27 de dezembro de 2016

e o gigante chorou

para Fausto Marques Pinheiro Júnior


Tem gigante que realmente engana a gente. Que é gigante por fora, com pinta de bravo, bad boy tatuado e que, por dentro, é pura rebeldia auto-contida, candura cultivada e dor. E isso não acontece só em filme da Disney em 3D. Existe na vida real também, onde o galalão é o seu melhor amigo, ou colega na faculdade; existe bem ali do lado, em Copacabana, o bairro carioca mais cosmopolita da zona sul dessa nossa vila de São Sebastião, onde toda história é possível, até mesmo um conto de fadas às avessas.

Conheci o gigante desta história em sala de aula há cinco anos. Embora já fosse homem feito, todo músculos, barba, ideias e conceitos marxistas solidamente lavrados em seu construto intelectual e muito whey protein, o então futuro advogado, dono de um senso crítico e humor irônico apurados, ainda trazia no olhar aquele brilho único, uma inocência quiçá pueril de quem nunca perdera para o outro, para si mesmo, para o tempo ou para a vida. Sim, ele possuía a noção de sofrimento - pois esta é a sua essência, a abstração - e flertava com ele, mas seus sonhos e o coração idealista ainda não haviam sido esfrangalhados pela decepção, pelo menos não em nível tão profundo ao ponto de marcar-lhe o peito cuidadosamente esculpido.

O gigante, que até hoje me chama respeitosa e academicamente de "professora" (nunca o indefectível e tão previsível "teacher") e incendeia debates políticos e filosóficos no Facebook, cresceu. E, hoje, chora. Nessa madrugada insone, em meio à torrente de posts pós-natalinos com fotos de famílias e arroz com passas, um texto tão colossal como o meu gigante me chamou atenção. Na verdade, não foi o número de linhas que me assombrou, porque textos longos são habituais nas terras fantásticas do personagem dessa história, mas a forma como ele começa:

"Amar é um verbo. Admito que esse é um começo cliché, no entanto gostaria de começar com esse lugar-comum tão repetido. Amar não é um verbo qualquer, pois envolve uma ação contínua e habitual. Relaciona-se intimamente como o verbo crer, não só na sua forma como também no seu conteúdo. Quem ama também crê. E quem crê não apenas pensa, mas faz. Age em cima de sua crença."

Bastaram-me aquelas poucas linhas para que o resto de sono que eu mal pude acumular me abandonasse por completo. O meu gigante, senhor da abstração e da retórica, mestre do sofisma e do debate acadêmico, do universo multiversitário, escrevendo sobre... amor? De onde vinham aquela vulnerabilidade que jamais notei, aquele lirismo? Li e reli as palavras do meu ex-aluno. Chorei com ele na madrugada abafada que ansiava pela carícia da chuva, que nunca chegou.

Tive três reações ao texto: ele fala de amor e crença, um tema recorrente em minha própria escrita. O gigante os coloca como os lados de uma mesma moeda, assim como eu, e a medida que lia suas palavras, não pude evitar a sensação de que poderia ter sido eu mesma a tê-lo escrito ou ainda a escrevê-lo um dia. A dor de amor e o dissabor não têm idade, experiência de vida nem maturidade a respeitar. É feito a morte; carcome a todos por igual, sem distinção ou preferências.

A segunda e terceira reações vieram em cadeia porque são codependentes. Aquele texto poderia ter sido escrito por uma mulher. Se não tivesse autoria, aposto um dedo da mão direita que dez entre dez pessoas pensariam como eu. O gigante vai rugir quando ler essas linhas; ele abomina sexismo. Mas, do interior da sua alma muito andrógina (ou feminina?), ele jamais perceberia a sutileza que faz a balança da sua história pender para um lado tão peculiar, tão absolutamente único.

O fato é que publicar algo como ele publicou, numa época em que se espera de seres-humanos em geral, e homens em particular, uma atitude de desprendimento e descompromisso sem precedentes, é de uma coragem brutal. Se uma mulher o fizesse, porque temos a prerrogativa da "sensibilidade à flor da pele", dos "hormônios à revelia", da "alma desnuda" ou seja lá qual desculpa para exercitar a catarse nossa de cada dia, amém, já seria um feito e tanto, pelo conteúdo emocional do texto. Tendo sido escrito, assinado e publicado por um homem, um acadêmico, um gigante, cuja aparência e intelecto inspiram tal fortaleza e invulnerabilidade, é o maior ato de amor e bravura que já vi em um homem tão jovem. Segue o seu texto na íntegra:

