28 de julho de 2011

o piano caiu; mais uma vez

Lição do século: querer abocanhar mais do que se pode mastigar, o que dirá engolir, é altamente indigesto.

By Alex Noriega
Roberta Rohen

26 de julho de 2011

o mar


Não sou uma escritora ou jornalista de renome, fato que restringe, ou melhor, impossibilita a minha pretensão à carreira de cronista. Não escrevo sobre política, economia ou "atualidades" em geral, o que faz com que os meus escritos morram às margens da irrelevância, vazios do caráter informativo hoje fundamental para leitores "antenados". Não poderia ser diferente; se nomeei este blog de "Expresso do Inconsciente", além de socialmente irrelevantes, suas postagens seriam incoerentes se não traduzissem a alma do escritor, suas aspirações e, refratadas pelo leitor, a capacidade de reflexão que contém. Assim, tudo o que escrevo pode não ser aplicável às exigências de um mundo conectado aos massacres terroristas, às oscilações do mercado financeiro e à política internacional. Mas, certamente, são textos que harmonizam com o que, a priori, um expresso do inconsciente se propõe a trazer e levar como carga. 

Já faz um bom tempo que, reclusa, não visito o Expresso. Pena para mim, que perco contato com a nau que, tantas vezes, preveniu-me de afogar; pena para você que, leal, vem aqui de tempos em tempos em busca de algo novo para lhe inspirar, mitigar, remexer, transpirar. Sou como a Lua: tenho fases. E, mais predominantemente do que fases, metamorfoses. Houve um tempo em que as mudanças ocorriam em mim letárgica e incipientemente; quase não as percebia. De fato, era como se não existissem. Sentia-me petrificada: um gárgula vigilante, coberto de limo e cracas, à espera da passagem dos segundos, à guisa de anos, espiando insone, pelos olhos baços, a vida acontecer por trás dos rebocos das paredes. A imutabilidade, travestida de resignação, levava-me a crer que o meu sangue e vísceras, tais como a pele nua, gélida e sólida da estátua, não corriam nem respiravam. Não poderia estar mais enganada. Como na evolução das espécies, as mutações vão tomando conta dos nossos corpos e mentes a partir de aspectos tão diminutos, e tão lentamente, que nos fazem acreditar que nada muda. Mas a transmutação é inexorável; ainda mais quando lenta, disfarçada em camadas de certezas, e do avesso para fora. Ah, sim. Até estátuas sem rosto sofrem as mudanças impostas pela vida.

No torvelinho das mudanças, o tempo tem valor poético, mas não prático: dois meses são como dois dias; um ano se arrasta como dez. Quando toda a sua estrutura vai-se acomodando aos sacolejos, assim como a Pangeia à deriva continental, você é uma ilha cercada de tumulto, o olho cego de um furacão. Não percebe que está galopando, que o solo liquidifica-se aos seus pés e, ainda menos, para aonde o mar o levará, continente virgem, recém-nascido, errante e inexplorado. Está à deriva. À deriva das maremotos, do novo ser que, acabrunhado, não reconhece no espelho. Modificar-se é assombroso. Encontrar-se ao sabor das mudanças é aterrador.

Todo mundo sabe que tudo muda, que a vida é uma seqüência de modificações. E mudam também as maneiras como cada um encara essas transformações. O Raul, por exemplo, dizia com orgulho que preferia ser uma metamorfose ambulante a ter aquela velha opinião formada sobre tudo. Só que ele esqueceu de mencionar que mudar, além de assustar, dói. Disso bem sabe o Zeca, que afirma que é "mais fácil mimeografar o passado do que imprimir o futuro". Sair da zona de conforto, da pupa, da sombra e da carapuça de estátua é, definitivamente, mais trabalhoso do que permanecer em inércia. Há os desbravadores, claro, como chamo aqueles que não apenas abraçam as mudanças; caçam-nas. A vertigem, o suor frio, a confusão dos sentidos e a súbita cegueira parecem não os incomodar: os "desbravadores", à semelhança dos alpinistas, amam o desafio do desconhecido. Mudar, para eles, é como acomodar-se para nós, os "exilados".

