29 de outubro de 2011

pé na bunda


Tomei um pé na bunda. Simples, chulo, chato e fácil assim. Se eu fosse mais discreta, menos catártica, mais esperta e menos eu, não escreveria sobre isso. Por outro lado, se o fenômeno popular e carinhosamente chamado de "levar um pé na bunda" fosse algo, de fato, raro, não sentiria a obrigação moral e cívica de vomitar sobre isso. Por "vomitar" entenda-se algo como matar dois coelhos com uma única paulada: verbalizar a dor, esperando que esta cesse, e trazer à tona o idêntico percalço que, possivelmente, uma vez marcou o derrière de quem lê essas linhas. Porque, entre todos os mistérios e vãs filosofias existentes entre o céu e a terra, um enigma é certo: se você tem um umbigo, o que lhe certifica de que não é um alienígena, se já ousou se aventurar pelos fiordes perniciosos do coração e se não optou de vez pelos prazeres irresistíveis da vida de um asceta, então, cara-pálida, você também já levou um pé na bunda. Ou ainda vai levar. E o cosmo, em toda a sua sádica, maniqueísta e sacana dinâmica, mal pode esperar.

No entanto, para o bem ou para o mal, o pé na bunda é, sempre e inexoravelmente, uma via de mão dupla: um dia é da caça, o outro, do caçador. Para colocar todos os pingos, acentos e crases nas letras - a despeito da revisão ortográfica - você leva um pé na bunda hoje e, amanhã, será a sola do seu tênis, mocassim, scarpin ou havaiana a marcar o traseiro de alguém. Certas coisas a gente não complexifica; não dá para se fazer sofisma com tudo. Quando se trata de ruptura, separação, divórcio, término, chame-o como preferir, a situação é preto no branco. Aqui, dois menos dois é sempre zero. No fim da linha, a aritmética do ex-amor consiste apenas em subtração e divisão, nunca exponencial, fatorial e, muito menos, adição. Como já dizia um amigo, "não se pode fazer uma omelete sem quebrar os ovos". Isso é lírico. A estrofe dessa pérola poética apenas não rima quando um dos dois é alérgico à albumina, a proteína do ovo. Aí, então, haja anti-histamínicos para os casos mais leves e, nos potencialmente letais, alguns miligramas de epinefrina. Jargões médicos à parte, não se interne em uma unidade de tratamento intensivo em resposta a uma desilusão amorosa: esta não foi a primeira vez e, certamente, não será a última. 

O dono dos sapatos italianos que chutou o meu respeitável e brasileiro traseiro me ensinou que "para tudo acabar, basta que um diga que acabou". Versão personalíssima, ainda que um tanto ríspida, do velho "quando um não quer, dois não brigam". Ríspida e, ainda assim, ou exatamente por isso, tão real. Se estivesse eu do lado mais forte da corda, possivelmente falaria algo do gênero. Como disse, nos epílogos patéticos dos desvios de percurso que são os mal-fadados relacionamentos, o abandono mora no centro de uma gangorra. Para que cessem o tango, a magia, o romance e os "meu bem", basta que a disposição para investir penda para o lado contrário e... tum! Alguém cai de cara na poeira.

O ponto de exclamação anterior não foi em nada circunstancial. Para mim, ele sinaliza um susto. Já chutei alguns traseiros - poucos, confesso - com aviso prévio. Algo do tipo: "se liga, amoreco, vamos regar a plantinha para ela não secar de vez". O que me leva a pensar que eu costumava esquecer de molhar as espadas-de-são-jorge do canteiro do dono dos sapatos italianos... Mas isso é outra história e, leitor amigo, interprete as palavras "molhar" e "espadas-de-são-jorge" ao pé da letra, pelo que são, de fato, sem gracinhas: verbo e planta. No entanto, aviso prévio não é cláusula pétrea em relacionamentos amorosos e, muito menos, condição sine qua non para prevenir o incauto do pesar, do vazio, da aflição e da vertigem inigualável de sentir o tapete sumir sob os pés. A bem da verdade, por mais perto que se chegue da beira do precipício e se vislumbre, à distância, um provável final, a mágoa e a sensação aterrorizante de perda são o tipo de "alergia" que, por mais que se prepare para enfrentar, ninguém, caça ou caçador, está de fato pronto para ter.