"Ao longo da história humana, tanto o amor e crença, quanto a crença e ação foram alvo de intenso escrutínio intelectual. Pascal é notório por colocar a ação como base da crença, formulação na qual acreditamos somente depois de termos nos habituado a agir como se acreditássemos. Amar e crer são ações que parecem grandiosas, demonstráveis em grandes atos, quando talvez são mesmo é as mínimas coisas que fazemos no dia-a-dia. E destas mínimas coisas, destas pequenas ações, é que surge a crença e então o amor. E de fato faz sentido. Não parece que muitos estariam dispostos a considerar que alguém que vai à missa e reza somente aos domingos é mais fiel à religião do que aquele que reza ainda que em casa todos os dias. A profissão de fé está nos atos mais íntimos e mínimos, e são eles que podem levar ao grande ato. Não o contrário. Aquele que só vai à missa nos domingos (quando vai) é chamado de "não-praticante", de modo a deixar transparente a falta de investimento com a sua crença. Falta essa que muitas vezes marca uma crise de fé, uma dúvida ou o começo do abandono. Nunca usei o verbo amar de modo leviano. Espero que você também não e, acima disso, creio que não. Porque nos atos destes do dia-a-dia sempre agimos de forma a cultivar essa crença e esse amor, ao menos quando estávamos juntos. Não é fácil ser interrompido da sua fé, jogado para fora da sua prática, ainda mais quando ao menos não parece existir qualquer crise de fé. Ainda assim talvez seja necessária essa ruptura, porque embora tenhamos rezado juntos, parece que cada um rezava diferente. Praticava diferente a sua reza. Não há culpados ou inocentes. Só duas pessoas que embora tenham acreditado uma na outra, no final tinham uma concepção muito diferente do que queriam praticar. Nós nos machucamos às vezes, mas nos apoiamos muito mais. De modo que, independente do futuro, nunca vou deixar de ter carinho com cada memória e momento do que conseguimos em (quase, porque hoje faríamos 11 meses de namoro) 1 ano construir juntos como história comum de nossas vidas. Eu lembro de quando nos beijamos pela primeira vez no Ano Novo e você disse que parecia que estávamos sonhando e voando por causa das luzes, da música, do sofá. Hoje eu senti a queda. Dói. Imensamente. Entretanto não é uma dor que eu gostaria de não ter, porque se dói é porque hoje tive que perder um pedaço de mim. E minha vida valeu muito mais apesar do pedaço que perdi... porque há em mim hoje tanto de você que nunca ninguém há de tirar."

Não tenho essa leveza do gigante em fazer uma limonada no azedume do final, nem essa "giganteza" de alma que ausenta os amantes de culpabilidade. A pequenez e a soturnidade das coisas acabam me velando o espírito. Apoio o rosto sobre as mãos para organizar os pensamentos e escrevê-los aqui e me perco relendo o final do depoimento. Odeio o final das coisas, os términos, a morte, o entardecer, as partidas. O desfecho da história do meu gigante me trouxe grande tristeza; por mim, não teria acabado. No entanto, assim que termino de escrever essa frase, percebo que ela é um grande erro; ele mesmo reconhece que o momento chegara.

"Hoje eu senti a queda. Dói. Imensamente. Entretanto não é uma dor que eu gostaria de não ter, porque se dói é porque hoje tive que perder um pedaço de mim". Eu, por outro lado, apagaria as memórias de cada desamor, cada desvio de percurso, revés, e desgosto que viesse marcar minha vida e chagar minha alma calejada. Se me fosse dada a opção, eu não viveria o amor para evitar a dor e o gosto amargo que ele deixa na partida. Mas essa sou eu; não tenho uma única tatuagem no corpo. Isso diz muito sobre uma pessoa; cicatrizes de guerra e marcas de amores antigos não me cabem.

Sou uma romântica incurável, uma sonhadora perdida em anacronismos, uma escritora-arquiteta de castelos de bolha de sabão. Fecho os olhos e imagino meu ex-aluno de terno e gravata, o paletó mal contendo seus músculos hipertrofiados, os olhos escuros, franzidos pelo sorriso largo. No meu devaneio, ele ainda usa os mesmos óculos que usava em sala de aula e tem o mesmo sorriso gentil, de menino grande. Nunca conheci a moça que não soube rezar como ele, mas ela está lá, e ela são todas, infindas mulheres, a única mulher, de branco, ao seu lado, e segura flores amarelas. E lhe sorri um riso de sol e fé. 

24 de dezembro de 2016

partidas e presentes


Todos já se foram. Os adeuses mais incômodos, agulhadas à meia-noite, vêm em prestações. Primeiro, os colegas de trabalho, com as férias. Depois, o último serviço do ano. No que a mulher se percebe de súbito livre no meio da tarde, o céu rebentando de azul, a praia e as ruas cheias de gente igualmente disponível e liberta e ela, acorrentada à gana pelo tempo tomado de trabalho que agora ficou para trás, escondido pelos ponteiros do relógio.

A noite lhe traz a despedida do amante, esta mais longa, a partida suspensa até o raiar da manhã, por isso um adeus mais aflitivo. Em seguida, vai-se a empregada, que já é um membro da família e lhe abraça as confidências enquanto passa o bife e adoça o suco da criança. Por fim, parte o próprio filho, levado pela avó, com os últimos raios de sol, a hora mais temível do dia, o cair das cortinas do dia, em que mesmo com o ocaso da luz, todo homem e mulher vislumbram melhor a finitude de si mesmos.

O sobejo da noite se arrasta feito cobra pegajosa, dilatada num mundo onde a gravidade a esmaga no chão. O calor e a umidade acumulados durante o dia não ajudam, e cada bafejar mais profundo fazem-na sentir flutuando em visgo numa bolha de plástico espesso que abafa os sons e distorce as linhas e cores. Há algo errado com o mundo. O seu mundo. Está vazio. Mas ela está ali. Então o seu mundo não pode estar vazio, por definição.

Ela caça com os olhos ao redor e encontra os do filhote peludo esparramado no chão, focinho repousado sobre as patas da frente, a epítome do companheirismo e da preguiça. O cachorro parece lhe sorrir, orelhinhas pontudas feito as de um lobo branco e preto. Ela estala a língua e o filhote abana o rabo em resposta, pula sobre as patas traseiras e vem lamber-lhe os dedos do pé, mordiscando de leve. Ela reclama em voz alta. O cachorro a encara, late de volta. Um diálogo se estabelece.

