17 de fevereiro de 2011

romance

"O amor romântico é o maior sistema energético dentro da psique ocidental. Na nossa cultura é - mais ainda que a própria religião - a arena em que homens e mulheres tentam conseguir transcendência, plenitude, êxtase e sentido para a vida. Como fenômeno de massa, o amor romântico é peculiar ao Ocidente. Estamos tão acostumados a conviver com as crenças e as suposições do amor romântico que o consideramos como a única forma de "amor" que pode gerar relacionamentos autênticos, a única forma de amor "verdadeiro".  

O ideal do amor romântico irrompeu na sociedade ocidental durante a Idade Média, surgindo pela primeira vez na literatura no mito de Tristão e Isolda, depois nos poemas e nas canções de amor dos trovadores. Era conhecido como "amor cortês" e tinha por modelo o intrépido cavaleiro que honrava uma bela dama e fazia dela a sua inspiração, o símbolo de toda a beleza e inspiração, o ideal que o incentivava a ser nobre, espiritualizado, refinado e voltado para assuntos 'elevados'. Na nossa época, introduzimos o amor cortês nos casamentos, relacionamentos amorosos e sexuais, mas ainda mantemos a crença medieval de que o amor verdadeiro tem de ser a adoração extática de um homem ou de uma mulher que representa para nós a imagem da perfeição". 
Robert A. Johnson  

 

O texto acima foi retirado do livro "We - A Chave da Psicologia do Amor Romântico", do supracitado Robert A. Johnson. O autor americano é um terapeuta da linha junguiana que, desde o início da década de 1990, fez considerável sucesso com a venda da trilogia de HE, SHE, WE, sendo cada qual, respectivamente, a interpretação da psicologia masculina através do mito de Parsifal e o Cálice Sagrado; da psicologia feminina através do mito de Eros e Psique; e da psicologia do amor romântico através do mito de Tristão e Isolda. Sendo fiel discípulo de Carl Gustav Jung, Johnson não foge à regra e, obviamente, utiliza-se de mitos para tentar explicar o subconsciente, ou melhor, o inconsciente coletivo. Em Jung, quando um fenômeno psicológico marcante acontece na vida de um indivíduo, isto significa que um grande potencial inconsciente está emergindo, prestes a se manifestar em nível consciente. O mesmo, portanto, vale para coletividades, multidões. Jung defendia a idéia de que, num determinado ponto da história de um povo, após sucessivos fenômenos psicológicos marcantes coletivos, uma nova possibilidade surge no inconsciente de cada um, daí o conceito de inconsciente coletivo; pode ser uma nova idéia, uma nova crença, um novo valor, ou, ainda, uma nova maneira de encarar o universo.

Para Sigmund Freud, mais cético e o precursor de Jung, quando um fenômeno psicológico marcante acontece na vida de um indivíduo, isto significa, sim, a ação do inconsciente, e a necessidade imediata da intervenção do analista para o auxílio da busca do insight para que tal atividade venha a nível consciente. Alguns dos instrumentos que Freud utilizava na psicanálise clássica na busca do insight, além da fala do paciente, eram os sonhos, que ele considerava como mensageiros do inconsciente. E aí residia mais uma divergência entre Freud e Jung: para o segundo, os mitos eram os mensageiros do inconsciente e, através daqueles, estes comunicam suas inquietações e frustrações à mente consciente. Em outras palavras, um mito é o "sonho" coletivo de um povo inteiro em um determinado ponto de sua história, as expressões simbólicas do inconsciente coletivo. Ora, se Jung parte do pressuposto da existência de um inconsciente coletivo, nada mais natural do que aceitar a idéia do mito de Tristão e Isolda para explicar toda a nossa miséria e paixonite aguda, certo?

