27 de agosto de 2011

chatterton

"A Morte de Chatterton", por Henry Wallis

Lição do Século IV: não vou nada bem, mas não sou Nietzsche e, muito menos, Chatterton. Resta-me, então, blogar.

Para os falantes de francês, aqui vai a letra da canção original, de Serge Gainsbourg:

"Chatterton suicidé
Hannibal suicidé
Démosthène suicidé
Nietzsche fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien

Chatterton suicidé
Cléopatre suicidé
Isocrate suicidé
Goya fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien

Chatterton suicidé
Marc-Antoine suicidé
Van Gogh suicidé
Schumann fou à lier
Quant à moi
Quant à moi
Ça ne va plus très bien"

À propósito, Thomas Chatterton foi um poeta inglês maldito, falido e doido varrido, cuja pequena obra é desprovida de qualquer valor literário. O sujeito ficou famoso ao se suicidar aos 17 anos, com arsênico. Abaixo, a sua poesia mais conhecida, "A New Song":

"Ah, blame me not, Catcott, if from the right way 
My notions and actions run far. 
How can my ideas do other but stray, 
Deprived of their ruling North-Star? 

A blame me not, Broderip, if mounted aloft, 
I chatter and spoil the dull air; 
How can I imagine thy foppery soft, 
When discord's the voice of my fair? 

If Turner remitted my bluster and rhymes, 
If Hardind was girlish and cold, 
If never an ogle was got from Miss Grimes, 
If Flavia was blasted and old; 

I chose without liking, and left without pain, 
Nor welcomed the frown with a sigh; 
I scorned, like a monkey, to dangle my chain, 
And paint them new charms with a lie. 

Once Cotton was handsome; I flam'd and I burn'd, 
I died to obtain the bright queen; 
But when I beheld my epistle return'd, 
By Jesu it alter'd the scene. 

She's damnable ugly, my Vanity cried, 
You lie, says my Conscience, you lie; 
Resolving to follow the dictates of Pride, 
I'd view her a hag to my eye. 

But should she regain her bright lustre again, 
And shine in her natural charms, 
'Tis but to accept of the works of my pen, 
And permit me to use my own arms".

escolhas - do (i)limitado

Tim Roth, em cena do filme "A Lenda do Pianista do Mar"

Em 1998, o cineasta italiano, Giuseppe Tornatore, dirigiu "A Lenda do Pianista Do Mar". O filme é uma fábula travestida de alegoria, a especialidade de Tornatore. Aqui, um bebê recém-nascido é abandonado pelos pais num navio, na alvorada do ano de 1900. Três são as personagens que sustentam a alegoria do diretor: (i) o transatlântico onde o menino nasce e é adotado por um trabalhador das fornalhas, embarcação cujo único destino, por anos a fio, é conduzir imigrantes europeus ao Novo Continente, a América dos cansados, pobres e desnorteados; (ii) o mar, sempre alto, gigantesco e prenhe de novidades. E o órfão, nomeado então "1900", morador eterno do navio, pianista autodidata e virtuoso, que aprende a ler com as colunas de corrida de cavalos nos jornais de seu pai adotivo. Além destes, há Max, o trompetista e narrador da história, o elo que une os espectadores à ilha que o próprio pianista personifica.

1900 passa a vida cruzando o Atlântico, convivendo com gente movida por sonhos, anseios e esperança, entretendo a tripulação com a sua exímia habilidade ao piano; uma vida de idas e voltas, onde é ouvinte atento e músico extraordinaire. Um gênio humano, que acolchoa a quem precisa, alternando silêncio e música. Entre milhares de passageiros com pouco mais na bagagem além de sonhos, 1900 é o sonhador maior que, através da platéia, realiza as próprias aspirações. No entanto, o intrigante na história dessa figura não é o seu talento nato, mas o motivo pelo qual alguém tão enormemente talentoso e com tamanho potencial e carisma jamais deixará o navio onde nasceu, cresceu e vive, nem mesmo quando este, anos depois, estará prestes a ser destruído por uma explosão.

No decorrer de décadas, quando transatlânticos deixariam de ser necessários aos imigrantes, 1900 recusa-se a abandonar o barco - trocadilhos à parte - e a sequer por os pés além do convés. Para compreender essa dinâmica em princípio surreal, basta assistir ao filme e deixar-se embalar pelas ondas e pela trilha sonora de Ennio Morricone. O pianista do mar de Giuseppe não é apenas um homem: ele é o barco, o mar e o piano; gigantesco em si mesmo, vê o infinito do mundo além da embarcação como uma limitação ao imensurável que a sua alma contém. 1900 é o ideal platônico de arte, de vida, morte e, principalmente, de amor. Ele apaixona-se uma única vez - na cena que, provavelmente, é a mais tocante do filme - e, diante da visão de um amor provável, improvisa a canção mais bela de sua vida.