Mas se supera. Tudo passa, sempre. Se até o que há de melhor na vida se esvai, por que o pior não haveria de evanescer... E, se não passar, há sempre a possibilidade de soterrar, esquecer, varrer para debaixo do tapete. Ao menos é assim que toda vítima recente de um pé na bunda precisa pensar para superar o tombo. Ouso dizer que é assim, e só por isso, que se consegue cobrir a vastidão desértica de setenta anos de expectativa média de uma vida média e banal: escondendo no fundo das gavetas o bom que não se conseguiu cultivar e o mal que, como sombra, se projetou até nos obliterar a essência. Alguém me disse que até mesmo um pé na bunda funciona para impulsionar o infeliz para frente. Como se toda experiência fosse implacavelmente aproveitável, favorável e valiosa. Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Ah, o otimismo.

Talvez eu esteja apenas muito soturna e, bem no fundo, numa parte desconhecida de mim, ainda haja algum otimismo. O pensamento articulado e o orgulho ferido me fazem escrever frases espirituosas, que destilam um sarcasmo que não me pertence. Este pé na bunda abriu uma chaga em minha trajetória, um rombo em minha identidade, um vergão em minha capacidade de olhar para frente e saber qual direção seguir, um abismo em minha auto-estima. Uma amiga me disse que se sentir assim é comum a todos que são rejeitados, abandonados, chutados, colocados para escanteio: se foi alguém a desistir de mim, e não o contrário, então é porque não tenho qualquer valor intrínseco. Segundo ela, esta é a grande armadilha do pé na bunda; quem leva o coice tende a chafurdar na culpa e supervalorizar o dono da ferradura. Talvez. Por enquanto, tudo dói. A pele, a carne, os músculos, os ossos, a alma. Pergunto para meu pai, com os olhos rasos d'água: "Vai passar, não vai?". Amargo, ele responde: "Vai. Tudo passa. A juventude passa, a alegria passa, a dor passa. Até a esperança passa". Sinto um calafrio na espinha ao ouvi-lo dizer isso. Porque, ingênua, idealista ou estúpida, ainda acredito que certas coisas simplesmente não passam, a não ser que as soterremos nas profundezas do ceticismo. E minha sensação de abandono e vazio é ainda maior quando imagino que, para superar a dor, passarei também pela vitalidade, pela alegria e pela esperança.               

um cacho de siris

Para Rosa Maria Maneschy, a garota dos caranguejos


Meu primeiro aluno após quatro anos sem lecionar foi uma juíza com nome de flor: Rosa. A aula começava às sete e meia da manhã de uma segunda-feira ensolarada, embora um pouco fria. Naquele dia - para mim inesquecível por ser um momento em que retomava um cenário para preencher lacunas - cheguei à escola trinta minutos antes da hora marcada. Em meus padrões, uma time manager reconhecidamente fracassada, isso é muita coisa. Fiquei à espera de Rosa num sofá confortável, acompanhada por café amargo num copinho de plástico. Ela chegou às sete e quinze. "Atrasada" jamais seria um vocábulo comum ao vernáculo de Rosa. Não havíamos nos encontrado antes, de maneira que não estranhei quando lhe perguntei quem seria a sua professora e, com sua voz característica, suave, ainda que precisa, a juíza tenha me respondido: "Fernanda". Tudo era absolutamente insólito para mim naquela manhã: a nova escola, a cidade grande, os ônibus desconhecidos, o mar a duas quadras dali. Lembro-me de ter pensado que, se éramos apenas nós ali, às sete e meia da manhã de segunda-feira, sua professora deveria ser eu mesma. Quinze minutos depois, começávamos a aula. E, em algumas semanas, eu (re)descobriria com Rosa que a parte mais incrível de ensinar ainda é, definitivamente, aprender.

