22 de fevereiro de 2011

in(só)lito capítulo 3

"Confie em Mim", John Everett Millais

"Então... Acho que é melhor que eu vá agora".
"Eu achava que seria melhor se você dissesse 'muito prazer, Márcia'".
"É muito provável que eu já tenha dito 'muito prazer, Márcia, eu sou o Bruno'. Só não me lembro disso".
"E se eu dissesse que você não quis saber o meu nome em momento algum?"
Ele se levantou da bancada, suspirou fundo, aborrecido com o rumo que ela dava à conversa, fez meia volta e, de costas para a moça, respondeu: "Nesse caso, Márcia," - pronunciou o nome dela silabicamente, como um estrangeiro que ouvisse e repetisse a palavra pela primeira vez - "vai ficar o dito pelo não dito. Claramente é você quem está contando a história aqui, na versão que mais lhe agrada".
"Você acha realmente que eu inventaria coisas a respeito dessa noite?"
Bruno virou-se para ela novamente. Ele tinha olhos grandes, muito escuros, e os lábios se contraíam de raiva, frustração e arrependimento.
"Eu não acho nada. Não tenho como achar. Nem sei quem você é".
"Ah, mas eu sei quem é você. Aliás, você fez questão de me contar. Ou acha que eu tenho um caldeirão de bruxa, fervendo lá nos fundos da cozinha?"
"Eu realmente acho que deveria ir embora daqui".
"Eu acho que essa fala deveria ter sido minha. Mas por que será que ainda estou sentada, esperando que você tome seu café amargo e intragável?"
"Por que você faz tantas perguntas? Já não sabe tanta coisa a meu respeito?"
Ela pareceu refletir por um instante. Mirou a janela atrás dele, estalou a língua nos dentes e levantou-se. Com duas passadas estava a sua frente. Era quase tão alta quanto Bruno, embora ele se lembrasse dela menor, mais vulnerável na noite anterior.
"Tem razão. Mas, por outro lado, você pode ter mentido. Ou inventado um drama sofrível para garantir seu café da manhã. Ou, quem sabe, a vodka realmente tenha funcionado e você teve delírios verbais etílicos."
"Pois é. Muita dúvida no ar. Novamente, vai ficar o dito pelo não dito".
"Você é um sujeito corajoso, Bruno. Corajoso e arrogante. Suas roupas estão no quarto. Os sapatos também. A porta da saída é logo ali, a sua esquerda". 
Disse isso e sumiu pelo corredor. Sozinho na cozinha, Bruno ouviu uma porta se fechar de leve. Baixou os olhos, constrangido, e praguejou em voz baixa. Esperava gritos, portas batendo, exclamações inflamadas e cobrança. No entanto, a fala dela denotava pesar. E aquela tristeza fez nascer em Bruno uma empatia por ela. Mais do que a tristeza, o benefício da dúvida de Márcia aproximava-o dela. Sacudiu a cabeça e foi em direção ao quarto. Ao diabo com tudo aquilo. Havia saído de casa para se divertir pela primeira vez em três anos, conhecera uma garota na danceteria, tivera sexo casual e isso era tudo. Não precisava saber quem era ela, com o que trabalhava, se era casada, solteira ou viúva, se tinha filhos, do que gostava, nem porque morava num apartamento tão antigo da cidade.
Completamente vestido, com a mão à maçaneta, lembrou-se do carro. Tateou os bolsos em busca das chaves e não as encontrou. Também não se lembrava de onde havia estacionado o carro. Dessa vez xingou mais alto. E prometeu a si mesmo jamais beber tanto em sua vida. Seus dias de jovem estudante de Faculdade haviam há muito passado. Ele não tinha mais idade, tempo nem senso de ridículo tão elástico que o permitissem se embriagar a ponto de ter lapsos de memória. Definitivamente aquilo não poderia ser classificado como "sair para se divertir".
Voltou ao corredor e bateu à porta do quarto onde ela havia entrado há poucos minutos. Nem um único som. A exasperação crescia em seu peito em progressão geométrica. Bateu novamente, três pancadas mais firmes agora.
"O que foi, Bruno? Não conseguiu encontrar a saída?" A voz dela soou abafada pela porta, mas ainda era cristalina e firme. Ele não respondeu. Enfiou as mãos nos bolsos e esperou por ela. Segundos depois, abriu a porta.
"Agora você já sabe que deve deixar migalhas de pão pelos caminhos onde anda. Assim, não se perde nunca, Joãozinho". Os olhos dela faiscavam, entre divertidos e raivosos.
