3 de novembro de 2010

trajetórias

“Mas, Henrique, meu amigo, você está certo do que sente por ela?”. Isso foi tudo o que Anderson conseguiu dizer ao único amigo que tinha na cidade e na vida, há quase trinta anos. Estavam os dois na casa de Anderson. Gabriela, esposa do homem mais velho, tinha saído com a filha para fazer compras. Na sala de Anderson, sem Gabriela e Juliana para lhes espiar, ocasionalmente, pela fresta da porta da cozinha, os dois se sentiam completamente à vontade. Pelas janelas dos fundos escancaradas, eles podiam ver as folhas das amoreiras balançando ao vento cálido de janeiro. O ventilador de teto girava na potência máxima. Fazia um calor forte aquele dia, que sufocava os poucos moradores que se atreviam a sair de casa. Henrique, quebrando um de seus muitos hábitos, foi a pé à casa do amigo. Naquele dia, ele queria que os passos que ia dando na calçada fossem acalmando seu coração descompassado, acelerado, há tempos perdido. Normalmente ele nunca caminhava pela cidade. Henrique sempre fora o tipo de homem com objetivos bem traçados, até nas coisas mais banais: quando saía de casa, não perdia tempo caminhando pelas ruas, nem cumprimentando vizinhos ou dando ouvidos a mexericos citadinos. Em sua motocicleta, chegava mais rápido ao destino, resolvia quaisquer pendências que tinha e, sem mais demoras, voltava para o seu canto, um esconderijo onde uma aura de segurança o envolvia, alienando-o de tudo e de todos.

Henrique tinha uma visão muito particular do tempo: almejava controlá-lo a todo custo, embora soubesse que pouco podia fazer, na prática, para comandar as horas, levando-as a correr como melhor lhe aprouvesse. Por isso, ele não gostava de perder tempo. Não olhava a paisagem quando pilotava, não se permitia parar numa sombra gostosa do caminho, nem dar meia volta se houvesse esquecido alguma coisa. Para Henrique, a vida era uma linha reta, geometricamente traçada entre o ponto “A” e o ponto “B”. Era um sujeito de caráter firme, a quem todos respeitavam, com credibilidade sólida, construída ano após ano com seu próprio trabalho e, acima de tudo, um homem prático, que não se deixava abater facilmente pelas subjetividades da vida. Era, sobretudo, um lobo solitário, que remoia seus problemas e indecisões sem dividi-las com ninguém, às vezes nem mesmo com Anderson. Se tivesse que fechar um negócio, fazia-o sozinho. Henrique não costumava aceitar conselhos, mas também não se envolvia suficientemente a fundo para distribuí-los, mesmo a quem o pedisse por eles.

Henrique tinha qualquer problema com sentimentos. Não é que não os possuísse, mas ele tinha a impressão, assim como aqueles que o rodeavam e os poucos que conviviam com ele, que os sentimentos, as paixões, o calor humano que é capaz de tanto abalar quanto ressuscitar um homem, não podiam chegar até ele. Henrique não saberia dizer por que tal frieza tomara conta de seu peito. Não poderia suscitar nenhum trauma de infância, porque nem sabia se os havia vivenciado, assim como nenhuma reminiscência chegava-lhe em nível consciente, para que ele compreendesse os motivos pelos quais era tão etéreo e desapegado a pessoas e a sentimentos. Suas únicas verdadeiras raízes no mundo, aqueles que lhe faziam sentir o sangue correr nas veias, vivo e jovial, sempre, eram seus filhos, Lavínia e Carlos, a quem amava e se entregava por inteiro. No mais, nada prendia de fato Henrique, a não ser a própria e gigantesca roda da vida, onde Henrique girava e girava numa ciranda sem fim.  

Por essa distância do mundo, por nunca se permitir colocar sob holofotes, nem na berlinda, pela frieza aparente que, na verdade, revelava o desapego emocional de Henrique, havia quem dissesse que ele era desligado, um acomodado incorrigível, filho daquela terra por acaso, mas cidadão por escolha. Mas muito poucos conheciam-no de fato. Além de Anderson, apenas sua esposa, Fabiana e, em algumas de suas facetas, Lavínia e Carlos. Seu pai não o conhecia, os colegas com quem conversava fiado eventualmente, parentes próximos e distantes, ninguém sabia quem era Henrique de verdade, nem por que era tão reservado, a ponto de parecer distante.

