9 de dezembro de 2016

então é natal

Então é Natal e o que você fez? As Lojas Americanas já estão tocando a mitológica balada da Simone, emprestada da igualmente indefectível canção dos Beatles - e não menos passível de fazer aos neurotransmissores cerebrais o que a bomba atômica causou em Hiroshima. Portarias de prédios residenciais e comerciais, estes em grau mais conservador, para a infelicidade máxima dos zeladores, já competem entre si no quesito árvore, bolas, guirlanda, papais-noéis cariocas e pisca-piscas. Mais um suspiro e a sua geladeira se enche de passas, nozes, fios-de-ovos e chester, o Natal já terá passado e o Roberto Carlos vai estar cantando em sua sala de estar com a Ivete Sangalo e o Didi. Ah, verdade. Renato Aragão. E, pensando bem, a Xuxa saiu da Globo já há algum tempo. Mas ainda tem o "Criança Esperança", cara-pálida. Firme e forte. Se correr, o bicho pega, se ficar, só mesmo Sidra Cereser para contar história.   


Demarcar o final do ano só não é mais prescindível do que comemorar o princípio de um novo ano. No entanto, nada poderia ser mais poético e humano. Muito embora cada um de nós compreenda intelectualmente que adormece na noite de 31 de dezembro e acorda na manhã do dia primeiro sem que isso faça qualquer diferença no universo ou para si mesmo, independentemente de ter se avançado um dígito ou dois no calendário, há um alívio imenso e uma satisfação incomensurável na ideia ritualística de final e reinício.

Seres humanos não são lineares, planos ou contínuos. Nascemos e morremos - e ainda flertamos com teorias sobre vida após a morte; casamos, descasamos e casamos novamente, quantas vezes forem necessárias; encontramos emprego e nos aposentamos; temos filhos que, por sua vez, tem seus próprios filhos. Se qualquer coisa, somos seres cíclicos, marcados por altos e baixos, términos e recomeços. Não é para menos que essa época do ano gere tanta ansiedade e desalento. Inusitado seria se os convivas apenas pulassem ondas e estourassem champanhe sem um pingo de banzo sequer; pouco mais de uma semana é o tempo necessário para se recuperar do crepúsculo de um ano, melancolia por essência, e receber o ano que nasce de peito aberto, com todo o vigor e a vivacidade que um trio-elétrico exigiria. Haja serotonina.  

Certas coisas não mudam nunca. Feito os especiais de Natal e Réveillon e as retrospectivas de televisão e revista. Ou os balanços de final de ano, as listas de resoluções para o próximo ano e, como não, os exames de consciência. Porque já que é para encerrar um ciclo e fazê-lo em nível mundial, com direito à contagem regressiva direto da Times Square, então vamos fechar com chave de ouro, vamos lacrar geral. "Simbora" passar a consciência a limpo, cambada. Auto-avaliação é a palavra da hora. Então é Natal e o que você fez? Ou, melhor, o que não fez?

O que bagunça mais a cachola e comprime o peito mais apertado, feito engolir um sonrisal a seco? O arrependimento pelo que aconteceu de fato, fantasma escandaloso que chega na calada da noite, acende todas as luzes da casa, se joga a seu lado na cama, rouba as cobertas, baba em seu travesseiro e reconta os seus feitos hediondos e odiosos a plenos pulmões e às gargalhadas? Ou o remorso pelo que jamais chegou a ser realizado, assombração sorrateira que visita ao meio-dia, quando o mundo é pura atividade e efervescência, e cobre a vida com um véu de chumbo pastoso, enevoando conceitos, engessando a coragem e sussurrando em gelo que mais uma pérola de frustração e fracasso foi moldada em seu ostracismo?

Então é Natal e não fiz planos, pelo que o fantasminha nada camarada do arrependimento já nem acha graça em vir me atordoar a consciência. Agora, ele só me encara com abjeto e risível desdém; certas coisas não mudam, mas deveriam. Porque não se planejar para o duo Natal-Réveillon ultrapassa as fronteiras da desorganização para abraçar de corpo, alma e neurose o território da auto-sabotagem. Não tenho o menor pudor em fazer um mea culpa nesse sentido, mea uber maxima culpa; sempre fui a raposa da fábula nesses tempos de festas. Porque não tinha o que desejava, eu o desdenhava, e repetia em falso bravado que odiava o Natal e desprezava o Réveillon. É patético, infantil e nada justificável, mas o Esopo dizia que é fácil menosprezar aquilo que não se pode alcançar, e quem sou eu para discordar do sujeito.

Dia desses um novo amigo me perguntou à queima roupa, assim que comecei a repetir minha litania de ódio às celebrações natalinas: mas por que? Não soube responder. A verdade é muito simples: quero demais esse pacote para odiá-lo ou desprezá-lo. Desconheço prováveis motivos racionais pré-existentes para essa falta de programação, até porque embora não planeje, sempre idealizei essa época do ano. Jogue a primeira pinha seca com laço de fita vermelha quem nunca sonhou com o Natal e o Ano Novo perfeitos. Os meus sofreram tantas variações sobre o mesmo tema que perderam a própria noção de "perfeição"; hoje, me contento com "boas festas", sem o estigma da melancolia, solidão e desperdício de tempo.

Então é Natal e meus arrependimentos pelo que fiz continuam sendo os mesmos. Esta deveria ser, portanto, minha primeira resolução para 2017: cometer novos erros. Com efeito, errar não é necessariamente um problema, mas incorrer no mesmo equívoco é de uma imbecilidade grosseira e, após os cinco anos de idade, inaceitável. Ouse; mire em outros alvos. Permita-se. Livre-se dos antolhos, da âncora, dos grilhões. Você vai errar de qualquer maneira, em 50% dos casos, uma probabilidade matemática, então que esta metade funesta seja ao menos fresca, original. Erre diferente, até acertar. Até porque não é preciso um Alan Turing para se chegar à conclusão de que se cometermos o mesmo descuido ad nauseam, os abençoados 50% restantes jamais estarão ao nosso alcance e serão como as uvas que nós, raposas desdenhosas, iremos vilipendiar com olhos famintos e invejosos.

Cada um conhece seu tipo de arrependimento mais amargo, o que tem cheiro de naftalina, cor de solo infértil, corta feito cerol novo e anuncia a própria chegada com um riscar agudo de giz em quadro-negro. Para alguns, é o remorso de algo já feito; para outros, o pesar por alguma coisa que sequer ensaiaram fazer. Antes que o Réveillon bata à porta, me antecipo e chamo ao palco o "Rei" Roberto Carlos: "se chorei ou se sorri, o importante é que emoções eu vivi". Tenho dúvidas; ainda acho mais fácil fazer qualquer coisa, mesmo que de última hora, do que chorar uma Dairy Queen inteira derramada. Enquanto não tivermos uma máquina do tempo, nem pudermos voltar o relógio factualmente, prefiro carregar o ônus do arrependimento pelas emoções não vividas do que correr o risco de chorar para (talvez) sorrir. Mas há um truque nesse meu livre-arbítrio chinfrim: o "mesmo que de última hora". É o meu "abre-te, Sésamo", meu "abracadabra" para acabar me rendendo às emoções, estas que sempre foram senhora de mim. Então é Natal e confesso: chorei, sorri. E se me arrependo de qualquer ação ou emoção, foi por tê-las vivido intensamente.   

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