Explico-me. Alguns parágrafos acima disse que sou como a Lua, que tenho fases e metamorfoses. No entanto, tais características não são naturais para mim. Ser alguma coisa não quer dizer exatamente gostar de sê-lo. Corrijo-me, pois: aceito ser Lua; sofro metamorfoses com resignação, mas, de forma alguma, busco-as. Ao contrário, as mudanças, como os furacões, pegam-me de surpresa. Sempre. Assim, não sou apenas Lua, incertezas e estátua exposta às intempéries; sou uma Dorothy "exilada", perdida na estrada de tijolos amarelos, sem Totó e tremendo de medo do próximo tufão. O indivíduo nasce com apenas três certezas, a tríade harmônica  da sinfonia de sua existência: (i) vai viver, por um tempo limitado; (ii) vai-se modificar e transmutar inúmeras vezes durante esse intervalo, assim como o próprio ambiente que o rodeia; (iii) vai secar, murchar, cerrar os olhos e fenecer. Além disso, entre o céu e terra, abro alas para Shakespeare e suas (nossas?) vãs filosofias.

De gárgula a espreitar o desenrolar dos acontecimentos, transformei-me em personagem central de um musical. Mas, não me deixo enganar. Não fui eu quem subiu ao palco e clamou para si o papel principal. As circunstâncias, o furacão da mudança e as ondas é que o fizeram. Ocorre que a canção que, durante tempos, foi responsável por causar-me náuseas, transformou-se, à revelia de mim, na letra da minha vida; ou, pelo menos, desta fração da partitura da minha vida:


"Eu já passei
Por quase tudo nessa vida
Em matéria de guarida
Espero ainda a minha vez
Confesso que sou
De origem pobre
Mas meu coração é nobre
Foi assim que Deus me fez...

E deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Deixa a vida me levar
(Vida leva eu!)
Sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu

Só posso levantar
As mãos pro céu
Agradecer e ser fiel
Ao destino que Deus me deu
Se não tenho tudo que preciso
Com o que tenho, vivo
De mansinho lá vou eu...

Se a coisa não sai
Do jeito que eu quero
Também não me desespero
O negócio é deixar rolar
E aos trancos e barrancos
Lá vou eu!
E sou feliz e agradeço
Por tudo que Deus me deu"
Composição: Serginho Meriti

A poesia do Serginho Meriti, na voz do mais tupiniquim dos brasileiros, Zeca Pagodinho, e a bunda de biquíni paralisada num frame do vídeo acima são, bem... Um primor. Chega um momento da vida - mais cedo para uns, tardiamente para outros - em que o sujeito define o que quer ser, se não plenamente, pelo menos em seus contornos. Se você é do tipo que acredita que "definir-se é limitar-se", então é como eu: um retardatário da contra-definição: define-se não pelo que acredita querer ser, mas pelo que tem certeza do que não admitiria ser. "Deixa(r) a vida me levar", "deixa(r) o negócio rolar" e "ir de mansinho" eram tudo, menos o que eu planejara para mim. Na arrogância cega e inflexível da adolescência, quando não se é apenas mais um filho de Deus, mas um próprio deus imortal, eu acreditava que o destino, as decisões e os cursos das mudanças eram rédeas. E que estavam em minhas mãos. Confesso: preconceitos musicais à parte, pelos eriçavam-me da cabeça aos pés aos primeiros acordes de "Deixa a Vida me Levar". A vida não leva ninguém; nós levamos a vida. Certo...?