“Quer mais água, Henrique? Pego pra você, na cozinha”.
“Não precisa, Anderson. Já está mesmo na minha hora de ir”.
Quando a amizade entre dois homens atinge tal nível de confiança e conhecimento mútuos, as palavras não se fazem muito necessárias. Os gestos, os olhares, as sutis mudanças de atitude, comportamento e humor, esses, sim, eram os códigos que Henrique e Anderson usavam em seu relacionamento. “Quem tem sempre muito a dizer e a se explicar, é porque não conhece o outro, nem o outro a ele”, Anderson costumava dizer. “Palavras às vezes atravancam o fluir das coisas”. Ele estava certo. Anderson era dez anos mais velho que Henrique. Era seu amigo, um mentor e guia, muitas vezes o pai com quem, por opção, Henrique decidia se abrir. Ele não só considerava o amigo no mais alto crédito, como também o respeitava profundamente. Se não fosse por Anderson, Henrique ainda seria muito daquele moleque perdido que fora há anos, caminhando às cegas e tropeções em busca de sua própria identidade. Com os pais, Henrique nunca encontrara eco. A mãe era frívola, vaidosa e centrada demais nos próprios problemas, reais e imaginários, para escutar o silêncio de Henrique, tão prenhe de significados, e interpretá-lo. O pai, calado e introspectivo, muitas vezes ausente, também não abria brechas para que o rapaz pudesse entrar e fazer morada. Então, havia sido Anderson quem “pescara” Henrique e, aos poucos, encaminhara o amigo para o mar a que ele pertencia. E daquele mar, cheio de luminosidade e conhecimento, Henrique sabia que jamais sairia, mesmo que perdesse contato diário com Anderson.