O seu mundo não está vazio. Há presentes sobre a mesa da sala. Quando pessoas se vão, as festas se duplicam, são comemoradas antes da hora com quem fica, às vezes depois com quem retorna. A caixa vermelha da mãe a encontrará no dia certo. As duas pequenas e coloridas, muito depois que as festas tiverem cessado e o menino tiver retornado à casa. A mulher suspira e repensa o valor real dos presentes se os seus donos estão de fato ausentes. Então ela vê o casal de presentes desencontrados: o dela, os dele.

Uma caixa preta desembrulhada; uma bolsa de papel fechada por uma fita de cetim verde e um cartão vermelho, ainda não preenchido. Um casal de presentes separados por dias, distância, histórias, circunstâncias, tempo. O dela havia chegado antes, de surpresa, como ele mesmo chegara, ocupando presença indelével, no assombro, como deve ser o espavento da certeza. O dele, como tudo em sua vida, seria em seu tempo, a sua maneira, nunca à revelia. Se um presente deve seguir desígnios tão justos, ela se pergunta o que será necessário, que provas deverá vencer para entrar de fato em seus domínios e vencer sua resistência.

A mulher se levanta e caminha em direção à mesa. O filhote a segue, se enrosca na barra de seu vestido e o puxa com os dentinhos afiados; quer brincar. Ela afaga a cabeça do animal e sorri, distraída. Toca a caixa do presente que ganhou ainda essa manhã; fecha os olhos e percorre as linhas do conteúdo com as pontas dos dedos. Cada traço do rosto do amante aflora em sua memória; o calor dos olhos, a seriedade, os meios-sorrisos; as mãos expressivas. Se ela se concentrar um pouco mais, pode ouvir-lhe a voz, sua risada cristalina. E pelo querer, ela faz da ausência um presente instantâneo.

Ela se lembra que ainda não escrevera o cartão. "E então, cachorrinho? Quem ainda escreve cartões de Natal?", pergunta em voz alta, vendo o filhote brincar com um pequeno besouro que veio se fazer prisioneiro pela janela da sala. "Eu" ainda escrevo cartões de Natal. E contos de Natal. O cartão é diminuto para tanta prosa, como o são todos os cartões ou moldes, e são necessárias letras minúsculas para conter tanto sentimento, que vaza pelas bordas feito o bolo que cresce mais do que a fôrma.

Ela escreve demais para ele e tão pouco por si mesma. Relê sua caligrafia miúda e acha graça de si mesma, de como aquelas palavras, um presente para ela, talvez não o serão para ele. Porque às vezes um presente também é ausência. Ou, talvez, se faça presente quando menos se espera ou mais se carece. Ela suspira; ultimamente, tem sido toda suspiros. A vida é uma espera. Por quem parte e volta, para que haja o retorno, pelo amor que precisa estar presente, por menos partidas.

para Raul Neto

20 de dezembro de 2016

verbo: mulher


"Mulher" deveria ser verbo, não substantivo feminino, e muito menos comum. Porque a medida que o tempo vai depositando em cada fêmea diferentes camadas de identidades com as quais precisamos aprender a conviver, descobrimos que o conceito de "mulher" extrapola preceitos consolidados, como o do ser que gera e embala; o forno. É bacana ser forno. Famílias se reúnem na cozinha ao redor do fogão à espera de fornadas de bolos e pães. E onde há reunião, há partilha, unicidade, diálogo.

Lutamos pela igualdade sócio-econômica, conquistamos um espaço considerável e ainda há uma fome voraz no âmago feminino. Ainda assim, certas coisas não mudam; seremos eternamente o porto, a âncora, a chama e o calor central ao redor do qual a família há de se orientar. Feito os verbos numa frase, que são o núcleo da sentença, a essência mesma do que deve ser compreendido e o cerne da questão: o verbo se fez mulher.

No entanto, vestir o verbo, de fato ser o verbo é árduo, conflituoso e por vezes assustador. As redes sociais vêm se banqueteando com as agruras femininas já há algum tempo, tanto a ponto de cada dissabor ter se transformado em clichê midiático: a menarca, cada vez mais prematura, e as prováveis causas científicas, sociais e quiçá políticas para isso; a menopausa e seus dilemas; a objetificação do corpo; tratamentos cosméticos invasivos e abusivos (e porque nos submetemos a eles); cirurgias plásticas desnecessárias e seus resultados grotescos (e porque nos submetemos a eles); imposição de padrões de beleza inatingíveis (e porque... já sabe); dietas tresloucadas e rotinas de exercícios físicos idem;  transtornos alimentares e dismórfico corporal (leia-se preocupação obsessiva com algum "defeito" corporal); desigualdade salarial e de oportunidades no mercado de trabalho; jornadas triplas de trabalho; violência doméstica; assédio sexual e moral.

E daí que às vezes se forma um tornado bem no miolo dessa coisa toda, uma força centrípeta à qual nada escapa. Não que eu não saiba ser mulher, e nem é o caso de sexualidade ou afeto fora do lugar. Por um rolar de dados afortunado, nasci numa família de classe média que me pôde proporcionar educação formal completa e independência financeira, o que já me redime de alguns dos mais atrozes delitos dos quais uma mulher pode ser vítima, a priori (e olhe que há tantas ressalvas nesta questão).