Com a adolescência vão-se as certezas absolutas e refratárias, vai-se a facilidade de se definir, esvai-se a coragem kamikaze de desbravar e ir de encontro às mudanças. Há tempos me pergunto quem leva quem, se somos rio ou canoa, ovo ou galinha. Tostines vende mais por que está sempre fresquinho ou... Exatamente. Nenhuma resposta fácil. E muito menos pronta. Hoje, sob os holofotes do palco, cega diante da platéia que, em silêncio e suspense, aguarda pela minha próxima fala, vislumbro, na última fileira do teatro, a sombra do gárgula passivo que fui. Mas, ainda assim, as mudanças conduzem-me mais do que eu a elas. Em minha frente há um longo caminho, que vai traçar uma linha divisória entre a marionete de então e o diretor de cena que espero ser. Serei? Seremos? Ou a vida continuará nos levando, no arroubo incompreensível das mudanças?

Por vezes simplesmente canso-me de planejar e de tentar me definir; geralmente dá errado. Se a vida é teatro, o improviso parece-me ser a bola da vez. E, se improvisamos, é porque alguma mudança houve no roteiro. Na história que eu pensava estar escrevendo e atuando, meus pais não envelheceriam nem seriam falíveis; eu seria uma mulher liberada, dona de si, confiante e independente; não haveria casamentos fracassados, desencontros amargurados ou decepções; a razão falaria mais alto, tão alto que calaria o ribombar incessante da minha passionalidade; a meia-idade demoraria séculos para chegar, assim como um filho; eu seria a extensão de minha família, seguindo-lhe as pegadas rumo a um destino certo. E viveria cercada de montanhas, sobre solo fértil e seguro e sob teto baixo. Se, ainda assim, tudo, absolutamente tudo desse errado, haveria até um "plano B": a fuga para as origens, para as raízes, para a terra, onde o solo não é apenas casa, mas útero. O meu "plano B" era uma fantasia doce e confortável, mas, mesmo assim, uma fantasia, uma involução, um renascer às avessas.

Ocorre que tudo, absolutamente tudo saiu diferente do planejado; até o "plano B". E, de calças na mão, no olho do furacão, mudanças de roteiro a me rodear, descobri que não havia outra rota de fuga, nenhum útero para me engolir, nenhum "plano C". O que faz o náufrago em mar aberto? Dá braçadas contra a corrente, só para se exercitar? Não, Cazuza, certamente não. Para não ser devorado pelo mar, o marujo à deriva, de olhos atentos ao barco que afunda a alguns metros dali, para sobreviver, boia. E deixa-se levar, nadando em favor das ondas, até que estas, complacentes, levem-no de volta para a praia. Exausto, sem fôlego, enregelado até os ossos. Mas, vivo.

Minha relação com o mar sempre foi conflituosa, paradoxal até. Desconfio da água, das profundezas, de sua cor mutável, da natureza adaptável dos líquidos. Água evapora e vira gás; solidifica-se e vira gelo; derrete e torna a ser água. Muda, enfim. A terra, não. Terra é constância e horizontalidade. Por isso sempre amei a terra, as montanhas e as árvores. O solo não escorre pelos dedos, nem vira nuvem; é terra e pronto. E, quando tocada pela água do orvalho ou da chuva, exala cheiro de casa, de segurança. De passado. Posso ceder aos apelos da nostalgia, mas não sou idiota. Vejo as mudanças acontecendo ao meu redor, dentro de mim, em meus anseios e temores. Assombro-me diante delas, sim, mas aceito que sou mudança.

Até pouco tempo, o mar era, para mim, uma entidade que, uma vez ao ano, visitava. Então dava-se início a minha busca por um oceano de águas mais mansas, claras e tépidas, onde pudesse me banhar, sem maiores sobressaltos: piscinas de água salobra. Eu amava aquela faixa de terra tocada pela água limitada de uma baía, onde permitia que o sol escaldasse-me a pele até a ardência máxima, a dor, o bronzeado transformador. Dois meses de mar parado e bronze dolorido eram o suficiente para que chegasse ao fim a minha relação com a água salgada da Terra. Eu dava adeus para o mar, dizia-lhe: "até o próximo verão", e voltava para o vale cercado de montanhas onde nasci. À medida que o cobre ia-me abandonando a pele, também evanesciam minhas lembranças do mar, da sua cor, da temperatura da água, do cheiro do mar.