O homem mais jovem levantou-se primeiro. Anderson ainda ficou sentado por alguns segundos, observando profundamente a fisionomia de Henrique, o brilho em seus olhos e a apreensão com relação ao futuro incerto que o aguardava, todas aquelas emoções estampadas em seu rosto, que o amigo sabia ler como ninguém. Henrique nunca soubera lidar com imprevistos de ordem imaterial, e Anderson sabia disso. Podia imaginar a confusão que borbulhava no peito do amigo, o barulho que ressoava em seus ouvidos. Levantou-se em seguida e abraçou o amigo. “Precisamos conversar mais, Henrique. A prosa de hoje foi muito curta. Muitas peças faltam nesse quebra-cabeças para eu ver a imagem por inteiro, meu irmão”. Henrique piscou, arqueou as sobrancelhas escuras, ajeitou os cabelos e riu. Um sorriso baixo e profundo, aquele sorriso que revelava o tudo e o nada, ao mesmo tempo. “Já dei o primeiro passo, Anderson. Te abri a porta. Não vou me esconder mais de você. Pelo menos não por muito mais tempo”. Dessa vez, a risada soou mais alta e solta, a sua marca registrada. Henrique tinha essa mania, que muitos às vezes não compreendiam: em situações embaraçosas, ou nas quais ele não gostaria de estar envolvido, ele ria, talvez para desanuviar os ares, ou para ocupar silêncios, quem saberia...?  Anderson deu um tapa em um dos ombros do amigo, olhou-o bem dentro dos olhos e disse: “Eu não te julgo, Henrique, nem jamais te condenaria. Não tenho esse direito. Estamos todos em pé de igualdade nessa vida. Essa é uma decisão que só você pode tomar. Mas é uma decisão que envolve escolhas. E você deveria se decidir. Sabe, um comandante pode abandonar seu navio para navegar outros mares. Mas, você sabe, eu sei, nenhum capitão pode comandar mais de um navio ao mesmo tempo. Você entende isso, Henrique?”. Anderson não lhe daria trégua, não o deixaria escapar pelos dedos, não fingiria ser apenas um mero ouvinte de sua história. Ele não pouparia o amigo, nem mesmo na hora em que ele já se encaminhava, ansioso, para a porta da sala. “Eu entendo, Anderson. Mas entender que tenho que me decidir não facilita em nada as coisas, nem resolve meu problema”. Girou a maçaneta da porta e os dois sentiram o calor abafado que vinha da praça. “Gabriela e Juliana já devem estar pra chegar”, Henrique disse para o amigo, mas não se virou para olhá-lo de frente. Antes de por os pés para fora da casa de Anderson, ainda ouviu-o dizer, num tom sereno, mas severo, como o de um pai que aconselha um filho desnorteado: “O problema deixa de ser problema no momento em que você de decide, Henrique. E se liberta. Aí, de problema, vira trajeto, missão nova a cumprir. Mas nada, absolutamente nada, pode e nem vai facilitar as coisas para você. O caminho mais fácil não me parece ser o seu caminho”. Henrique fechou os olhos, já se perguntando se deveria mesmo ter contado tudo, ou parte de sua história, do seu segredo, a Anderson. Ele não queria ouvir mais. Queria, precisava desesperadamente voltar para casa, tomar uma ducha fria e dar ouvidos ao próprio silêncio. Precisava ficar sozinho por umas horas. Henrique se perderia no mundo caso não tivesse seus momentos de solidão. E, na tentativa de encontrar um norte firme que pudesse seguir, ele se via cada vez mais sozinho, com a mente fervilhando em busca de respostas. Certas coisas jamais mudam em um homem como Henrique. Tomar suas decisões completamente sozinho, sem conselhos nem sugestões, era apenas uma dessas coisas. “A gente se vê na quinta, Anderson”. Fechou a porta atrás de si e deixou o sol escaldante atingi-lo em cheio. Poucos minutos depois, refazendo o caminho de volta para casa, já sentia o suor escorrer por sua testa, molhar seu peito e costas, Uma gota caiu em seus lábios, e ele lambeu do próprio suor, sentindo-lhe o gosto de sal. Imediatamente, lembrou-se dela. E o suspiro que deu foi abafado e contido, como eram contidas as emoções, entregas e decisões de Henrique.
   

"Das Parfum", Patrick Süskind
A primeira vez em que a viu, que realmente olhou para ela, estavam numa praça aconchegante da cidade onde alguns parentes dela moravam. Se havia uma coisa que intrigava a personalidade aguçada e curiosa de Henrique eram as perguntas sem resposta. E Flora seria, eternamente, um enigma para ele. Henrique não sabia responder, com precisão, porque havia procurado por ela, após tantos anos sem convívio algum. Para ele, Flora tinha um certo ar de mistério, uma inteligência e um brilho que o encantavam, quase seduziam. Mas isso era tudo. Ele não sabia nada de Flora: seus gostos, seus sonhos, como vivia a vida, se gostava da vida que levava, nada. Numa manhã mais ociosa, depois de voltar do trabalho, ele simplesmente procurou por ela pelo método que, àquela época, lhe parecia mais conveniente: digitou o nome completo de Flora num mecanismo de busca da Internet e o encontrou, único entre milhares, associado a uma rede social de conexões. Flora Campolino. Só havia uma delas, num jardim repleto de flores, madressilvas e rosas. O pai de Flora costumava dizer que havia escolhido seu primeiro nome para que combinasse com o segundo, para que soasse como poesia. Flora não tinha muito jeito para flor, e muito menos para o enfleurage exuberante que coloria de lilás, amarelo, vermelho e laranja os campos do sul da França, onde ela havia morado por meses. Quando Henrique viu seu nome, teve acesso também a um email de Flora. Num impulso, que posteriormente ele consideraria arriscado e perigoso, mas que, no momento, nem lhe abalava a serenidade comum ao seu jeito de ser, enviou-lhe uma mensagem. Foi uma mensagem curta, de duas linhas. Nela, Henrique perguntava como andavam Flora e a família, dizia que soubera que ela tinha tido um filho (qual é mesmo o nome dele?), e que fazia anos que não se viam. Terminou a mensagem lhe dizendo sentir saudades. Mas aquela última frase foi apenas licença poética da qual Henrique se utilizara. Como poderia ele sentir saudades de Flora, se mal a conhecia e se jamais havia convivido com ela...?  