 
"Quanto mais alto voares, maior o tombo". Este é um provérbio português. Um outro, inglês, muda o meio de transporte, embora se atenha ao tema: "os pequenos barcos não devem se afastar da margem". Ou, ainda: "muito para o leste, já é oeste". Todas variações sobre o mesmo tema. Um alerta tácito para quem enxerga o mundo como 1900: existe, sim, uma zona de conforto, a sombra que protege as asas de cera de Ícaro contra os calores fatais do mundo exterior à sua ilha. O horizonte é imenso, infindas são as possibilidades. Entretanto, tais como as teclas de um piano, finitos são os seres humanos, ainda que se possa compor, num átimo de segundo de vida, incontáveis elementos sinfônicos. A "música" que se compõe é eterna; o "pianista", mortal. Se fosse diferente, a vastidão do firmamento não se transformaria numa linha longínqua, onde o céu encontra o mar, parecendo-se despencar no nada. Pois assim é a "visão" do mundo: finita, ainda que numa ilusão de óptica.

Diante das múltiplas escolhas, toda a gente se confunde. Não é por acaso que o tempo passe, a tecnologia evolua e as organizações ainda usem o sistema de "marque a alternativa correta" para testar candidatos a vagas de emprego ou em universidades. A mente limitada, em constante busca pela moldura, não se sai muito bem com alternativas, o que dirá de múltiplas. E é na calada da alma, quando nenhuma sirene desperta para alertar sobre uma emergência de incêndio - ou naufrágio - que as múltiplas oportunidades embaralham mais a visão. Na conveniência das praças de alimentação, por exemplo, é inconveniente o número de opções de restaurantes. Na ausência de apetite, roda-se feito um galináceo tonto para encontrar o lugar ideal; mas, na hora da fome apertada, é o primeiro arroz-com-feijão que satisfaz. Dá-se, nesse momento, a limitação de si mesmo.

O que nos leva a optar por um caminho entre milhares, a tomar uma decisão em detrimento de outras? Não somos ilhas, nem tampouco mobília animada de navio, como a personagem de "A Lenda do Pianista do Mar". Se vivemos num mundo sem fronteiras, onde imperam a visão, extracorpórea e imediatista, e a mobilidade, presencial e virtual, qual o sentido em escolher apenas um trabalho, um hobby, um apartamento, uma cidade, uma mulher ou um homem quando, a rigor, podemos ter centenas? Para que compor apenas um tema e uma única melodia de amor quando se pode alternar ritmos, estilos, partituras, teatros...? De onde brotam as escolhas? E, o crucial, de onde brotam a necessidade ou a vontade de optar?

Conheço um casal. São uma dupla pouco convencional, onde a incompatibilidade fala mais alto do que a harmonia. Unidos pelo acaso, nenhum deles sabe exatamente o que os mantém juntos. Como escritora, tenho uma prerrogativa que falta aos meus leitores: posso escolher não mencionar nomes (ah, as escolhas...), contar uma história real à guisa de ficção e, por que não, trazer à baila uma experiência pessoal e alocá-la, ou melhor, encarapuçá-la em outras vidas. Cabe a você, que lê estas linhas, decidir. Em qualquer caso, a história é esta: duas pessoas contraditórias em si mesmas e entre si, para quem tomar uma decisão pode ser algo tão tortuoso a ponto de beirar a dor. Quando penso neles, vem-me à mente a ideia de que a vida e o mar os conduzem, e não o contrário. Têm fome, os dois; são mancos, precisam de muletas. E inseguros. Marujos covardes e pianistas canastrões, envergam-se sob o peso das opções e abrem mão das infinitas possibilidades. Talvez já nem saibam mais como escolher; apenas esperam ser escolhidos.

No entanto, não são como 1900. Em suas almas, não habita o incomensurável, mas a plena, pungente e inevitável limitação. Em sua solidão, descrença e fome, contentam-se com o arroz-com-feijão nosso de cada dia, sem ao menos verificar o restante do cardápio. Delimitam-se, pois. Esgarçam-se e afunilam-se até a total nulidade de si mesmos. Toupeiras cegas, mãos unidas no suor frio do medo, eles não abandonam o barco por amor, mas por preguiça de remar de volta à praia. Apiedo-me profundamente desse par de almas penadas, perdidas e pobres. Como nenhum deles costuma ler este Expresso, não temo pelo que possam pensar quando virem parte de sua história aqui exibida, para ilustrar um ponto de vista. A questão é: de onde nasceu a decisão de estarem juntos? Em outras palavras, teriam eles de fato optado ou, ao contrário, a inércia decidiu por eles? Sabendo-se tão limitados em si mesmos, por que se firmariam a um barco à deriva? Na fome e na emergência, é a refeição mais rápida e disponível que satisfaz. Mas, tendo atingido um platô de saciedade, o que legitima sua decisão? Indolência, comodidade ou pavor?