Hoje faço morada num lugar que, além de montanhas e mata, é cercado de mar. Mar aberto, vivo, que, em dias de mau humor, fica de ressaca e lambe as calçadas distantes com suas ondas vorazes. Este foi o mais recente e relevante improviso no roteiro da minha vida: sair à rua, tomar uma lufada de brisa fresca no rosto e, mesmo sem ver o mar, sentir-lhe o cheiro de sal, a umidade. Outrora eu conhecera o mar apenas sob o céu azul de verão; hoje, debaixo do domo de chumbo do inverno, quando o vento é mais intenso e frio, o mar parece-me ainda maior, mais revolto e mais mutável. A maresia salobra continua lá. Continuam os movimentos incessantes das ondas, raspando as rochas gigantes, e o ir e vir das gaivotas; apenas as cores do cenário são diferentes, porque diversa é a estação.

O mar me ensinou que nem toda mudança é definitiva; algumas, são cíclicas: como as estações, as cores e os estados físicos da água, a temperatura da terra. E, sobretudo, o destino. Falharam-me os planos "A" e "B". As mudanças, por mim conduzidas ou não, o improviso e o mar foram o meu "plano C". Deixei-me levar pela vida, pelas ondas, pela necessidade premente de mudar e de recomeçar, de amar. A vida me trouxe a um ponto que jamais imaginei tocar e, não me restam dúvidas, há de me levar ainda mais longe. Se a coisa não sair do jeito que eu quero (ou planejo), não vou me desesperar; o jeito é deixar rolar. Com ou sem desespero, a vida vai seguir o seu curso, o rio vai desembocar no mar e as mudanças vão continuar sendo a regra do jogo, e não a exceção. Já passei por quase tudo nessa vida e, em matéria de guarida, espero ainda a minha vez. Num jorro de otimismo, arrisco dizer que já posso vislumbrá-los, o abrigo, a guarida, a duas ou três curvas adiante. Vou de mansinho, para não derrapar; sou feliz e agradeço, por tudo o que a vida, as mudanças, o destino e o (a)mar me trouxeram.

9 de julho de 2011

a(crer)ditar


FÉ (s.f.):
  • fidelidade em honrar seus compromissos, lealdade, garantia: "a fé dos tratados";
  • confiança em alguém ou em alguma coisa: "testemunha digna de fé", "ter fé no futuro";
  • crença nos dogmas de uma religião: "ter fé", "a propagação da fé";
  • crença fervorosa: "fé patriótica";
  • afirmação, comprovação: "em fé do que lhe digo(...)";
  • testemunho autêntico que certos funcionários dão por escrito: "a fé do tabelião";
  • estar de boa fé, estar convencido da verdade do que se diz;
  • estar de má fé, saber muito bem que se diz uma coisa falsa, ter intenção dolosa.

Andei lendo um livro de astrologia esses dias, nos horários vagos entre uma brochura em inglês e outra sobre ouriços e a sua elegância. Também cortei radicalmente os cabelos e os tingi de marrom "chocolate belga" (esses nomes de tinturas para cabelos beiram o risível). E tenho ouvido bastante Queen, Billy Joel e Bob Dylan. Se meu pai tivesse acesso à internet - o que, de fato, tem, embora se recuse terminantemente a usá-la - o "Expresso do Inconsciente" não estaria, definitivamente, fixado em sua barra de favoritos. O que, de certa forma, é bom porque, se soubesse que ando pesquisando sobre signos, mudando o penteado e escutando qualquer coisa se não Montenegro, Sinatra ou trilhas sonoras, meu pai certamente me enviaria um email curto, incisivo e pleno de significado: "É, Roberta, a coisa tá feia pro seu lado".

