27 de dezembro de 2016

e o gigante chorou

para Fausto Marques Pinheiro Júnior


Tem gigante que realmente engana a gente. Que é gigante por fora, com pinta de bravo, bad boy tatuado e que, por dentro, é pura rebeldia auto-contida, candura cultivada e dor. E isso não acontece só em filme da Disney em 3D. Existe na vida real também, onde o galalão é o seu melhor amigo, ou colega na faculdade; existe bem ali do lado, em Copacabana, o bairro carioca mais cosmopolita da zona sul dessa nossa vila de São Sebastião, onde toda história é possível, até mesmo um conto de fadas às avessas.

Conheci o gigante desta história em sala de aula há cinco anos. Embora já fosse homem feito, todo músculos, barba, ideias e conceitos marxistas solidamente lavrados em seu construto intelectual e muito whey protein, o então futuro advogado, dono de um senso crítico e humor irônico apurados, ainda trazia no olhar aquele brilho único, uma inocência quiçá pueril de quem nunca perdera para o outro, para si mesmo, para o tempo ou para a vida. Sim, ele possuía a noção de sofrimento - pois esta é a sua essência, a abstração - e flertava com ele, mas seus sonhos e o coração idealista ainda não haviam sido esfrangalhados pela decepção, pelo menos não em nível tão profundo ao ponto de marcar-lhe o peito cuidadosamente esculpido.

O gigante, que até hoje me chama respeitosa e academicamente de "professora" (nunca o indefectível e tão previsível "teacher") e incendeia debates políticos e filosóficos no Facebook, cresceu. E, hoje, chora. Nessa madrugada insone, em meio à torrente de posts pós-natalinos com fotos de famílias e arroz com passas, um texto tão colossal como o meu gigante me chamou atenção. Na verdade, não foi o número de linhas que me assombrou, porque textos longos são habituais nas terras fantásticas do personagem dessa história, mas a forma como ele começa:

"Amar é um verbo. Admito que esse é um começo cliché, no entanto gostaria de começar com esse lugar-comum tão repetido. Amar não é um verbo qualquer, pois envolve uma ação contínua e habitual. Relaciona-se intimamente como o verbo crer, não só na sua forma como também no seu conteúdo. Quem ama também crê. E quem crê não apenas pensa, mas faz. Age em cima de sua crença."

Bastaram-me aquelas poucas linhas para que o resto de sono que eu mal pude acumular me abandonasse por completo. O meu gigante, senhor da abstração e da retórica, mestre do sofisma e do debate acadêmico, do universo multiversitário, escrevendo sobre... amor? De onde vinham aquela vulnerabilidade que jamais notei, aquele lirismo? Li e reli as palavras do meu ex-aluno. Chorei com ele na madrugada abafada que ansiava pela carícia da chuva, que nunca chegou.

Tive três reações ao texto: ele fala de amor e crença, um tema recorrente em minha própria escrita. O gigante os coloca como os lados de uma mesma moeda, assim como eu, e a medida que lia suas palavras, não pude evitar a sensação de que poderia ter sido eu mesma a tê-lo escrito ou ainda a escrevê-lo um dia. A dor de amor e o dissabor não têm idade, experiência de vida nem maturidade a respeitar. É feito a morte; carcome a todos por igual, sem distinção ou preferências.

A segunda e terceira reações vieram em cadeia porque são codependentes. Aquele texto poderia ter sido escrito por uma mulher. Se não tivesse autoria, aposto um dedo da mão direita que dez entre dez pessoas pensariam como eu. O gigante vai rugir quando ler essas linhas; ele abomina sexismo. Mas, do interior da sua alma muito andrógina (ou feminina?), ele jamais perceberia a sutileza que faz a balança da sua história pender para um lado tão peculiar, tão absolutamente único.

O fato é que publicar algo como ele publicou, numa época em que se espera de seres-humanos em geral, e homens em particular, uma atitude de desprendimento e descompromisso sem precedentes, é de uma coragem brutal. Se uma mulher o fizesse, porque temos a prerrogativa da "sensibilidade à flor da pele", dos "hormônios à revelia", da "alma desnuda" ou seja lá qual desculpa para exercitar a catarse nossa de cada dia, amém, já seria um feito e tanto, pelo conteúdo emocional do texto. Tendo sido escrito, assinado e publicado por um homem, um acadêmico, um gigante, cuja aparência e intelecto inspiram tal fortaleza e invulnerabilidade, é o maior ato de amor e bravura que já vi em um homem tão jovem. Segue o seu texto na íntegra:

"Ao longo da história humana, tanto o amor e crença, quanto a crença e ação foram alvo de intenso escrutínio intelectual. Pascal é notório por colocar a ação como base da crença, formulação na qual acreditamos somente depois de termos nos habituado a agir como se acreditássemos. Amar e crer são ações que parecem grandiosas, demonstráveis em grandes atos, quando talvez são mesmo é as mínimas coisas que fazemos no dia-a-dia. E destas mínimas coisas, destas pequenas ações, é que surge a crença e então o amor. E de fato faz sentido. Não parece que muitos estariam dispostos a considerar que alguém que vai à missa e reza somente aos domingos é mais fiel à religião do que aquele que reza ainda que em casa todos os dias. A profissão de fé está nos atos mais íntimos e mínimos, e são eles que podem levar ao grande ato. Não o contrário. Aquele que só vai à missa nos domingos (quando vai) é chamado de "não-praticante", de modo a deixar transparente a falta de investimento com a sua crença. Falta essa que muitas vezes marca uma crise de fé, uma dúvida ou o começo do abandono. Nunca usei o verbo amar de modo leviano. Espero que você também não e, acima disso, creio que não. Porque nos atos destes do dia-a-dia sempre agimos de forma a cultivar essa crença e esse amor, ao menos quando estávamos juntos. Não é fácil ser interrompido da sua fé, jogado para fora da sua prática, ainda mais quando ao menos não parece existir qualquer crise de fé. Ainda assim talvez seja necessária essa ruptura, porque embora tenhamos rezado juntos, parece que cada um rezava diferente. Praticava diferente a sua reza. Não há culpados ou inocentes. Só duas pessoas que embora tenham acreditado uma na outra, no final tinham uma concepção muito diferente do que queriam praticar. Nós nos machucamos às vezes, mas nos apoiamos muito mais. De modo que, independente do futuro, nunca vou deixar de ter carinho com cada memória e momento do que conseguimos em (quase, porque hoje faríamos 11 meses de namoro) 1 ano construir juntos como história comum de nossas vidas. Eu lembro de quando nos beijamos pela primeira vez no Ano Novo e você disse que parecia que estávamos sonhando e voando por causa das luzes, da música, do sofá. Hoje eu senti a queda. Dói. Imensamente. Entretanto não é uma dor que eu gostaria de não ter, porque se dói é porque hoje tive que perder um pedaço de mim. E minha vida valeu muito mais apesar do pedaço que perdi... porque há em mim hoje tanto de você que nunca ninguém há de tirar."

Não tenho essa leveza do gigante em fazer uma limonada no azedume do final, nem essa "giganteza" de alma que ausenta os amantes de culpabilidade. A pequenez e a soturnidade das coisas acabam me velando o espírito. Apoio o rosto sobre as mãos para organizar os pensamentos e escrevê-los aqui e me perco relendo o final do depoimento. Odeio o final das coisas, os términos, a morte, o entardecer, as partidas. O desfecho da história do meu gigante me trouxe grande tristeza; por mim, não teria acabado. No entanto, assim que termino de escrever essa frase, percebo que ela é um grande erro; ele mesmo reconhece que o momento chegara.

"Hoje eu senti a queda. Dói. Imensamente. Entretanto não é uma dor que eu gostaria de não ter, porque se dói é porque hoje tive que perder um pedaço de mim". Eu, por outro lado, apagaria as memórias de cada desamor, cada desvio de percurso, revés, e desgosto que viesse marcar minha vida e chagar minha alma calejada. Se me fosse dada a opção, eu não viveria o amor para evitar a dor e o gosto amargo que ele deixa na partida. Mas essa sou eu; não tenho uma única tatuagem no corpo. Isso diz muito sobre uma pessoa; cicatrizes de guerra e marcas de amores antigos não me cabem.

Sou uma romântica incurável, uma sonhadora perdida em anacronismos, uma escritora-arquiteta de castelos de bolha de sabão. Fecho os olhos e imagino meu ex-aluno de terno e gravata, o paletó mal contendo seus músculos hipertrofiados, os olhos escuros, franzidos pelo sorriso largo. No meu devaneio, ele ainda usa os mesmos óculos que usava em sala de aula e tem o mesmo sorriso gentil, de menino grande. Nunca conheci a moça que não soube rezar como ele, mas ela está lá, e ela são todas, infindas mulheres, a única mulher, de branco, ao seu lado, e segura flores amarelas. E lhe sorri um riso de sol e fé. 

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