Assim, restam-me os demais, que não sangram a carne, necessariamente, mas abatem e solapam a auto-estima e as forças para assumir a própria identidade feminina em semelhante proporção. Mas não são o assédio, a desigualdade, cirurgias e padrões de beleza inatingíveis que fomentam esse tornado monstruoso que distorce e devora feito um buraco negro. Minhas feras - tenho duas, desmedidas, disconformes bestas - não vêm do mundo e, talvez por isso, sejam ainda mais perniciosas; elas vêm de mim, da voz mais alta em que o verbo grita "mulher".

Nenhuma mulher nasce mãe. Esse tal "instinto materno" não é instintivo, mas adquirido, e a mãe se forja na marra e na dor, se elabora em pequenas e maiores recompensas, institui-se mãe no grito e na raça, aprende a ser mãe com a cria, assim como o filho aprende a ser cria com a mãe, tudo na base da tentativa, erro e muito "vai na fé que dá certo". Da mesma forma, o amor materno cresce, se modifica e ganha novos matizes com o tempo. Filhos crescem, passam a ouvir música de gosto duvidoso, vão embora e o que fica é essa capacidade inerente da mulher de se doar, de ceder, de conceder.

Somos, por natureza, essência e excelência, criaturas obsequiosas, e não há feminista engajada que possa se opor a este fato: a mulher empresta o seu corpo a outro ser-humano por nove meses para lhe doar a vida, não apenas uma, mas quantas vezes forem desejadas. Por quase um ano, uma revolução hormonal toma conta de seu cérebro e sangue, seus órgãos internos literalmente se movem na cavidade abdominal, a coluna vertebral sofre pressão equivalente a de um homem trabalhando como estivador por quatro meses, seus intestinos funcionam irregularmente, insônia e retenção hídrica são queixas comuns e, faça-se a luz!, a depressão pós-parto vem fazer visita sem previsão para ir embora. Homem algum jamais amaria com o abandono e a abnegação de uma mulher. Seria humanamente impossível.

E este abandono é a primeira das temíveis feras que alimentam a impaciência e a frustração que`por vezes sinto em ser mulher. Porque quem se entrega é, por definição, vulnerável e está exposto, assim como a mulher grávida corre riscos terríveis pela vida tão preciosa e indefesa que gera em si. A mulher que se doa a algo ou a alguém o faz por duas razões: ela crê e ama. Em outras palavras: está prenha de fé e amor, sua alma fecunda da crença cega de que dessa vez vai dar certo, de que começar de novo vai valer à pena, de que cada história é uma nova história. Assim como cada gestação é uma nova gestação.

Da mesma forma, o amor e a esperança são gerados no invólucro frágil que são a imaginação e o querer femininos, esses universos tão alienígenas ao homem.  Amamos o amor, a ideia do amor e as infindas possibilidades que ele encerra antes mesmo de nascer, pelo menos antes de termos certeza de que tenha ao menos germinado no outro, feito a mãe que tece em seus sonhos as feições do filho que cresce em seu ventre. Enquanto isso, em meio ao caleidoscópio onírico extasiante que é o amor feminino em gestação, o homem continua sua rotina de vida, sem alterar planos, nem rotas, presente ou futuro; definitivamente, não simbolizamos o possível impacto de um asteroide indo em direção a ele. E é isso que me frustra, me causa inveja. Porque eu queria amar assim, masculinamente. Um amor não necessariamente melhor, mas decididamente mais livre e menos indefeso; sem estar prenha de esperança ou fé, sem gerar nem nutrir um amor por dois, sem alimentar o querer e esperá-lo crescer feito Lua cheia, para dar à luz sonhos que jamais serão realidade.

Em inglês, o verbo utilizado para a expressão "esperar um bebê" é o mesmo usado para "criar expectativas": expect. Acho isso poético, pungente, de arrepiar. Porque gerar expectativas, assim como parir vidas, é essencialmente feminino e dual, e ambos encerram em si mesmos um nascimento e uma morte para a mulher, o júbilo e o luto de mãos dadas, na medida em que simbolizam algo independente dela, que se inicia e floresce para a vida - a cria que parte - e algo dependente dela,  que morre se não for alimentado pelo outro - as expectativas.

Expectativas são a minha segunda, temerosa besta, e a mais peçonhenta delas. Dia desses, vi esse post rodando na minha linha do tempo no Facebook:


A ideia é tentadora: se expectativas expõem quem as gera e nutre, abrindo portas para a decepção, cactos são o extremo oposto. Resilientes, sobrevivem em condições extremamente áridas e à total ausência de esperança e amor, com pouquíssima água e solo praticamente infértil, e ainda são dotados de armadura própria: uma bela couraça coberta de espinhos. Passivo-agressivos, os mais rebeldes ousariam acusar. Alguns até agraciam olhos alheios com flores - brinde para os mais observadores? - e matam a sede dos incautos, já que conservam água dentro de si - lágrimas jamais derramadas, criaturas fortes que são.

Eu não sou o tipo maternal. Nunca criei cactos, nem tampouco os teria. Por outro lado, sou um balão de expectativas e esperança, e tenho gestações múltiplas de amor - mas jamais múltiplas gestações. Em cada uma, amo exponencialmente, concebo a paixão geminada, gesto a ternura por anos. Meus partos são sofridos, longos e solitários, pois assim normalmente é o amor idealizado e ofertado demais e vivenciado ou recebido de menos. Penso em amar diferente; amar como um homem, com esse exclusivismo saudável masculino. Ou ao menos amar sem tanta benesse e obséquio, de maneira a proteger mais o meu próprio espaço e identidade, para não perder terreno para o amor. Mas, a cada nova gestação, meus planos racionais são abortados. E prenha, zonza e delirante de amor e esperança, sou engolida pelo tornado que ri e ruge em meu peito: se entrega, mulher.   