Rosa não é apenas a aluna mais aplicada que já tive; é, possivelmente, a mulher mais disciplinada, equilibrada, serena e divertida que já conheci. Ela é miúda, com olhos azuis grandes, que se tingem de um anil ofuscante quando o céu do Rio de Janeiro se abre sobre a cabeça do Cristo e sobre as nossas. Professores são meio como estátuas: alunos passam por nós, deixando vestígios, cicatrizes, impressões digitais. Haverá o dia em que Rosa e eu não seremos mais aluna e professora, vínculo que, inexoravelmente, tem prazo de validade. No entanto, resistirão ao tempo o aprendizado, sua risada cristalina e a expressividade de suas mãos. Rosa fala com aquelas mãos, pequenas e quadradas, adornadas com anéis que admiro. Ela gosta de lambretas que, cúmplices, chamamos de scooters. Quando Renato e Lucas, as crias de Rosa e Márcio, estiverem suficientemente independentes para seguir a vida solo - e não interpretarem uma motocicleta como sinal de rebeldia - ela vai comprar uma dessas motocas pequenas e charmosas, guardar algumas revistas Vogue na cestinha traseira e pilotar até à praia, alheia ao trânsito infernal de domingo e aos flanelinhas inconvenientes. Porque Rosa Maria é assim: brisa fresca e azulada, esgazeando-se sobre as tacanhas disputas cíveis da vida. 

E, por ser leve, lembranças não velam os olhos de Rosa. "Melancolia" é outro vocábulo que a juíza desconhece, motivo a mais para que, aqui, a professora aprenda com a aluna. Com leveza e alegria, Rosa conta-me histórias do tempo em que era menina, quando não imaginaria amar bater o martelo e quando o mundo, como ela, costumava ser pequeno, descomplicado. Minha aluna não é apenas justa; é uma excelente contadora de histórias. Sorrio agora, vendo na memória o seu riso largo e as mãos que contam casos. Pergunto-me se ela se dá conta do talento que possui para contar uma história, na língua que seja. Hoje, abuso da licença poética, quebro patentes à revelia e faço minhas as suas palavras, para escrever um conto de lembranças dessa moça paraense por origem, carioca na alma e londrina por "química", no coração.  

Em criança, Rosa costumava ir com os pais à casa de praia que possuem numa cidade do Litoral Costa Verde. No trajeto de ida, seu pai estabeleceu aquele que seria um ritual de infância feliz e, posteriormente, uma lembrança embrulhada em sons, aroma e paladar. Nas cidades litorâneas dessa região, havia vendedores de siris, que expunham a sua mercadoria nos acostamentos da estrada. Rosa tenta explicar em detalhes as diferenças entre caranguejos e siris. Ela é categórica: são criaturas completamente díspares. No zodíaco, caranguejos são o símbolo do meu signo; na história de Rosa, o personagem principal são os siris que seu pai comprava no caminho para a praia.

Siris não são como peixe, camarões ou coelhos; devem estar vivos e frescos no momento em que os compramos. Do contrário, a fervura poderia mascarar o gosto da carne em decomposição e a refeição não seria apenas indigesta, como também um motivo para péssimas memórias. Por isso, os vendedores costumavam atar os crustáceos, amarrando-os a uma vareta como bananas num cacho. Esta é a visão que a lembrança de Rosa deteve, congelada no tempo como um inseto em âmbar: um cacho de siris vivos. Neurocientistas afirmam que a visão, acima de todos os sentidos humanos, é a que impera. Ouso discordar. Nas brumas da memória, onde sobrevivem a infância e tudo que jamais deveria morrer, o som e o cheiro das imagens falam mais alto.