"Nossa, como você é espirituosa. Deve ouvir isso sempre, não é? Ou só dos bêbados em delírio etílico?"
"Não. De todos, menos dos bêbados e desmemoriados".
"Escute, eu não quero mais incomodar você. Já fez seu ponto. Não precisa dizer mais nada para me fazer sentir ridículo e juvenil".
"Mas essa não é a minha intenção, absolutamente. Você é que foi muito rude em me pedir café e não tomar nem meia xícara."
Ele abriu a boca para contra-argumentar, mas nem se deu o trabalho. Ela estava com as pernas cruzadas, encostada ao umbral da porta, e parecia estar realmente se divertindo com aquilo. Talvez fosse louca. Havia mulheres bonitas, interessantes e lunáticas no mundo. 
"Eu não sei onde estão as chaves do carro, Márcia, nem onde estacionei".
Primeiro os olhos dela se arregalaram de pura surpresa. Depois, ela explodiu numa gargalhada alta que o fez sentir uma cólera descomunal. Seu rosto ardia pelo vexame. Crispou os punhos e suspirou. Precisava da memória daquela mulher, ou então precisaria ir à delegacia dar queixa de furto do automóvel.
"Eu também não sei, Bruno".
"Como assim 'eu também não sei?' Nós viemos para cá de carro, não foi? Mas não é possível que eu tenha dirigido até aqui. Onde você estacionou?"
"Eu nem sei dirigir, Joãozinho".
"Deus! Pare com isso, sim? Você tem o que, doze anos?"
"Não. Vinte e oito. Você não acha que, numa situação dessas, é melhor fazer humor do que drama?"
"É melhor se ater à realidade. Onde estão as chaves e o carro?"
"Minha amiga veio guiando. Ela mora no bairro. Veio até aqui, nos deixou na portaria, estacionou e entregou a chave para o porteiro. Foi muita gentileza da parte dela".
"Ela estacionou e deixou as chaves com o porteiro? E como você sabe que essa pessoa, essa mulher, essa amiga não se mandou com o meu carro?"
"Porque ela tem o dela. E o marido dela também tem um. E os dois carros são melhores do que o seu. Ela não precisaria roubar".
"Você é esse doce de pessoa com todo mundo, é?"
"Não. Só com analistas de sistema sem senso de humor e que desconfiam de deus e o mundo, menos deles mesmos".
"Vá, vá. Está mais do que claro que essa noite foi um erro".
"Essa também deveria ter sido uma fala minha. Você gosta de dizer o que as mulheres diriam nessas situações, não é?"
Então Bruno perdeu o fio de paciência e compostura que lhe restavam. Deu um passo a frente e segurou-a pelos ombros. Não gritou, não a empurrou, nem a sacudiu, mas o ímpeto para tanto não lhe faltou.
"Por que você faz isso? O que você vai ganhar me tirando do sério desse jeito?"
Pela primeira vez a voz dela era glacial e os olhos, ausentes.
"Eu não vou ganhar nada. Mas você vai perder muito se continuar me segurando desse jeito".
"Desculpe", e soltou-a. "Eu só quero sair daqui. Não é nada pessoal. Mesmo, entenda".
"Claro. Nunca é pessoal. Nem quando a gente conta a vida para o outro".
Ela foi até a porta, abriu-a e fez sinal para que ele a seguisse. Tomaram o elevador e desceram quatro andares. O dela era o último. Bruno olhava o corredor de paredes pintadas de verde da portaria, a mesa de mogno à entrada e o elevador antigo. Tudo ali era muito velho. A sensação era de que ele havia feito uma viagem no tempo, ou entrado nesse prédio do século passado, como se fizesse sol na cidade inteira e chovesse apenas sobre eles, naquele local.
"Espere aqui, por favor. Vou falar com o porteiro".
Observou-a dirigir-se à mesa de mogno, onde um homem calvo, de meia-idade, vestindo calças pretas e uma camisa bege sentava-se, olhando pela porta de vidro da entrada distraidamente. Ela tinha aquele mesmo andar da noite anterior: olhos ao chão, passos lentos, uma graça descuidada, quase leniente.
"Bom dia, Amauri. Tudo bem com o senhor?"
"Bom dia, Marcinha. Tudo indo, minha filha. E o pequeno Perebas? Não vejo mais você sair para passear com ele aos domingos..."
"Ah, Amauri... O Perebas morreu há duas semanas. O senhor não soube, não?"
Bruno acompanhava aquela conversa, estupefato. Ele não estava apenas no século passado, mas também em Adamantina, a cidadezinha de trinta mil habitantes, onde passava as férias à mercê das primas tirânicas.
