Tomei um pé na bunda. Simples, chulo, chato e fácil assim. Se eu fosse mais discreta, menos catártica, mais esperta e menos eu, não escreveria sobre isso. Por outro lado, se o fenômeno popular e carinhosamente chamado de "levar um pé na bunda" fosse algo, de fato, raro, não sentiria a obrigação moral e cívica de vomitar sobre isso. Por "vomitar" entenda-se algo como matar dois coelhos com uma única paulada: verbalizar a dor, esperando que esta cesse, e trazer à tona o idêntico percalço que, possivelmente, uma vez marcou o derrière de quem lê essas linhas. Porque, entre todos os mistérios e vãs filosofias existentes entre o céu e a terra, um enigma é certo: se você tem um umbigo, o que lhe certifica de que não é um alienígena, se já ousou se aventurar pelos fiordes perniciosos do coração e se não optou de vez pelos prazeres irresistíveis da vida de um asceta, então, cara-pálida, você também já levou um pé na bunda. Ou ainda vai levar. E o cosmo, em toda a sua sádica, maniqueísta e sacana dinâmica, mal pode esperar.
No entanto, para o bem ou para o mal, o pé na bunda é, sempre e inexoravelmente, uma via de mão dupla: um dia é da caça, o outro, do caçador. Para colocar todos os pingos, acentos e crases nas letras - a despeito da revisão ortográfica - você leva um pé na bunda hoje e, amanhã, será a sola do seu tênis, mocassim, scarpin ou havaiana a marcar o traseiro de alguém. Certas coisas a gente não complexifica; não dá para se fazer sofisma com tudo. Quando se trata de ruptura, separação, divórcio, término, chame-o como preferir, a situação é preto no branco. Aqui, dois menos dois é sempre zero. No fim da linha, a aritmética do ex-amor consiste apenas em subtração e divisão, nunca exponencial, fatorial e, muito menos, adição. Como já dizia um amigo, "não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos". Isso é lírico. A estrofe dessa pérola poética apenas não rima quando um dos dois é alérgico à albumina, a proteína do ovo. Aí, então, haja anti-histamínicos para os casos mais leves e, nos potencialmente letais, alguns miligramas de epinefrina. Jargões médicos à parte, não se interne em uma unidade de tratamento intensivo em resposta a uma desilusão amorosa: esta não foi a primeira vez e, certamente, não será a última.
O dono dos sapatos italianos que chutou o meu respeitável e brasileiro traseiro me ensinou que "para tudo acabar, basta que um diga que acabou". Versão personalíssima, ainda que um tanto ríspida, do velho "quando um não quer, dois não brigam". Ríspida e, ainda assim, ou exatamente por isso, tão real. Se estivesse eu do lado mais forte da corda, possivelmente falaria algo do gênero. Como disse, nos epílogos patéticos dos desvios de percurso que são os mal-fadados relacionamentos, o abandono mora no centro de uma gangorra. Para que cessem o tango, a magia, o romance e os "meu bem", basta que a disposição para investir penda para o lado contrário e... tum! Alguém cai de cara na poeira.
O ponto de exclamação anterior não foi em nada circunstancial. Para mim, ele sinaliza um susto. Já chutei alguns traseiros - poucos, confesso - com aviso prévio. Algo do tipo: "se liga, amoreco, vamos regar a plantinha para ela não secar de vez". O que me leva a pensar que eu costumava esquecer de molhar as espadas-de-são-jorge do canteiro do dono dos sapatos italianos... Mas isso é outra história e, leitor amigo, interprete as palavras "molhar" e "espadas-de-são-jorge" ao pé da letra, pelo que são, de fato, sem gracinhas: verbo e planta. No entanto, aviso prévio não é cláusula pétrea em relacionamentos amorosos e, muito menos, condição sine qua non para prevenir o incauto do pesar, do vazio, da aflição e da vertigem inigualável de sentir o tapete sumir sob os pés. A bem da verdade, por mais perto que se chegue da beira do precipício e se vislumbre, à distância, um provável final, a mágoa e a sensação aterrorizante de perda são o tipo de "alergia" que, por mais que se prepare para enfrentar, ninguém, caça ou caçador, está de fato pronto para ter.
Mas se supera. Tudo passa, sempre. Se até o que há de melhor na vida se esvai, por que o pior não haveria de evanescer... E, se não passar, há sempre a possibilidade de soterrar, esquecer, varrer para debaixo do tapete. Ao menos é assim que toda vítima recente de um pé na bunda precisa pensar para superar o tombo. Ouso dizer que é assim, e só por isso, que se consegue cobrir a vastidão desértica de setenta anos de expectativa média de uma vida média e banal: escondendo no fundo das gavetas o bom que não se conseguiu cultivar e o mal que, como sombra, se projetou até nos obliterar a essência. Alguém me disse que até mesmo um pé na bunda funciona para impulsionar o infeliz para frente. Como se toda experiência fosse implacavelmente aproveitável, favorável e valiosa. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Ah, o otimismo.
Talvez eu esteja apenas muito soturna e, bem no fundo, numa parte desconhecida de mim, ainda haja algum otimismo. O pensamento articulado e o orgulho ferido me fazem escrever frases espirituosas, que destilam um sarcasmo que não me pertence. Este pé na bunda abriu uma chaga em minha trajetória, um rombo em minha identidade, um vergão em minha capacidade de olhar para frente e saber qual direção seguir, um abismo em minha auto-estima. Uma amiga me disse que se sentir assim é comum a todos que são rejeitados, abandonados, chutados, colocados para escanteio: se foi alguém a desistir de mim, e não o contrário, então é porque não tenho qualquer valor intrínseco. Segundo ela, esta é a grande armadilha do pé na bunda; quem leva o coice tende a chafurdar na culpa e supervalorizar o dono da ferradura. Talvez. Por enquanto, tudo dói. A pele, a carne, os músculos, os ossos, a alma. Pergunto para meu pai, com os olhos rasos d'água: "Vai passar, não vai?". Amargo, ele responde: "Vai. Tudo passa. A juventude passa, a alegria passa, a dor passa. Até a esperança passa". Sinto um calafrio na espinha ao ouvi-lo dizer isso. Porque, ingênua, idealista ou estúpida, ainda acredito que certas coisas simplesmente não passam, a não ser que as soterremos nas profundezas do ceticismo. E minha sensação de abandono e vazio é ainda maior quando imagino que, para superar a dor, passarei também pela vitalidade, pela alegria e pela esperança.