Seguem viagem o pai, compenetrado, dirigindo pelas montanhas sinuosas da Serra do Mar; a mãe, no banco do carona, vê pela janela a natureza exuberante e úmida da região; no porta-malas, os siris acompanham a família atados ao seu cacho, seguindo o mesmo trajeto. E Rosa, espichada no banco de trás, olhando o céu azul em ângulo, escuta-lhes as patas salpicando a lataria: uma sinfonia de reco-recos no samba abençoado da memória. Uma curva mais fechada, os siris rojam de um lado para o outro da mala e a música fica mais alta, num tic-tic de patas ansiosas e antecipação pela chegada.

Antes mesmo de retirar e desfazer as malas, ir ao supermercado mais próximo para abastecer a geladeira com compras e salgar o corpo nas águas verdes do Atlântico, é preciso dar atenção aos siris. Qualquer criatura viva tem um destino a cumprir, ainda que mal se dê conta disso. Por "criatura viva" entenda-se não apenas plena de suas funções vitais, mas prenhe de propósitos. O destino dos pais de Rosa, além de fazer dela uma mulher de valor intrínseco, capaz de voar com as próprias asas e preparar os seus próprios filhos, foi imprimir em sua memória momentos com os quais, hoje, regozija-se. O meu destino, além de tentar voar e ensinar a mesma arte a meu filho, é em parte contar esta história. O destino dos siris em cacho, em princípio órfãos à beira da estrada, era pertencer àquela família, moldar lembranças com cor, som e sabor e virar refeição. Se o desígnio de um crustáceo é integrar a cadeia alimentar, que não morra na praia, como muitos cetáceos, gadus e marinheiros; mas à mesa de uma família que, anos depois, terá nesse fado uma história.

Na panela com água fervente, sob a tampa de alumínio gotejada em vapor, chega ao fim o destino dos siris e começam a história e os casos de Rosa. Pai, mãe e filha sentam-se à mesa, aguardando o cozimento dos bichos, antecipando na saliva o gosto tenro e típico da carne. Enquanto põem à mesa, tecem comentários antigos, outros mais recentes, refrescam-se do calor sob ventiladores Arno, ouvem uma canção no rádio e preparam a farofa de tapioca que, em breve, vai se juntar à sobremesa: o creme gelado de açaí. Acima das risadas e da música, do zum-zum das hélices do ventilador e das brincadeiras da menina, ouvem-se as patas dos siris arranhando a panela. No início são frenéticas, em seguida mais sôfregas e entregues e, finalmente, serenas e satisfeitas por, após uma longa jornada do estuário para o acostamento da Rio-Santos e, daqui, para o porta-malas do carro de Doutor Renato, terem cumprido o seu destino de siris em cacho, siris com uma história para contar.

Perguntei à Rosa porque ela jamais havia considerado a possibilidade de escrever sobre um caso tão peculiar como este. Ela me ofertou um sorriso radiante e sinalizou a mais lógica e sensata das respostas: "Porque todo aquele ritual era muito natural para mim, oras!". Faz sentido. O natural só é extraordinário a olhos e ouvidos virgens, velados pela distância inquebrantável do tempo, que adquire ares de magia e imortalidade. Assim são as veredas e as narrativas por elas assolapadas: senhores ou sujeitos de nossos destinos, usamos a pena da lembrança para escrever casos e, com eles, registrar a história, mesmo que alguém a ouça, faça as vezes de narrador e imortalize, em palavras e som, o que, por natural, é belo demais para ser deixado para trás.

23 de outubro de 2011

matutando

Para os que amo. Os que importam.