Estes são barcos pequenos demais para se afastar da margem; o leste desse casal há muito virara oeste. Aliás, são um comandante e um imediato sem bússolas. E, desmagnetizados os dois, remando em mar aberto ou voando alto, não é para o norte que apontam, mas para uma queda brutal. Seria uma felicidade podê-los ajudar a encontrar a si mesmos e, quem sabe, um ao outro. Mas temo não possuir a melhor das bússolas. Por outro lado, temo a vastidão, o infinito e as múltiplas escolhas; nunca me saio bem em testes objetivos. Se tivesse nascido em um navio, como o pianista do mar, é muito provável que eu não o abandonasse pelo simples temor de que, em face ao infinito do mundo, minha própria finitude e pequenez se agigantassem, engolindo-me tal qual um buraco negro e me implodindo como uma supernova. Continuo sem saber de onde brotam as decisões e, confesso, para mim o mundo é tão grande quanto o caminho que traço de casa para o trabalho e vice-versa. Como um navio-fantasma. O livre arbítrio é mesmo a maldição dos indecisos, cansados, pobres e desnorteados. E viva a liberdade.   

26 de agosto de 2011

estrangeiro


Sentimento assustador é descobrir-se estrangeiro. Um forasteiro em si mesmo, alógeno encarcerado num corpo que é invisível aos próprios olhos, à deriva, na anomia da sensação de não-pertencer, não-poder, não-estar. É estrangeiro tudo que foge aos moldes, à ordem e aos hábitos; é o alienígena que pousa em terras desconhecidas e, por trás dos seus óculos de ET, enxerga o cotidiano túrbido dos nativos; o estranho no ninho. Em meio aos iguais - entre si, mas não para com ele - o estranho repara-lhes as bocas se movendo, escuta-lhes o som das palavras e vê as cores dos sorrisos e o borrão das lágrimas, mas, ainda assim, não compreende o que capta a sua percepção. Em território estrangeiro, o forasteiro é ignoto; caminha entre pares e, na dessemelhança, traça rotas cegas ao sabor das correntes, insulado, fragmentado, atinente à nada.

Para o estrangeiro nato, que jamais memoriza os pontos de referência, as avenidas largas e os cruzamentos das terras que, sem sucesso, tenta habitar, mapas nem sistemas integrados de GPS vem a calhar. Rimas, tampouco. O turista é, por natureza, torto, perdido, míope e alheio. Aliena-se e é alienado. Abraça o opróbrio para escapar à humilhação do ostracismo: late e morde antes de ver o ladrão adentrar o quintal. Olha as palmas das mãos e as desconhece. Em linhas cruzadas, ignora o destino que a si cabe traçar. De quem são esses anéis? A que se propõem digitais que apontam para uma não-identidade...?

Há quem nasça pertencente ao mundo: adaptável, moldável, volátil. Co-cidadão. Na contramão destes, os forasteiros: andarilhos cosmopolitas, caipiras high tech, vampiros do meio-dia. Burgos, aldeias, vilas, cidades, países inteiros a eles se apresentam tão obtusos quanto à rotina dos dias: casa, trabalho, sorvete, cerveja, cigarro, casa. Ou o contrário. Fugiu-me à memória. Pois carentes de memória episódica somos os estrangeiros. Em nós, sobeja o peso das correntes do passado semântico: terminologia elegante para algo nada vistoso: a melancolia e os aspectos gerais da lembrança, desta que não delimita, mas, ao contrário, borra o cenário que pintam os moradores.

Sensação agreste esta de saber-se estranho, de que o tempo corre a milhas à frente e ele, analfabeto em línguas pátrias e estrangeiras, perde bondes e entradas por não ler as placas. Por não pertencer, o estrangeiro deveria sentir-se leve, livre do peso das raízes, da responsabilidade, da opressão que é nascer, viver e morrer na mesma e única casa. Entretanto, por tão frugal e vaporosa a sua existência, o alienígena arrasta consigo o peso de toneladas moleculares, cerebrais, sentimentais. Âncoras que não o seguram ao porto, mas lhe retardam as velas e retalham o convés. Peso morto. O ônus inafiançável de quem é estrangeiro e prisioneiro de si.    

11 de agosto de 2011

puzzle(d)

By Monica Secas

Lição do século III: shake your ass before someone else does it for you.
Roberta Rohen

9 de agosto de 2011

sair, molhar, viver

By Monica Secas
Lição do século II: dá trabalho, mas, no final, vale à pena. Não é...?

Roberta Rohen