9 de dezembro de 2016

então é natal

Então é Natal e o que você fez? As Lojas Americanas já estão tocando a mitológica balada da Simone, emprestada da igualmente indefectível canção dos Beatles - e não menos passível de fazer aos neurotransmissores cerebrais o que a bomba atômica causou em Hiroshima. Portarias de prédios residenciais e comerciais, estes em grau mais conservador, para a infelicidade máxima dos zeladores, já competem entre si no quesito árvore, bolas, guirlanda, papais-noéis cariocas e pisca-piscas. Mais um suspiro e a sua geladeira se enche de passas, nozes, fios-de-ovos e chester, o Natal já terá passado e o Roberto Carlos vai estar cantando em sua sala de estar com a Ivete Sangalo e o Didi. Ah, verdade. Renato Aragão. E, pensando bem, a Xuxa saiu da Globo já há algum tempo. Mas ainda tem o "Criança Esperança", cara-pálida. Firme e forte. Se correr, o bicho pega, se ficar, só mesmo Sidra Cereser para contar história.   


Demarcar o final do ano só não é mais prescindível do que comemorar o princípio de um novo ano. No entanto, nada poderia ser mais poético e humano. Muito embora cada um de nós compreenda intelectualmente que adormece na noite de 31 de dezembro e acorda na manhã do dia primeiro sem que isso faça qualquer diferença no universo ou para si mesmo, independentemente de ter se avançado um dígito ou dois no calendário, há um alívio imenso e uma satisfação incomensurável na ideia ritualística de final e reinício.

Seres humanos não são lineares, planos ou contínuos. Nascemos e morremos - e ainda flertamos com teorias sobre vida após a morte; casamos, descasamos e casamos novamente, quantas vezes forem necessárias; encontramos emprego e nos aposentamos; temos filhos que, por sua vez, tem seus próprios filhos. Se qualquer coisa, somos seres cíclicos, marcados por altos e baixos, términos e recomeços. Não é para menos que essa época do ano gere tanta ansiedade e desalento. Inusitado seria se os convivas apenas pulassem ondas e estourassem champanhe sem um pingo de banzo sequer; pouco mais de uma semana é o tempo necessário para se recuperar do crepúsculo de um ano, melancolia por essência, e receber o ano que nasce de peito aberto, com todo o vigor e a vivacidade que um trio-elétrico exigiria. Haja serotonina.  

Certas coisas não mudam nunca. Feito os especiais de Natal e Réveillon e as retrospectivas de televisão e revista. Ou os balanços de final de ano, as listas de resoluções para o próximo ano e, como não, os exames de consciência. Porque já que é para encerrar um ciclo e fazê-lo em nível mundial, com direito à contagem regressiva direto da Times Square, então vamos fechar com chave de ouro, vamos lacrar geral. "Simbora" passar a consciência a limpo, cambada. Auto-avaliação é a palavra da hora. Então é Natal e o que você fez? Ou, melhor, o que não fez?

O que bagunça mais a cachola e comprime o peito mais apertado, feito engolir um sonrisal a seco? O arrependimento pelo que aconteceu de fato, fantasma escandaloso que chega na calada da noite, acende todas as luzes da casa, se joga a seu lado na cama, rouba as cobertas, baba em seu travesseiro e reconta os seus feitos hediondos e odiosos a plenos pulmões e às gargalhadas? Ou o remorso pelo que jamais chegou a ser realizado, assombração sorrateira que visita ao meio-dia, quando o mundo é pura atividade e efervescência, e cobre a vida com um véu de chumbo pastoso, enevoando conceitos, engessando a coragem e sussurrando em gelo que mais uma pérola de frustração e fracasso foi moldada em seu ostracismo?

Então é Natal e não fiz planos, pelo que o fantasminha nada camarada do arrependimento já nem acha graça em vir me atordoar a consciência. Agora, ele só me encara com abjeto e risível desdém; certas coisas não mudam, mas deveriam. Porque não se planejar para o duo Natal-Réveillon ultrapassa as fronteiras da desorganização para abraçar de corpo, alma e neurose o território da auto-sabotagem. Não tenho o menor pudor em fazer um mea culpa nesse sentido, mea uber maxima culpa; sempre fui a raposa da fábula nesses tempos de festas. Porque não tinha o que desejava, eu o desdenhava, e repetia em falso bravado que odiava o Natal e desprezava o Réveillon. É patético, infantil e nada justificável, mas o Esopo dizia que é fácil menosprezar aquilo que não se pode alcançar, e quem sou eu para discordar do sujeito.

Dia desses um novo amigo me perguntou à queima roupa, assim que comecei a repetir minha litania de ódio às celebrações natalinas: mas por que? Não soube responder. A verdade é muito simples: quero demais esse pacote para odiá-lo ou desprezá-lo. Desconheço prováveis motivos racionais pré-existentes para essa falta de programação, até porque embora não planeje, sempre idealizei essa época do ano. Jogue a primeira pinha seca com laço de fita vermelha quem nunca sonhou com o Natal e o Ano Novo perfeitos. Os meus sofreram tantas variações sobre o mesmo tema que perderam a própria noção de "perfeição"; hoje, me contento com "boas festas", sem o estigma da melancolia, solidão e desperdício de tempo.