É... Certo. Se você for um discípulo de Jung, acreditar na sincronicidade e nos arquétipos, engolir o recalque religioso que ele sofreu por parte de um pai reverendo e, claro, ler a trilogia do Robert A. Johnson. Bem, nesse caso, fica mais fácil. Do contrário, o mito de Tristão e Isolda não é a chave da psicologia do amor romântico, como propõe Johnson, mas, simplesmente, o mito que é e sempre foi, como mostrado no filme "Romance", de 2008, do diretor Guel Arraes, que você confere no trailer logo acima. Transcrevo: "'Tristão e Isolda' sempre foi um grande sucesso; o maior do século XII. O amor é triste. E a paixão há de ser como a noite: eterna. O amor feliz não tem história na literatura ocidental. A felicidade dos amantes só nos comove pela expectativa da infelicidade que os ronda. Sem sofrimento não há romance. O romance de Tristão e Isolda tornou-se modelo de todas as histórias de amor até hoje. Os amantes se amam, mas não conseguem superar os obstáculos e ser felizes. Esse é o segredo do sucesso de Tristão e Isolda, e foi isso que os poetas europeus da Idade Média descobriram: o amor recíproco e infeliz".

O que me faz lembrar de "Samba da Bênção", a maior ode à tristeza mascarada de alegria que Vinicius de Moraes poderia ter composto. A música vem a calhar por três motivos: fala de amor, que é um fim em si mesmo; explicita a necessidade da tristeza para não apenas se fazer um samba, mas para se viver um grande amor (e dá-lhe Tristão e Isolda.); e é um samba quando, a essa altura, falta menos de um mês para o famigerado Carnevale:


Além de ter ojeriza máxima a pseudo-terapeutas junguianos, a audácia desses caras me enfurece de verdade. O "doutor" Robert Johnson pretende corrigir as frustrações do dito "amor romântico ocidental" que, segundo ele, é uma canoa furada porque flutua na ausência de uma figura feminina, que seria a rainha Blanchefleur, mãe de Tristão, que morre ao dar luz ao bebê. Então tá. E por aí vão duzentas e setenta páginas de balela na tentativa estapafúrdia de pintar um sorriso de Coringa num mito que é pura e simplesmente triste. E, por isso, pura e simplesmente belo. Quando Blanchefleur traz seu filho ao mundo, suas palavras são essas: "Querido, tanto tempo ansiei por ver-te. Mulher alguma jamais poderia conceber criatura tão bela. A tristeza me seduziu, na tristeza dei-te à luz, na tristeza passas teu primeiro dia de festa. Teu nome, filho amado, será Tristão, filho da tristeza". Então a Rainha fecha os olhos e morre. Sou apenas eu que me arrepio com isso ou Tristão e Isolda, em sua tristeza latente, é indiscriminadamente lindo? Aliás, como já diria um amigo, não é linda a busca? Mesmo que fruto da tristeza, não é lindo buscar o amor? E não é essa exatamente a essência de Tristão e Isolda, e de "Romance" e de Vinicius e de mim e de você...? 

Tenho certa objeção estética a tudo o que é muito "alegrinho". Pronto, falei. Churrasco com pagode, barzinhos com rock, azaração na areia, piscina de clube apinhada de veranistas, blocos de carnaval, revéillon com convivas dando adeus ao ano-velho, raves com canhões de luzes, danceterias escuras ou não, festas de quinze anos e sabe-se lá mais qual tipo de evento em que as pessoas se agregam para fazer barulho e demonstrar "essa tal felicidade". A objeção é estética porque, para mim, essa tal felicidade, pasteurizada, é como o sorriso do Coringa, um riso pintado, de esgar e feio. Eu não tenho medo do silêncio, nem da solidão, muito menos da fugacidade do por do sol e de livros "barra pesada". Por isso vejo uma beleza estonteante e hipnótica neles. Há certa beleza na melancolia e na tristeza. Você só precisa ter coragem para estar consigo mesmo, mesmo que na companhia de alguém ou com um livro, para absorver a melancolia e a tristeza como a um bom vinho: separando a parte doce da parte mais amarga e conservando a essência frutal nas papilas gustativas. É uma questão de experiência, dizem os sommeliers. E de insistência, dizem os poetas e amantes.      

5 comentários:

  1. Esta estação daria uma história de amor, em romance, de um perigoso triângulo amoroso: Literatura, cinema e música.

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  2. Excelente comentário. Imagina: um triângulo entre o Kundera, o Oswaldo e o Guillermo? Vixe!

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  3. e como eu sei dessa sua objeção ao alegrinho!! isso vem de muito tempo!

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  4. Mi, pergunto-me até quando minha objeção ao "alegrinho" também não é um pouco de negação. Ah! Carnaval chegando aí... Que paúra!

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  5. Anônimo9.11.13

    Mi, pergunto-me?????? Me pergunto; que comentário é esse?

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