Superegos exaltados e egos em construção à parte, o livro de astrologia diferencia, no prefácio, signo solar, signo lunar e signo ascendente, além de introduzir o conceito de polaridade e idade astral. Não entendi lhufas, não porque seja uma completa iletrada em astros, mas porque, muito inteligentemente, a autora pincela os conceitos com tintas suaves, deixa um milhão de perguntas saltando das páginas e recomenda ao leitor que aprofunde seus estudos no livro da edição anterior, também de sua autoria, algo sobre as novidades em seis mil anos da astrologia. Antes de qualquer coisa, também é recomendado que o leitor contrate um astrólogo competente para lhe traçar o mapa astral - ao que me consta, é a partir deste que se sabe os tais signos solar, lunar e ascendente, além da polaridade. A preferência da autora pelos nativos de Leão e Escorpião beira a indecência. Quanto ao meu signo solar, Câncer, ela diz o mesmo blá-blá-blá astro(i)lógico de sempre: chorões, intuitivos, superprotetores, inconstantes, ou seja, os losers do zodíaco; nada que me surpreendesse de fato.

Entre uma canção de Bob Dylan, outra do Queen e umas páginas do ouriço, deparo-me com uma informação valiosa: a partir dos 40 anos, os indivíduos passam a sofrer as influências de seu signo ascendente, que se tornam, assim, predominantes. Nasci às onze da manhã de um 23 de junho nublado, em 1978, no hospital da cidade de Mendes, no estado do Rio de Janeiro. Não mamei no peito de minha mãe; naquela época, o aleitamento materno não era tão valorizado como hoje. Meu pai, que trabalhava das seis da manhã às onze da noite, só pôde ver a filha com cara de joelho e orelhas de abano dois dias depois. No hospital, fazendo companhia à minha mãe, ficou a jovem e leal Irene, minha primeira babá. Conta-se que, na primeira noite, comigo ao colo, sentada à cadeira do quarto, ela pegou no sono por breves segundos. "Conta-se" é um eufemismo cretino. Minha mãe conta essa história. Foi então, na iminência da queda de um filho de Câncer, que mamãe gritou: "Ireeene!", e a preta despertou, ficando insone cinco noites seguidas depois do susto. Alguém aí se habilita a traçar o meu mapa astral ou tais informações não bastam para que eu saiba o meu signo ascendente?

Mas não era exatamente sobre astrologia, ouriços e Bob Dylan que eu queria falar. Era sobre a tal fase dos trinta e muitos anos, quando, segundo a autora, o indivíduo realmente passa a conhecer a si mesmo, profundamente. Lembrei-me daquela máxima de Mark Twain: "A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e, gradualmente, nos aproximássemos dos 18". Fitzgerald, seu conterrâneo, gostou tanto da frase que escreveu, em 1921, um conto sobre um tal Benjamin Button, que nascia velho e morria bebê. A frase, a ideia e o próprio conceito de vida ao reverso é tão fascinante que, 87 anos depois, virariam filme, com Brad Pitt como Benjamin, e Cate Blanchett como Daisy, o amor de sua vida. A produção, inexplicavelmente, perdeu a estatueta do Oscar para um filme indiano do qual ninguém se lembra mais. Bem-vindo à pós-modernidade, aos democratas na presidência, ao casal Barack e Michelle e à necessidade de expiação que os americanos sentem junto aos países em desenvolvimento. Consolam-me os festivais de Cannes e Toronto.