Reza a lenda que caipira de verdade pode rodar o mundo, degustar os mais refinados vinhos, deleitar-se com os mais elaborados manjares, caminhar entre cosmopolitas e urbanoides e, ainda assim, jamais perder a sua essência de jeca. Gosto de caipiras. Um bocado. Em terras caipiras passei dias memoráveis, destes que revisito vez em quando, com uma pitada de saudade e a lembrança do cheiro de mato e da terra orvalhada do mês de julho. Não há orgulho nem embaraço em mim quando digo que sou caipira. Algumas coisas são como são simplesmente porque assim o são, sem que, para isso, deva haver elementos positivos ou negativos. Em certas ocasiões pergunto-me se, em tempos e lugares que habito, não seria sensato mascarar a minha essência Mazzaropi, ainda que esta seja um tanto conspurcada pela descendência de imigrantes alemães - afinal, o Amacio era italiano, o mais siciliano dos caipiras tupiniquins.

O jeca é, por excelência, o reverso do que se valoriza em tempos de, por um lado, ausência de fronteiras e limites físicos e, por outro, da abundância corrosiva de velocidade, informação e atividade. Mazzaropianos somos os introspectivos, à caça da lua cheia, de estrelas e vaga-lumes. Caipiras somos os que preferem se sentar à beira do riacho cuja música é familiar a voar léguas em busca dos desconhecidos sons do estrangeiro. Jeca de verdade acha um barato fincar os pés descalços na grama, dobrar as barras das calças e acocorar-se à sombra de uma mangueira. Não é por coincidência que o verbo "matutar", jeito caipira de se referir à introspecção elucubrativa, derive de outro vocábulo para designar o "jeca". O caipira até compreende que o mundo pode caber na palma de sua mão, em "iPortáteis" e afins, mas, para ele, o universo jamais deixará de ser um "mundão"; a praia será sempre um "marzão" e sociais com mais de meia dúzia de convivas são, inconteste, um comício. O jeca esconde os dentes quando sorri - tradição milenar, de gente que, bicho-do-mato, se envergonha e acabrunha com facilidade porque prefere o horizonte cercado e entrecortado por colinas à vastidão assustadora das planícies. Mas, punho cerrado sob o bigode a velar o riso, a gargalhada não foge aos olhos do caipira; está lá, boiando num lago pequeno, ainda que profundo, de uma raça cuja sina e senda é a terra, as raízes e o sereno.

É pelas raízes que o fincam ao tempo, à história e às emoções que o caipira, mais do que o homo urbanus, teme a perda, a rejeição e a vastidão. O matuto cheira a chuva antes que ela chegue, vê circundando a lua um aro amarelado que prevê a seca, ouve cigarras cantando e sabe que o tempo vai virar, mordisca o capim para saber se a terra está aguada ou enxuta. Sem céu, lua, insetos ou mato, a sabedoria crua e despida de certificados do capiau se perde, sua essência se esgarça até volatilizar e ele, o chapéu, o riso escondido e as decisões orientadas pelos sentidos passam a inexistir. Por isso o matuto é arraigado e receia embarcar e deixar a areia da orla para trás. E, quando ousa fazê-lo, retorna à poeira do chão batido, refresca a lembrança com memórias de naftalina e, inadvertidamente, se esconde. Todo caipira é metade tatu, metade avestruz; embuça-se para proteger a identidade, os sentidos e o riso.

Nessa tarde de domingo enervante, meio sol-meio nuvem, revisitei as origens caipiras. Aterrada em prédios, concreto, buzinas, freadas e maresia, a música cantada por lábios mudos de um iPortátio é a maneira mais conveniente, rápida, eficaz e doída para fazê-lo. Esse tipo de busca é, como o ritual de picar fumo de rolo, um mecanismo intrínseco, meio masoquista e muito doido do capiau. Algo parecido com os happy-hours regados a whisky, olhares de esguelha e piadas galhofas de escritório do homo urbanus. Mudam-se os cenários e as personagens, mas, no frigir dos ovos, as neuroses tão somente se transferem, adaptando-se a rótulos e conceitos, celas às quais sempre falhamos em escapar. Minha neurose "caipiro-dominical" foi cavar em terras imaginárias um buraco no qual pudesse me esconder, usando à guisa de enxada uma canção caipira: "Tocando em Frente". Quando Almir Sater e Renato Teixeira a compuseram, em meados da década de 1970, não imaginariam que uma música sertaneja seria regravada por todos os seus sucessores, sem mencionar demais nomes da música popular brasileira que nada têm a ver com o universo caipira. Mais do que isso: como compreender que uma letra de música jeca seria utilizada em escolas e universidades para análise de discuso? Coisa de gente da cidade grande, talvez, que vê poesia onde há e não há poesia.

