20 de dezembro de 2016

verbo: mulher


"Mulher" deveria ser verbo, não substantivo feminino, e muito menos comum. Porque a medida que o tempo vai depositando em cada fêmea diferentes camadas de identidades com as quais precisamos aprender a conviver, descobrimos que o conceito de "mulher" extrapola preceitos consolidados, como o do ser que gera e embala; o forno. É bacana ser forno. Famílias se reúnem na cozinha ao redor do fogão à espera de fornadas de bolos e pães. E onde há reunião, há partilha, unicidade, diálogo.

Lutamos pela igualdade sócio-econômica, conquistamos um espaço considerável e ainda há uma fome voraz no âmago feminino. Ainda assim, certas coisas não mudam; seremos eternamente o porto, a âncora, a chama e o calor central ao redor do qual a família há de se orientar. Feito os verbos numa frase, que são o núcleo da sentença, a essência mesma do que deve ser compreendido e o cerne da questão: o verbo se fez mulher.

No entanto, vestir o verbo, de fato ser o verbo é árduo, conflituoso e por vezes assustador. As redes sociais vêm se banqueteando com as agruras femininas já há algum tempo, tanto a ponto de cada dissabor ter se transformado em clichê midiático: a menarca, cada vez mais prematura, e as prováveis causas científicas, sociais e quiçá políticas para isso; a menopausa e seus dilemas; a objetificação do corpo; tratamentos cosméticos invasivos e abusivos (e porque nos submetemos a eles); cirurgias plásticas desnecessárias e seus resultados grotescos (e porque nos submetemos a eles); imposição de padrões de beleza inatingíveis (e porque... já sabe); dietas tresloucadas e rotinas de exercícios físicos idem;  transtornos alimentares e dismórfico corporal (leia-se preocupação obsessiva com algum "defeito" corporal); desigualdade salarial e de oportunidades no mercado de trabalho; jornadas triplas de trabalho; violência doméstica; assédio sexual e moral.

E daí que às vezes se forma um tornado bem no miolo dessa coisa toda, uma força centrípeta à qual nada escapa. Não que eu não saiba ser mulher, e nem é o caso de sexualidade ou afeto fora do lugar. Por um rolar de dados afortunado, nasci numa família de classe média que me pôde proporcionar educação formal completa e independência financeira, o que já me redime de alguns dos mais atrozes delitos dos quais uma mulher pode ser vítima, a priori (e olhe que há tantas ressalvas nesta questão).

Assim, restam-me os demais, que não sangram a carne, necessariamente, mas abatem e solapam a auto-estima e as forças para assumir a própria identidade feminina em semelhante proporção. Mas não são o assédio, a desigualdade, cirurgias e padrões de beleza inatingíveis que fomentam esse tornado monstruoso que distorce e devora feito um buraco negro. Minhas feras - tenho duas, desmedidas, disconformes bestas - não vêm do mundo e, talvez por isso, sejam ainda mais perniciosas; elas vêm de mim, da voz mais alta em que o verbo grita "mulher".

Nenhuma mulher nasce mãe. Esse tal "instinto materno" não é instintivo, mas adquirido, e a mãe se forja na marra e na dor, se elabora em pequenas e maiores recompensas, institui-se mãe no grito e na raça, aprende a ser mãe com a cria, assim como o filho aprende a ser cria com a mãe, tudo na base da tentativa, erro e muito "vai na fé que dá certo". Da mesma forma, o amor materno cresce, se modifica e ganha novos matizes com o tempo. Filhos crescem, passam a ouvir música de gosto duvidoso, vão embora e o que fica é essa capacidade inerente da mulher de se doar, de ceder, de conceder.

Somos, por natureza, essência e excelência, criaturas obsequiosas, e não há feminista engajada que possa se opor a este fato: a mulher empresta o seu corpo a outro ser-humano por nove meses para lhe doar a vida, não apenas uma, mas quantas vezes forem desejadas. Por quase um ano, uma revolução hormonal toma conta de seu cérebro e sangue, seus órgãos internos literalmente se movem na cavidade abdominal, a coluna vertebral sofre pressão equivalente a de um homem trabalhando como estivador por quatro meses, seus intestinos funcionam irregularmente, insônia e retenção hídrica são queixas comuns e, faça-se a luz!, a depressão pós-parto vem fazer visita sem previsão para ir embora. Homem algum jamais amaria com o abandono e a abnegação de uma mulher. Seria humanamente impossível.