Passaram-se mais de duas semanas para que Flora visse o email de Henrique. Aquele era um endereço que ela pouco utilizava, e, vivendo num mundo de restrito círculo social, ela nem chegava mesmo a usar sua correspondência eletrônica. Quando viu a mensagem, ela se assustou como há muito não era surpreendida. Um email de Henrique? Para ela? Mas então ele usava computadores...? Respondeu-lhe ato contínuo: uma mensagem comprida, onde lhe dizia que seu filho, Alexandre, era um menino saudável e bagunceiro, que seus pais estavam bem, mandavam abraços, e que ela estava com muitas saudades do amigo que não via há quase cinco anos. O pai do menino, ela lhe contara, havia deixado a esposa há poucos meses, mas tudo corria bem. A união de Flora com Júlio havia sido um erro, não havia compatibilidade entre eles. Flora terminou a mensagem mandando muitos beijos, dizendo que sentia saudades, mas tomara o cuidado de não perguntar por Fabiana, nem Lavínia e Carlos. Afinal, por que perguntaria por eles...?

Henrique e Flora começaram a se falar pelo computador. Conversavam sobre suas filosofias caras e baratas, sobre o passado de que cada um se recordava, contavam piadas, traziam à baila assuntos mais sérios e brincavam de flertar. Pela tela de um computador, qualquer um pode ser o que desejar. Mas, descobrindo-se os dois, eles eram apenas Henrique e Flora. Até o dia em que ele ligou para ela. Flora sorriu ao ouvir a voz indefectível de Henrique, que ela guardara no compartimento emocional da memória e jamais esquecera. Henrique não reconheceu a voz de Flora, o que era esperado. Não a ouvia falar há anos e, quando ouvira, não prestara muita atenção. Ela brincou com ele, seu humor nas alturas: “Eita, não conhece mais minha voz, não, Henrique?”. Meio sem-graça, ele respondeu, um pouco sério: “Sua voz é completamente diferente pelo telefone, menina”. Flora fingiu acreditar. Henrique não poderia distinguir sua voz nem se ela estivesse a dez passos dele e dissesse: “O rato roeu e rasgou tua roupa rococó”. Falaram-se por quarenta minutos. Riram muito, disseram bobagens e algumas verdades também, contaram um pouco um do outro, deram o primeiro passo para que as conversas de computador pudessem, de fato, virar diálogos.

Henrique precisava ver Flora, saber como ela estava, quem ela era. Ela o havia encantado com seu senso de humor rápido e o pensamento maduro e aguçado, mas ele precisava senti-la, mesmo que à distância, ver com seus próprios olhos a mulher que ela era e que ele desconhecia. Não demorou mais do que três semanas para que Henrique arranjasse uma desculpa com seu chefe e uma viagem a trabalho para a cidade onde Flora morava. Sentir que Flora poderia se apaixonar por ele, ela, que morara na França, falava três idiomas e, no conceito idealizado de Henrique, era a força encarnada em mulher, deixara-o simplesmente louco. A paixão e os sentimentos de Flora, que ele sentia pelas palavras que ela escrevia e pelas histórias que lhe contava, aguçavam os sentidos de Henrique, acordando-o de um torpor do qual ele nem se dera conta estar. Flora deixava seu olfato mais apurado, seu paladar mais refinado, sua própria mente mais ágil. Com ela, ele se sentia o lobo que sempre sonhara ser, mas cujo cordeiro que ele personificava jamais deixara aflorar-lhe à alma. Por isso ele precisava vê-la. Por isso, naquele momento, sua pressa e ansiedade eram maiores do que as dela. Flora era uma novidade para Henrique e, cordeiro ou lobo, ele era, acima de tudo, irrecuperavelmente curioso. Como São Tomé, era preciso que ele visse se toda a sinfonia desafinada de emoções que Flora despertara nele era real. Quem seria Flora, afinal...?