Tocando em Frente
(Almir Sater / Renato Teixeira)

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Hoje me sinto mais forte,
Mais feliz, quem sabe
Só levo a certeza
De que muito pouco sei,
Ou nada sei

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida
Seja simplesmente
Compreender a marcha
E ir tocando em frente

Como um velho boiadeiro
Levando a boiada
Eu vou tocando os dias
Pela longa estrada, eu vou
Estrada eu sou


Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia,
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
E no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz
E ser feliz

Conhecer as manhas
E as manhãs
O sabor das massas
E das maçãs

É preciso amor
Pra poder pulsar
É preciso paz pra poder sorrir
É preciso a chuva para florir

Ando devagar
Porque já tive pressa
E levo esse sorriso
Porque já chorei demais

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si
Carrega o dom de ser capaz

E ser feliz

Se o urbanômetro do leitor for complacente, ele há de se permitir ouvir a melodia. Em tempos de You Tube, objeção estética seria a única razão para fazer o contrário. Foge-me à conta o número de vezes que já ouvi esta canção. Como disse antes, inexplicáveis e incompreensíveis são os mecanismos neuróticos, caipiras ou não. Desta vez, entretanto, a quinta e sexta estrofes me engasgaram. Pela primeira vez. Atingido pela epifania suprema, o Renato disse, em suas palavras, que viver não pode ser muito mais do que "simplesmente compreender a marcha e seguir em frente". Retardatários, embasbacados, atolados e empacados que o digam. Sou estrada? Certamente, embora outra canção, contraditoriamente, afirme que a vida seja um rio e, nós, canoa. Poesia e suas múltiplas interpretações, cara-pálida. Somos estrada porque, meio e fim em si mesmos, conduzimos a vida, nossos corpos e mentes. Compreensível. Mas, boiadeiros? Não tenho tanta certeza. Quem me garante que nós, e não a vida, as escolhas e suas conseqüências, é que não somos o gado?

Pode ser que tudo isso não passe do reflexo lusco-fusco de domingo. Ou, talvez, de um produto torto de matuto, que fica a matutar, embalado por canções de gosto duvidoso. Na roça, quando o sujeito olha para o horizonte e é visivelmente engolido pela retroalimentação das vãs filosofias, o caipira amigo logo pergunta: "Pensando na morte da bezerra? Deixa disso, rapaz!" Até o jeca mais encruado, que desconhece a existência e, portanto, a influência de Steve Jobs, entre outros gênios da modernidade e do passado, sabe que matutar demais acaba fedendo. Tal constatação não me escapa, caipira que sou. E ainda assim, em meio a todo escopo e prevenção matuta, por vezes penso-me e sinto-me gado, guiado por não sei qual boiadeiro. Em outras ocasiões, sou gado extraviado, sem dono, livre do abate, mas, por outro lado, sem pasto de qualidade. O que me leva a pensar no triste destino de nós, gado: aos melhores e mais vastos pastos, o abate certo, precoce, inevitável. Minha vaca parece ter ido para o brejo; minha bezerra, foi-se com a última enchente. E a minha égua, amarrada e selada, aguarda com olhos mansos e cansados, abanando com a cauda moscas ocasionais, o seu destino.