E este abandono é a primeira das temíveis feras que alimentam a impaciência e a frustração que`por vezes sinto em ser mulher. Porque quem se entrega é, por definição, vulnerável e está exposto, assim como a mulher grávida corre riscos terríveis pela vida tão preciosa e indefesa que gera em si. A mulher que se doa a algo ou a alguém o faz por duas razões: ela crê e ama. Em outras palavras: está prenha de fé e amor, sua alma fecunda da crença cega de que dessa vez vai dar certo, de que começar de novo vai valer à pena, de que cada história é uma nova história. Assim como cada gestação é uma nova gestação.

Da mesma forma, o amor e a esperança são gerados no invólucro frágil que são a imaginação e o querer femininos, esses universos tão alienígenas ao homem.  Amamos o amor, a ideia do amor e as infindas possibilidades que ele encerra antes mesmo de nascer, pelo menos antes de termos certeza de que tenha ao menos germinado no outro, feito a mãe que tece em seus sonhos as feições do filho que cresce em seu ventre. Enquanto isso, em meio ao caleidoscópio onírico extasiante que é o amor feminino em gestação, o homem continua sua rotina de vida, sem alterar planos, nem rotas, presente ou futuro; definitivamente, não simbolizamos o possível impacto de um asteroide indo em direção a ele. E é isso que me frustra, me causa inveja. Porque eu queria amar assim, masculinamente. Um amor não necessariamente melhor, mas decididamente mais livre e menos indefeso; sem estar prenha de esperança ou fé, sem gerar nem nutrir um amor por dois, sem alimentar o querer e esperá-lo crescer feito Lua cheia, para dar à luz sonhos que jamais serão realidade.

Em inglês, o verbo utilizado para a expressão "esperar um bebê" é o mesmo usado para "criar expectativas": expect. Acho isso poético, pungente, de arrepiar. Porque gerar expectativas, assim como parir vidas, é essencialmente feminino e dual, e ambos encerram em si mesmos um nascimento e uma morte para a mulher, o júbilo e o luto de mãos dadas, na medida em que simbolizam algo independente dela, que se inicia e floresce para a vida - a cria que parte - e algo dependente dela,  que morre se não for alimentado pelo outro - as expectativas.

Expectativas são a minha segunda, temerosa besta, e a mais peçonhenta delas. Dia desses, vi esse post rodando na minha linha do tempo no Facebook:


A ideia é tentadora: se expectativas expõem quem as gera e nutre, abrindo portas para a decepção, cactos são o extremo oposto. Resilientes, sobrevivem em condições extremamente áridas e à total ausência de esperança e amor, com pouquíssima água e solo praticamente infértil, e ainda são dotados de armadura própria: uma bela couraça coberta de espinhos. Passivo-agressivos, os mais rebeldes ousariam acusar. Alguns até agraciam olhos alheios com flores - brinde para os mais observadores? - e matam a sede dos incautos, já que conservam água dentro de si - lágrimas jamais derramadas, criaturas fortes que são.

Eu não sou o tipo maternal. Nunca criei cactos, nem tampouco os teria. Por outro lado, sou um balão de expectativas e esperança, e tenho gestações múltiplas de amor - mas jamais múltiplas gestações. Em cada uma, amo exponencialmente, concebo a paixão geminada, gesto a ternura por anos. Meus partos são sofridos, longos e solitários, pois assim normalmente é o amor idealizado e ofertado demais e vivenciado ou recebido de menos. Penso em amar diferente; amar como um homem, com esse exclusivismo saudável masculino. Ou ao menos amar sem tanta benesse e obséquio, de maneira a proteger mais o meu próprio espaço e identidade, para não perder terreno para o amor. Mas, a cada nova gestação, meus planos racionais são abortados. E prenha, zonza e delirante de amor e esperança, sou engolida pelo tornado que ri e ruge em meu peito: se entrega, mulher.   

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