"Não, minha filha. Que triste, isso. Você deve estar muito chateada..."
"Ele já estava bem velhinho, Amauri. Eu já estava preparada".
Então o porteiro olhou para o lado e notou a presença quieta de Bruno. Encarou-o com olhar neutro, sob óculos de aros escuros de acetato. 
"Então, Amauri, eu vim aqui pegar as chaves do carro desse meu amigo. A Adélia deixou aqui, ontem à noite, com o Romano".
"E Dona Adélia deixou as chaves do carro desse rapaz aqui na portaria por que?"
Márcia pressentiu um movimento de Bruno e olhou-o de esguelha, fazendo um sinal discreto com a mão para que ele permanecesse sentado e calado. 
"Ela estacionou o carro para nós, Amauri. Meu amigo não estava se sentindo bem".
"Ah, Marcinha... Dona Lira não ia gostar nada disso".
"Amauri, meu amigo, por favor, agora não. Onde estão as chaves? O Romano entregou para o senhor no final do turno, não é?"
"Entregou nada, não. Deixa ver se tem alguma chave aqui na gaveta. Vai ver aquele moleque tonto guardou aqui".
O porteiro pôs-se a revirar a gaveta da mesa, encurvado sobre o móvel. O prédio era tão silencioso e a rua lá fora, tão quieta, que Bruno sentiu-se sufocar. Às vezes o barulho cobria buracos em avenidas pelas quais ele não podia mais caminhar. Ou por onde jamais caminhara. Os dois trocaram um olhar mudo, preocupado. Márcia já não brincava mais. Estava muito séria e compenetrada. Bruno sorriu de leve, cinicamente. Agora ele sabia que ela era a protegida do porteiro milenar daquele prédio, que sua melhor amiga se chamava Adélia, que ela tivera um pulguento com o nome mais absurdo que já ouvira e que não passava de uma garotinha da mamãe, que ficaria muito aborrecida quando soubesse que a filha havia passado a noite de sábado com um "amigo". O senso de humor vai embora à medida que o véu do mistério se descortina, não é mesmo, Marcinha?
"É, filha. Não tem chave nenhuma aqui, não. Se dona Adélia deu as chaves para o Romano, ele não deixou aqui".
"Obrigada, Amauri."
"Quer que eu pergunte para o seu Túlio?"
"Não, não mesmo. Não precisa envolver o síndico, Amauri. Eu vou ligar para a Adélia. Ela deve saber me dizer o que aconteceu".
"Se precisar de qualquer coisa, minha filha," - e olhou para Bruno, sem disfarçar a desconfiança - "é só me chamar".
"Obrigada, Amauri. Mas está tudo bem".
Bruno permanecia sentado no sofá da portaria, braços cruzados à altura do peito, ombros tensos e olhar pétreo. Encarava-a firmemente, sem o menor traço de embaraço agora. Na verdade, sentia-se estranhamente superior, mesmo estando à mercê daquela garota desmiolada. Ela havia perdido aquele jogo. Fez cálculos errados, não se preparou para o inesperado. Era como ele, então. Uma garota perdida e solítária, de calças curtas e sem plano B, nua na portaria do prédio mais anacrônico da cidade.
"Você pode esperar aqui, se quiser. Ou lá fora, no parque. Já não faz tanto frio a essa hora da manhã".
"Ou posso subir e terminar meu café intragável".
"Você fez tanta questão de sair, Joãozinho. Não faz sentido querer voltar para a gaiola da bruxa agora".
"Deixo cair migalhas de pão dessa vez. Além do mais, algo me diz que a bruxa não vai cozinhar uma poção mágica para resolver o sumiço das chaves do meu carro em três minutos".
"Seu senso de humor é sempre inexistente ou só aparece em situações de alto stress psicológico?"
"Quase inexistente. Mas escapa às vezes, quando preciso esperar, por exemplo".
"E o que tem isso? Você não costuma esperar pelo que quer?"
"Não em portarias. Em parques, talvez. Mas esse está tranqüilo demais para o meu gosto."
"E qual é o seu gosto, Bruno?"
"Por hora, Marcinha - e sorriu, pela primeira vez aquela manhã - "basta saber que o meu gosto é café sem açúcar".

2 comentários:

  1. Dubão! Quantos mais há? Ou estão em produção?

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  2. Ô, meu querido, você me anima, e muito! Estão em produção. E saber que os lê me faz querer escrever mais!

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