornou o cara daquela canção que diz assim: "sou tão feliz quanto os felizes, sob as marquises me protejo do temporal".

Dizem que isso é virar adulto e que, se a gente soubesse que era assim, todo mundo ia padecer de síndrome de Peter Pan; que esta é a vida de verdade, a vida que todo mundo leva, e que sonho, dúvidas existenciais e filosofia não pagam as contas; que é para isso que serve a adolescência: para você viver os mais loucos (coloridos?) anos da sua vida e, depois, tomar juízo e desempenhar a litania de projetos de vida normal e sã, mesmo que por pouco você não saia dela trajando camisa de força.

Não me leve à mal; não estou pregando anarquia e não-conformismo, a revolução dos costumes. Minha rotina vai bem, obrigada, e talvez ela seja muito mais bússola do que os mais profundos desejos de subversão social - que, no caso, não seriam bússola, mas tempestade magnética. Vai ver a gente é besta mesmo, sempre desejando o inatingível, o que não se tem. Feito o cara recém divorciado que sai para a noitada com os amigos solteiros e não entende porque, agora, estar disponível não tem mais a menor graça. Ou o sujeito que reclama do trabalho o tempo todo e, de férias, diz que fica doido se não tiver o que fazer para ocupar a cabeça.

Eu nunca pensei que fosse dizer isso, mas depois de quatro anos sem inspiração ou fugindo dela para ser um adulto sensato e produtivo, eu quero o caminho do meio. Nada dessa coisa de desapego budista e teoria do zen elemental, mas o meio termo. Será que não dá mesmo para nascer, crescer, reproduzir-se, pagar as contas e não passar pelos dias feito um autômato? Será que a vida prática, de segunda a sexta, não comporta os sonhos, as aspirações, a inspiração? Por que querer o mais e o melhor, querer o diferente, questionar o possível e concreto e se arriscar pelo incerto e desejado não podem figurar no comercial de margarina também? Por que se proteger do temporal sob as marquises faz a gente ser apenas tão feliz quanto os felizes, e não mais? Por que não dá para ancorar no cais mas ter a certeza de que será igualmente possível cavalgar ondas altas? Quem foi que disse que não dá para viver uma vida simples, normal e rotineira MAS/E incrível ao mesmo tempo? Será que a alma precisa mesmo enferrujar para a gente ter a ilusão de que está correndo atrás das coisas certas? Até parece que na falta de sentido dos dias a gente se ocupa e vive na pressa para nem ter tempo de pensar ou responder caso alguém pergunte: mas para que?

A gente desaprende, sim. Somos criaturas de hábito, sem exceções. A gente se acostuma com tudo, até e principalmente com a repetição cega e sem sentido dos dias. Parece que passamos os primeiros anos de vida aprendendo maneiras de se inspirar e ser único só para crescer e desaprender tudo, esquecer ou fingir que esqueceu, e abraçar a normalidade como se esta sandice fosse normal. Daí nos tornamos uma nação, um continente, um planeta de macacos de imitação engavetando desejos e coragem, um bando de papagaios senis repetindo esse monólogo letal de que vontade dá e passa. Vontade não devia passar. Para cada vontade nossa que passa - ou que a gente sufoca, aborta, enterra - mais tênues vão ficando os contornos daquilo que nos define e nos torna visíveis num mundo que vai aos poucos apagando os seus habitantes, emudecendo cores, calando vozes.

Alguém leu um conto meu perdido na internet. Nem sei como, já que o Expresso estivera fora do ar há quatro anos. O conto não é um dos meus favoritos; fala de um barco a velas ancorado eternamente num lago quase seco; fala sobre a incoerência de viver dias seguros, espreitando de longe o azul infinito de possibilidades, sem jamais içar as velas. Na verdade, o conto é sobre a questão central de muitas vidas, talvez da sua também. O fato é que alguém leu esse conto e quer publicá-lo numa coletânea de histórias sobre o mar. O livro tem alguns elementos semelhantes: dois marujos naufragados e três aposentados, que acabam vivendo próximos à água. Um desses mora perto do mar;  o personagem do conto do meu mais novo amigo vive às margens do rio; o meu, próximo a um lago, com um barco acorrentado em águas rasas.

O livro se chama "Marinheiros em Terra" e será lançado em agosto, em Medelin, Colômbia. Também faz parte do projeto "Palabras Rodantes", que há nove anos lança livros nos metrôs da cidade para incentivar a cultura. Foi por acaso ou sorte nos dados do destino que o meu conto fosse sobre o tópico desse ano. Curioso, isso; justo eu, que sempre pensei que fosse árvore, que fosse terra, quando hoje vejo a vida muito mais fluida, muito mais mar. Talvez esta seja a resposta a todas as perguntas desse post: somos todos marinheiros em terra, pés firmes no chão e olhos sequiosos, marejados, namorando o mar. Esse conto é dedicado ao tradutor e escritor colombiano, que disse que, "ama o espírito do (meu) conto e a cena do barco no lago". Eu, que já nem lembrava que pudesse escrever e soprar vida nas palavras.

Eu não perdi a inspiração. Só a pendurei num cabide no fundo de um armário que eu não uso e que fica acumulando poeira no sótão. Quase esqueci que ela estava guardada lá, não exatamente "guardada", mas abandonada, ainda que respirando. Se bem que, confesso, nem eu sabia que ela estivera lá todo o tempo. A gente faz tanta força para caber no mundo, para esquecer que um dia foi marinheiro e capitão da própria vida, que acaba desaprendendo como levantar âncora e içar velas, como abrir as portas para o que mais se ama, como destrancar os cadeados de si mesmo. Onde está a razão e a sensatez de se viver uma vida onde você é algoz e prisioneiro de si mesmo? A gente desaprende, mas que bom que nunca para de aprender.