Mais do que fã incondicional do conto de Fitzgerald e do filme de David Fincher, compartilho integralmente da ideia tresloucada, ainda que prenhe de lirismo, de Mark Twain. Quem nasce velho, não morre; rejuvenesce. E a vida, assim, seria infinitamente mais feliz porque, dotados de sabedoria, paciência e auto-conhecimento, adentraríamos a juventude lisos de rugas, plenos de vitalidade e alegria e, o mais importante, sem cometer os inevitáveis erros de quem nasce jovem, inexperiente, estúpido e inconsciente de si, com uma longa estrada de trancos e barrancos a frente para envelhecer como maracujás de gaveta. Genial. Uma ideia impossível, claro, mas absolutamente cativante. O conto de Fitzgerald não tem nada de romântico: o tom é de humor negro, até porque Benjamin morre como um bebê de colo, desdentado, de fraldas e desprovido da habilidade da fala. Em Twain, ao contrário, o limite para a morte é o auge da juventude, 18 anos de amor, sonhos e felicidade: a perfeição, o ideal incognoscível. No filme de 2008, Benjamin fica aos cuidados de Daisy, igualmente frágil com as conseqüências do envelhecimento: dentes que caem, incontinência urinária, dificuldade para caminhar, perda de memória, introspecção e pouco a dizer. Não é por acaso que a sabedoria popular afirma que, na velhice, voltamos a ser bebês.

Clichês como: "o bom da maturidade é que aprendemos quem somos" ou: "a beleza em envelhecer é aprender a gostar de si mesmo" aborrecem-me ao extremo. Qual é a vantagem de viver 40, 50, 60 anos dando murro em ponta de faca, levando topadas e caindo de barrancos para, só então, atingir o nirvana do auto-conhecimento, com pés-de-galinha a esconder os olhos sem brilho, papadas no queixo, pálpebras flácidas, braços em pelancas, músculos atrofiados, artrose, hormônios e cabelos em queda livre, "vista cansada", impotência, infertilidade, bigode-chinês, narizes maiores e estatura menor? Ora, entusiastas do envelhecimento, me poupem. Aos trinta e alguns, com injeções de toxina botulínica para amenizar as rugas, tretinoína e ácido retinóico para acelerar a produção de colágeno e antioxidantes para, inutilmente, retardar o envelhecimento celular, eu ainda mal me conheço. Nem sei ao certo se gosto desta que, de fato, não sei quem sou. Quantas portas ainda terei que abrir, entrar, sair e fechar, quantos desamores, dissabores e derrotas ainda terei que amargar, quantas rugas ainda terei que colecionar para descobrir do que gosto, a que vim, para aonde meus passos me levam...?

Tem gente que afirma não saber o que quer, mas que tem certeza absoluta do que NÃO quer. Sou assim grande parte do tempo, mas, confesso, no torvelinho de águas onde busco chão, ultimamente tem sido um desafio distinguir o querer do não querer. Penso que, talvez, o que eu queira seja exatamente aquilo que não deveria desejar. Ou, quem sabe, toda essa dúvida seja culpa do meu signo ascendente, que começa a se sobrepor ao solar. Na contrapartida, há os que definem e sabem o que querem desde muito cedo, vislumbrando seus horizontes e traçando seus caminhos sem demais percalços, envelhecendo tão naturalmente quanto se é esperado. Coincidência ou não, tenho conhecido ou ouvido histórias de um bom número de pessoas que, aos trinta e muitos ou quarenta e poucos, decidem mudar radicalmente o rumo de suas vidas: engenheiros que se tornam taxistas; advogados que viram fotógrafos; jornalistas que abraçam a jardinagem; professores que fazem concurso público para juristas; comerciantes que viram mães full time. De alguma forma muito esotérica, paira sobre mim a certeza de que mudanças assim são fruto da busca por um par de alelos que se encaixam como peças de um quebra-cabeça: a felicidade e a juventude.

Envelhecer não me apetece. Mas, e daí? Contra o tempo e suas inexoráveis marcas - nas linhas do rosto e nas da alma - não há armas, apenas patéticos paliativos. Eu gostaria realmente de acreditar que envelhecer equivale a amadurecer e que, dessa forma, o auto-conhecimento sobrepujaria as dúvidas, os limites e os labirintos. Mas tal crença inexiste em mim. Canso-me de ver gente envelhecida - o que é diferente de velho, idoso ou maduro - aos vinte e muitos ou, o que é mais estrambótico, gente de cinquenta e tantos, com rugas ou não, boiando em beócia imaturidade. Por isso a frase de Twain faz sentido. Ela combina dois desejos humanos primais e, no entanto, inacessíveis, justamente por não se sobreporem na linha do tempo: a maturidade da vetustez e o frescor da juventude.