Flora era uma descoberta, uma surpresa boa para Henrique, que sabia viver um dia de cada vez. Era uma mulher mais jovem que ele em mais de dez anos, que se entregava sem reservas, apaixonadamente, mostrava-lhe sempre seu lado mais radiante, escondendo dele as sombras que, eventualmente, rondassem seus pensamentos, alguém que estaria sempre a sua espera. Flora era uma aventura boa, louca, desmedida. Ela não exigia respostas, não fazia perguntas embaraçosas e respeitava o tempo de que Henrique precisava para se acostumar com a ideia do novo, do desconhecido, do ameaçador. Flora era um campo aberto, de solo fértil e vivaz, louca para entrar na memória emocional de Henrique, esta que, poeticamente, chamamos de "coração". Henrique era uma fortaleza, um castelo com muralhas altas demais para se escalar e, a cujas portas, Flora dificilmente teria acesso, o que dirá àquelas chaves.

Os dois tiveram alguns encontros, freqüentes a princípio, posteriormente cada vez mais espaçados, a medida que Henrique percebia que, num jardim de flores, homens, mulheres, amigos e amantes, Flora era única. Única porque fazia parte do passado e do presente dele de uma forma à qual ele perdia o controle e não compreendia. Única porque, nele, havia descoberto o melhor de si mesma, e não tinha vergonha de lhe revelar isso. Única porque despertava sentimentos em Henrique, sensações que ele amava, por um lado, mas odiava por outro, porque bagunçavam-lhe a ordem do seu trajeto retilíneo "A-B". Seu aroma era diferenciado e sua cor indecifrável, justamente porque ela o amava e conhecia suas mazelas, seus sentimentos de culpa e suas tentativas de protegê-la dele mesmo, todas inúteis. Flora era única porque levava Henrique a quebrar hábitos, fugir à rotina, mexer-se e questionar-se. E, por mais que Flora o levasse às alturas e fizesse com que ele se sentisse o homem mais importante do mundo, Henrique não acreditava no que pensava, ou tentava, ou evitava sentir. E, perturbado com o som dos tambores que Flora fazia soar em seu peito, Henrique afastava-se dela. Porque acreditava que, afastado da fonte nova de auto-descoberta e expansão de limites que Flora representava, ele poderia voltar ao seu centro, voltar ao centro da roda gigante da vida que o consumia, e a ela, e a todos. Henrique era curioso, sonhador, audacioso e aventureiro. Mas tinha Lavínia e Carlos, que o amavam como pai e amigo. Tinha Fabiana, que sabia exatamente onde pisar em seu terreno porque, há anos sendo sua companheira e amiga, já se habituara ao jeito de Henrique, conhecia-o e, por isso, não o incomodava, da mesma forma que ele não incomodava a esposa. No conforto do "não incomodar", Henrique e Fabiana se completavam, cômodos, felizes, serenos e retilíneos. Mas Flora, passional e barulhenta, questionadora e sonhadora, incomodava Henrique, fazia-o questionar a si mesmo, punha a prova a resistência dele. E, mesmo sem sabê-lo ou tentar, ela era uma ameaça velada.

O medo do amor genuíno e atual de Flora e o temor de nunca poder corresponder àquele amor, faziam-no afastar-se dela, até que chegasse o momento em que não se lembrariam mais das vozes um do outro, de seus cheiros, das peculiaridades de cada um, dos projetos sussurrados de madrugada, da compatibilidade que tinham e de como se pareciam. E, talvez, esse momento já houvesse chegado. Falta-lhes apenas a força para voltarem a seus mundos reais: Henrique, um castelão, imperador de uma fortaleza distante, que os outros viam senão através de brumas. Flora, a seu campo aberto, sujeito a estiagens e seca, temporais e enchentes, uma flor única num campo de flores idênticas. Mas de que lhe valeria tanta diferenciação se as cores de Flora se desbotavam e se, em meio a tantas outras rosas, ela perdera seus espinhos e não possuía o colibri pelo que ansiava? Melhor seria que ela fosse como as outras flores, colhidas sempre, replantadas depois. 