Então é Natal e meus arrependimentos pelo que fiz continuam sendo os mesmos. Esta deveria ser, portanto, minha primeira resolução para 2017: cometer novos erros. Com efeito, errar não é necessariamente um problema, mas incorrer no mesmo equívoco é de uma imbecilidade grosseira e, após os cinco anos de idade, inaceitável. Ouse; mire em outros alvos. Permita-se. Livre-se dos antolhos, da âncora, dos grilhões. Você vai errar de qualquer maneira, em 50% dos casos, uma probabilidade matemática, então que esta metade funesta seja ao menos fresca, original. Erre diferente, até acertar. Até porque não é preciso um Alan Turing para se chegar à conclusão de que se cometermos o mesmo descuido ad nauseam, os abençoados 50% restantes jamais estarão ao nosso alcance e serão como as uvas que nós, raposas desdenhosas, iremos vilipendiar com olhos famintos e invejosos.

Cada um conhece seu tipo de arrependimento mais amargo, o que tem cheiro de naftalina, cor de solo infértil, corta feito cerol novo e anuncia a própria chegada com um riscar agudo de giz em quadro-negro. Para alguns, é o remorso de algo já feito; para outros, o pesar por alguma coisa que sequer ensaiaram fazer. Antes que o Réveillon bata à porta, me antecipo e chamo ao palco o "Rei" Roberto Carlos: "se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi". Tenho dúvidas; ainda acho mais fácil fazer qualquer coisa, mesmo que de última hora, do que chorar uma Dairy Queen inteira derramada. Enquanto não tivermos uma máquina do tempo, nem pudermos voltar o relógio factualmente, prefiro carregar o ônus do arrependimento pelas emoções não vividas do que correr o risco de chorar para (talvez) sorrir. Mas há um truque nesse meu livre-arbítrio chinfrim: o "mesmo que de última hora". É o meu "abre-te, Sésamo", meu "abracadabra" para acabar me rendendo às emoções, estas que sempre foram senhora de mim. Então é Natal e confesso: chorei, sorri. E se me arrependo de qualquer ação ou emoção, foi por tê-las vivido intensamente.   

7 de dezembro de 2016

filofobia, ou "o medo de amar"

Filofobia
Psiq.
Substantivo.
1. Aversão e medo mórbido, irracional, desproporcional, persistente e repugnante de se apaixonar ou de fazer amigos;
2. Medo do amor. A palavra se origina do grego "filos", que significa "amar ou amado". Os indivíduos que sofrem desta fobia têm medo do amor romântico ou de formar laços emocionais, de qualquer tipo.


Envolver-se emocionalmente com alguém no século XXI é o equivalente simbólico a brincar de roleta russa no escuro com um bando de desafetos dos tempos de colégio. É perigoso, irracional, inaceitável. Ninguém mais faz isso; é démodé, quixotesco, prova cabal de que o praticante está nadando a braçadas sôfregas contra a maré e vai aguar na praia. Um passo em falso desnecessário, uma estrada de terra esburacada sem a bênção da tração quatro-por-quatro, a aposta mais alta no cavalo desconhecido, ações de risco máximo no auge da recessão econômica, o sobrenome do cônjuge, as chaves de casa, do carro, da alma.

Em algum momento entre o escopo gigantesco do universo, durante o milionésimo de segundo em que o ancestral mútuo do homo sapiens e do chimpanzé passou a desenvolver consciência de si próprio, e o minúsculo e confortável umbigo do mundo de nossos dias, em que mulheres passaram a usar calças-compridas e a votar e a pós-modernidade tornou-se um conceito por demais volátil para fazer qualquer sentido prático, a ideia de "relacionamento" e "envolvimento emocional" foi eclipsada por fatores sociais e culturais que a modificaram definitiva e irrevogavelmente. No ápice do individualismo, consolidado pela independência sócio-econômica feminina e pela igualdade entre gêneros, o desprendimento emocional nunca foi tão liberador, conveniente e simples.

Um exemplo contundente desta liberdade para ambos os sexos é a metáfora máxima e metonímia do desapego relacional: o fim do matrimônio. Com o tempo, separações judiciais cuja burocracia levava anos para se concluir e cujo estigma social cinzelava chagas na reputação e auto-estima dos ex-cônjuges, passaram a ser resolvidas cada vez mais frugalmente e, um sopro de alívio para quem está pronto para colecionar mais um soneto, outro retrato em branco e preto, sem o drama e as fofocas do passado. Casar nunca foi tão fácil; e descasar, mais fácil ainda.

E daí me pergunto porque esse ensaio, que era para ser uma reflexão sobre a tal filofobia, esse medo louco de amar, de se apaixonar, de se envolver emocionalmente e se entregar ao abandono próprio das emoções, acabou resvalando para algo totalmente acadêmico, cheio de palavras compostas, com hífen e o escambau. Talvez uma introdução fosse necessária; é realmente fascinante e monstruoso perceber como vamos nos tornando cada vez mais dispostos a não ceder, a não nos comunicar, a não ouvir, a não doar, a não abrir os braços em abraços, a não sorrir, a sempre não, não, não. Talvez filofobia seja apenas uma de muitas moléstias lazarentas a tolher os sentidos e acovardar; ou quem sabe cinco parágrafos sejam como um jogo de espelhos, fumaça, uma bela, porém ineficaz máscara que o autor use enquanto ganha tempo para amaciar a própria carne e preparar o leitor para a verdade inevitável.

