24 de dezembro de 2016

partidas e presentes


Todos já se foram. Os adeuses mais incômodos, agulhadas à meia-noite, vêm em prestações. Primeiro, os colegas de trabalho, com as férias. Depois, o último serviço do ano. No que a mulher se percebe de súbito livre no meio da tarde, o céu rebentando de azul, a praia e as ruas cheias de gente igualmente disponível e liberta e ela, acorrentada à gana pelo tempo tomado de trabalho que agora ficou para trás, escondido pelos ponteiros do relógio.

A noite lhe traz a despedida do amante, esta mais longa, a partida suspensa até o raiar da manhã, por isso um adeus mais aflitivo. Em seguida, vai-se a empregada, que já é um membro da família e lhe abraça as confidências enquanto passa o bife e adoça o suco da criança. Por fim, parte o próprio filho, levado pela avó, com os últimos raios de sol, a hora mais temível do dia, o cair das cortinas do dia, em que mesmo com o ocaso da luz, todo homem e mulher vislumbram melhor a finitude de si mesmos.

O sobejo da noite se arrasta feito cobra pegajosa, dilatada num mundo onde a gravidade a esmaga no chão. O calor e a umidade acumulados durante o dia não ajudam, e cada bafejar mais profundo fazem-na sentir flutuando em visgo numa bolha de plástico espesso que abafa os sons e distorce as linhas e cores. Há algo errado com o mundo. O seu mundo. Está vazio. Mas ela está ali. Então o seu mundo não pode estar vazio, por definição.

Ela caça com os olhos ao redor e encontra os do filhote peludo esparramado no chão, focinho repousado sobre as patas da frente, a epítome do companheirismo e da preguiça. O cachorro parece lhe sorrir, orelhinhas pontudas feito as de um lobo branco e preto. Ela estala a língua e o filhote abana o rabo em resposta, pula sobre as patas traseiras e vem lamber-lhe os dedos do pé, mordiscando de leve. Ela reclama em voz alta. O cachorro a encara, late de volta. Um diálogo se estabelece.

O seu mundo não está vazio. Há presentes sobre a mesa da sala. Quando pessoas se vão, as festas se duplicam, são comemoradas antes da hora com quem fica, às vezes depois com quem retorna. A caixa vermelha da mãe a encontrará no dia certo. As duas pequenas e coloridas, muito depois que as festas tiverem cessado e o menino tiver retornado à casa. A mulher suspira e repensa o valor real dos presentes se os seus donos estão de fato ausentes. Então ela vê o casal de presentes desencontrados: o dela, os dele.

Uma caixa preta desembrulhada; uma bolsa de papel fechada por uma fita de cetim verde e um cartão vermelho, ainda não preenchido. Um casal de presentes separados por dias, distância, histórias, circunstâncias, tempo. O dela havia chegado antes, de surpresa, como ele mesmo chegara, ocupando presença indelével, no assombro, como deve ser o espavento da certeza. O dele, como tudo em sua vida, seria em seu tempo, a sua maneira, nunca à revelia. Se um presente deve seguir desígnios tão justos, ela se pergunta o que será necessário, que provas deverá vencer para entrar de fato em seus domínios e vencer sua resistência.

A mulher se levanta e caminha em direção à mesa. O filhote a segue, se enrosca na barra de seu vestido e o puxa com os dentinhos afiados; quer brincar. Ela afaga a cabeça do animal e sorri, distraída. Toca a caixa do presente que ganhou ainda essa manhã; fecha os olhos e percorre as linhas do conteúdo com as pontas dos dedos. Cada traço do rosto do amante aflora em sua memória; o calor dos olhos, a seriedade, os meios-sorrisos; as mãos expressivas. Se ela se concentrar um pouco mais, pode ouvir-lhe a voz, sua risada cristalina. E pelo querer, ela faz da ausência um presente instantâneo.

Ela se lembra que ainda não escrevera o cartão. "E então, cachorrinho? Quem ainda escreve cartões de Natal?", pergunta em voz alta, vendo o filhote brincar com um pequeno besouro que veio se fazer prisioneiro pela janela da sala. "Eu" ainda escrevo cartões de Natal. E contos de Natal. O cartão é diminuto para tanta prosa, como o são todos os cartões ou moldes, e são necessárias letras minúsculas para conter tanto sentimento, que vaza pelas bordas feito o bolo que cresce mais do que a fôrma.

Ela escreve demais para ele e tão pouco por si mesma. Relê sua caligrafia miúda e acha graça de si mesma, de como aquelas palavras, um presente para ela, talvez não o serão para ele. Porque às vezes um presente também é ausência. Ou, talvez, se faça presente quando menos se espera ou mais se carece. Ela suspira; ultimamente, tem sido toda suspiros. A vida é uma espera. Por quem parte e volta, para que haja o retorno, pelo amor que precisa estar presente, por menos partidas.

para Raul Neto

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