Talvez ambos soubessem que o tempo deles havia passado porque, na verdade, eles nunca tiveram um tempo só para si. O tempo é inimigo dos amantes, até nos contos de fada, onde a princesa precisa adormecer por séculos até que seu príncipe, enfrentando dragões e muralhas de espinhos, a desperte com um beijo. E a vida era tudo, menos um conto de fadas. E eles sabiam que, na vida de cada um, nem tudo era só querer. Henrique e Flora, talvez, fossem as pessoas certas, na hora, no tempo e no espaço errados. E incertos. Flora sempre quis que Henrique lesse o seu livro preferido, o que conta a história de Thomas e Tereza. Mas nunca tivera coragem de lhe dar aquele livro. Ela temia que, naquelas páginas, Henrique visse que era como Thomas e ela, como Tereza. Flora temia que Henrique, tendo lido todas as suas duzentas páginas, entendesse a mensagem do autor: só há uma vida a se viver em nível consciente, a mesma vida para se viver uma só vez, uma chance para tomar decisões. Se, ao final, percebe-se que as decisões que se tomou e as que deixou de se tomar foram "erradas", não há um botão de reset para se apertar e voltar ao início. Flora sabia que sua história com Henrique valeria contos, quem sabe um livro, como o do médico Thomas e da fotógrafa Tereza. Mas não queria ler livros com ele. Queria estar nas páginas, decidir o enredo e o final, com ele. Se Henrique um dia lesse o livro da vida de Flora, entenderia que o que era leve para ela, seria insustentável para ele. Pena que ele não tivesse coragem de dizer-lhe que não haveria tempo para os dois, nem para livros, nem para uma história, nem para o leve e para o pesado.

Em sua casa, Henrique jantou com os filhos. Riram juntos, as crianças lhe contaram acontecimentos daquele dia, o pai contou-lhes uma ou duas piadas, Carlos e Lavínia abraçaram o pai e, depois, cada um foi buscar o que fazer, já a traçar seus próprios caminhos. Pouco depois, Fabiana chegou, cansada do trabalho, de mais um dia difícil com pessoas difíceis, mas, ainda assim, tinha um sorriso sereno no rosto e disposição para dar atenção aos filhos e ao marido. Ela era constante, não assustava. Ao contrário, era ela a presença forte e segura naquela casa. Se houvesse disposição nos dois, haveria diálogo, amor e dedicação, sempre. Henrique olhou sua casa, o portão que dava para a rua onde todos o conheciam, seus filhos fazendo planos para o dia seguinte, uma leve balbúrdia de família alegre. Escutou os barulhos da cidade, aspirou fundo e sentiu o cheiro daquele lugar, seu habitat. Observou Fabiana comer e ouviu-a contar uma novidade do trabalho. Henrique precisava de terra e raízes. E de continuidade. E de tijolos. E de cimento e concreto. Ele não precisava de flores.

No início daquela mesma noite, quando o céu estava tingido de um púrpura psicodélico e sabiás revoavam ao longe, Henrique pegou o telefone e foi até a sacada de sua casa. Ligou para Anderson. Ele atendeu ao segundo toque. Parecia já estar aguardando a ligação do amigo. 
"Fala, irmão. Tá mais sereno, com a cabeça no lugar?", Anderson perguntou, de chofre.
Henrique suspirou. Não. Um homem como Henrique tinha juízo demais para suspirar. Ele bufava contido, como qualquer pessoa ajuizada.
"Esquece tudo o que eu te contei hoje cedo, Anderson. Não vai acontecer".
"Já esqueci amigo. Escuta, é o melhor a fazer".
"É..."
"Te vejo na quinta, certo?"
"Claro", e Henrique riu, como sempre, para desanuviar.
Desligou o telefone, convencido de que, sim, era o certo a se fazer. Mas ele jamais, em consciência, viveria a mesma vida, com as mesmas personagens, para saber, no final da história, se aquela decisão teria sido a mais certa. Para ele, para sua família, para Flora e para o resto dos habitantes da roda gigante da vida.     

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