Afirmar ou mesmo crer que a grande pedra no sapato dos relacionamentos humanos seja o medo de amar seria, no mínimo, muito ingênuo. Indivíduos decidem não se envolver emocionalmente uns com os outros por um número infindo de razões consideravelmente plausíveis; há quem tenha vivido só por tanto tempo que não consiga imaginar a vida de outra forma, sem falar nos que nunca viveram sós mas tampouco querem se dividir com outro alguém. Tem aqueles que preferem gatos, cachorros, papagaios, cobras e lagartos, e acabam se envolvendo emocionalmente com eles. Há também os solteiros inveterados, os corações aventureiros, ciganos pelo mundo que, por razões auto-explicativas, causariam estrago considerável a outrem caso permitissem a estes se envolver emocionalmente consigo. Tem quem não troque sua liberdade por porto seguro algum no universo conhecido, nem pelos pés mais quentes e macios nas noites mais frias de inverno. Em grande número existem também os desacreditados que, atordoados pela primeira ou última desilusão amorosa, desistem da empreitada romântica drasticamente, por temor ao coice, à espora, ao facão. Esquecem-se, por certo, que um dia é da caça e o outro, bem... Às vezes também.

Não me esqueço de uma aluna de 16 anos que, às vésperas de embarcar para um intercâmbio de pouco mais de seis meses na Austrália, decidiu racionalmente dar término ao namoro de dois anos e meio. Eu podia sentir a sombra da adolescente que fui, teimosa Peter Pan costurada a meus pés, murchar feito uvas ao sol. Perguntei a ela se aquilo não partiria o seu coração, se não seria uma bagagem pesada demais para levar no avião, para outro continente, para a vida naquele momento. Ela sorriu para mim (de mim?). "Foi uma decisão de comum acordo. É um momento em nossas vidas em que nós dois precisamos de liberdade para crescer, para mudar, para expandir nossos horizontes", ela me contou naquele inglês perfeito, os olhos azuis faiscando oportunidades, futuro, promessas. Aos 16 anos, eu provavelmente morria de amor pela décima-quinta vez.

Minha aluna não sofria de filofobia naquele tempo, e posso apostar meu dedo mindinho que ela ainda não faz ideia do que isso seja agora. Seu motivo para dar fim a um relacionamento e evitar um envolvimento emocional ainda maior era plausível, justificável, racional. Mas uma fobia não é coerente, longe disso; não procede, não é justificável, foge ao padrões lógicos, à ordem do raciocínio e ao bom senso. Dessa maneira, quem sofre de filofobia morre de medo de se apaixonar e de se envolver emocionalmente, mas é incapaz de explicar intelectual e racionalmente porque esse pavor existe. No entanto, ele é real e pode gerar uma série de complicações de ordem relacional - o filofóbico é arisco, pessimista, tem um grau de expectativa exacerbado em relação ao objeto de desejo e amor - e psicossomática, como transtorno de ansiedade generalizada e depressão. Não raro, esses indivíduos acabam de isolando não apenas de seus parceiros amorosos, mas também do convívio social.

Eu perdi a pessoa que mais amava esse ano. Parece ridículo, mas nunca imaginei que meu pai fosse envelhecer ou adoecer, o que dirá morrer. A coisa toda é ainda mais surreal assim, escrita, publicada: o meu pai morreu. Eu nunca tive medo de amar o meu pai. Mas perdê-lo, este, sim, era o meu maior, mais ignominioso pavor. Quando meu pai morreu, alguma coisa quebrou dentro de mim; uma peça, uma joia, uma engrenagem, a caixa de controle. Algo minúsculo o bastante que eu não saiba nomear ou não perceba em nível consciente, mas enorme o suficiente para fazer um estrago monumental. Meu pai dizia que a gente se apaixona sempre, em qualquer idade; que é impossível frear uma paixão quando ela chega, escolher a quem amar, controlar o objeto desse amor. Eu o ouvia maravilhada, com o coração transbordando de um misto de desejo de viver aquilo e um medo que vinha da certeza de que eu jamais teria a chance. E a idade, pai? Não tem idade para isso. Quando se ama, todo mundo é jovem outra vez.

O maior medo do meu pai era morrer só. Isso não aconteceu. Em seu último suspiro, que foi dorido, difícil, tortuoso e feio - a morte não é generosa, nem tranquila e não cai bem a ninguém - eu estava lá, segurando suas mãos e ombros, olhos fixos nos dele. Quando vivo, meu pai amou desbragadamente: seu trabalho, sua família, mulheres, a estrada, a madrugada, as árvores, livros, música, o amor em si. Não herdei sua coragem e muitos são os meus temores: tenho medo de perder a quem amo para a vida, para a morte, para o outro, para mim mesma; de viver experiências prazerosas porque estas, invariavelmente, chegam a um final; de amar e, sobretudo, do amor. Porque amar e amor são entidades diametralmente distintas, embora complementares.

O cerne de todo pavor é a finitude das coisas. É exatamente o fugaz e a certeza de que nada dura para sempre que dão o tom de receio e pusilanimidade tão inerentes à condição humana. Tememos, a priori, o tempo, porque nele tudo finda, nada se mantém. Tempus fugit, ou seja, "o tempo urge". Somos nossa memória contra o tempo, nossos corpos contra o tempo, nossas paixões contra o tempo, nossa história contra o tempo e, sem exceções, ele é sempre o vencedor. Em semelhante proporção temos pavor do que prezamos e podemos, uma vez em risco, perder. Teme pela vida quem sabe que pode desperdiçá-la, daí o senso de valor e significado próprios à mesma. Não é de admirar que as palavras "temor" e "respeito" estejam tão intrinsecamente correlacionadas em certas línguas e culturas; quem ama algo ou alguém, o respeita e valoriza e, portanto, teme profundamente deixá-lo escorrer pelos dedos.

Quando se trata de amar, somos feito espadas, forjadas pelo fogo, martelo, bigorna e as batidas incansáveis do ferreiro das histórias, dos desamores, vitórias, do espólio de guerra dos relacionamentos de cada um. As chamas lambem e incandescem o metal, as batidas da vida entortam, moldam, curvam, recurvam e vão nos transformando nessas "armas para amar". Cada um ao seu jeito, da maneira muito peculiar que o seu ferreiro o forjou. Muito me admira que duas espadas deem bossa, quanto mais façam um samba, principalmente se o leitor imaginar uma cena de batalha de "Game of Thrones", por exemplo. Mas, já dizia o provérbio, no amor e na guerra, vale tudo. O fato é que cada um ama a seu modo e ama de maneira diferente à medida que novas batalhas, leiam-se "experiências" - vão o moldando. Há quem perca o medo de amar com o tempo; há quem ame com mais ou menos intensidade; há quem decida se mudar para Pasárgada e virar ermitão. E há também quem trace suas investidas militares numa linha consideravelmente reta, sem muitos sobressaltos ou mudanças, utilizando-se da mesma velha e intocada espada em toda nova batalha.

O medo de amar apenas não é maior do que o pavor do amor. Tem medo de amar quem não quer sofrer uma perda ou uma rejeição. Medo de se envolver emocionalmente equivale a ter expectativas que você imagina que o outro jamais irá suprir. Fobia irracional de se apaixonar é um nível desconfortável de ansiedade que consome o indivíduo e gera um pavor e a certeza de que ele não será correspondido em seus sentimentos. Tem pavor de amar quem possui a auto-estima tão alquebrada que se sente um estrangeiro na própria pele, desculpando-se a todo tempo, movendo céus e terra para agradar e acuando-se ao menor sinal de reprovação por parte do objeto de amor e desejo. Filofobia é uma guerra injusta que o indivíduo trava constantemente dentro de si: ele quer amar e precisa ser amado. No entanto, seu pavor de rejeição é tão grande que seu desejo é pôr fim ao relacionamento, mas ele é fraco demais e dependente demais do outro para fazê-lo.

Imagine que você tenha passado anos em um quarto escuro, sem uma brecha de luz sequer. Quando sair de lá e for para a mais bela das praças, sob um céu rebentando de azul e cerejeiras em flor, a beleza e a luz hão de lhe incomodar os olhos, cegá-lo brutalmente. Isso acontece porque o ser humano é uma criatura de hábitos e, sendo assim, acostuma-se a qualquer coisa, inclusive e especialmente ao ruim, ao ignóbil, ao medíocre. Por isso tanta gente teme o amor: porque, muitas vezes, ele é a luz e a cor após um período imenso e inacreditável de trevas e, sendo assim, cutuca, atiça e reaviva os sentidos calejados, adormecidos e maltratados pela dor. Finda a estiagem da alma, o amor chega numa tormenta que faz o sangue fluir, dá vida a sonhos antigos e cria outros, novos, desperta desejos, põe ideias na cabeça, faz o corpo se mexer, salga feridas e rompe a inércia da morte em vida. Pode-se ouvir os ossos enrijecidos e os sentimentos artríticos lentamente degelar ao calor inesperado que é sentir-se e saber-se humano novamente.

A princípio, o amor dói pois quebra paradigmas, põe toda e qualquer certeza em cheque, esgarça horizontes, embirutece a gente. Primeiro, assusta e lacera, tudo junto, num caos emocional sem precedentes, pelo menos até a próxima dor de amor, que Deus nos livre. Depois, passado o choque inicial, enche a alma desse amor novo, dessa felicidade e plenitude que são o maior e mais precioso tesouro do universo, que nem imaginávamos possível existir. O êxtase é tão primal e a realização dos sonhos tão possível que nos tornamos Midas em semanas: tocamos o ar e, dele, extraímos castelos de ouro forjados na crença de que somos, finalmente, dignos dessa tal felicidade. E, então, vem o medo, aquele pavor horrendo de que o tempo seja mais rápido que o amor e ele murche, ou que haja uma outra mulher, ou que ele tenha câncer, ou que viaje para a China, ou que se canse do seu jeito, ou do seu corpo, ou das suas mazelas, ou que queira filhos, ou que não os queira, ou que tudo tenha sido apenas sexo, ou que não queira passar o Natal com você, ou... ou... ou...

Há alguns anos, quando meu pai ainda era vivo e me dava muitos conselhos, meu maior medo na vida era envelhecer só. Ainda é; hoje, a lista apenas aumentou. Por querer me proteger de um mundo que ele via muito grande para mim, compreendo agora, meu pai não foi um conselheiro otimista, muito menos politicamente correto ou didático, o que pode ter rendido alguns poucos fusíveis queimados em minha caixola, nada que eu faria diferente, a bem da verdade, tratando-se da figura única e tão amada que foi meu pai. Quanto à questão de envelhecer só, meu pai, esse grande amigo meu, dizia, aqueles olhos de mel carinhosos fixos nos meus, sempre: "Todo mundo quer alguém para amar, momó querido. Mas é difícil. Aprende a viver sozinha, que é mais certo". Aquele enigma esfíngico (profecia?) jamais sanou o meu medo e muito menos respondeu a minha pergunta, mas ninguém pode dizer que o homem estava errado. Era o jeito Mestre dos Magos do meu pai, que ficou para contar história.