Recentemente descobri algo muito estável em meu universo limitado de desejos: qualquer mínimo detalhe de minhas trajetórias deve estar ensopado de fé. Não falo de fé religiosa, patriótica ou dogmática. Falo de fé no sentido de acreditar nos valores e resultados do que faço, dos relacionamentos que abarco, das profissões que exerço, das casas onde moro, dos castelos que construo. Quando não acredito no valor intrínseco do mundo ao qual me circunscrevo, ele desaparece, inexiste, evapora como éter. Fé, para mim, equivale ao montante de entrega, comprometimento e gás que são o motor propulsor das atividades que inicio: práticas, subjetivas, fraternais, maternais, filiais, amorosas. Quando cessa a minha fé, quando deixo de a(crer)ditar, tudo em mim murcha e carece de sentido; perco o chão; esvão-me dos olhos o brilho e a identidade; escorre-me pelos dedos a essência sobre a qual tento escrever minha história; torno-me uma casca oca. Envelheço. E, imatura e velha, vejo a vida passar diante de meus olhos baços, sem viver. Porque, para mim, viver é acreditar. À propósito: minha mãe é de Aquário; meu pai, de Escorpião; Irene, minha primeira babá, de Sagitário; Kafka era de Câncer; Chaplin, de Áries; Fitzgerald, de Libra; Obama é de Leão; David Fincher, de Virgem. E Freud, que não tem nada com isso, de Touro.                      

8 de julho de 2011

cansaço



"Tudo o que eu pensei saber ainda é mistério
qual é a relação de Crato lá com New Orleans?
a chave do amor é uma risada ou é um jeito sério?
é singular o fecho todo ou já são vários fins?
é sempre o mesmo Deus ou troca como um Ministério?
é sempre a mesma afirmação ou já são vários sins?
é cheia a taça da paixão ou é um rio estéril?
são sete demos musicais ou doze querubins?
se a vida continua ou não ainda é mistério
o ciclo começa por onde: noite ou manhã?
o barco do destino é uma prisão ou é um grande império?
quem é que descerá dos céus nos braços de Tupã?
é sempre o mesmo Deus ou troca como um Ministério?
depois que a gente já mentiu a coisa ainda é sã?
a sorte é uma abstração, o azar é um mistério
e Deus frequenta a arquibancada do Maracanã..."
Oswaldo Montenegro - "Mistérios"

Por vezes me canso. É cansaço demais para mim, um balão de ar quente que, vazio, não pode levitar, nem soprar calor para aplacar o frio dos passageiros. Pessoas são balões, soprando umas dentro das outras, através de palavras e afeto, para manter o gás, os laços e o lastro. Até o silêncio - daqueles que preenchem os vãos e dão voz ao inconsciente - é gás. No entanto, canso-me de ver, estampados nos rostos dos meus balonistas, o tédio, os óculos escuros e os traços indeléveis do homo sapiens blasé, pós-moderno, que sabe de tudo um pouco e sente um pouco de nada. Para o balão, o placar é o seguinte: azar no jogo; azar no amor; azar nas escolhas. Acaso ou descaso? E já dizia o poeta: "a sorte é uma abstração; o azar é um mistério."

Aviso aos navegantes: balões murcham ou estouram quando não reabastecidos; trens não passam de cargueiros, circulando pelas mesmas estações e conduzindo passageiros ociosos demais para enxergar a paisagem; caravelas são valentes embarcações, mas geralmente naufragam sem um tripulante sequer para, da proa, atirar uma boia ao capitão. Resumo da ópera: no jogo, no amor e nas escolhas, seja um passageiro, e nunca o condutor. Estar de passagem é mais conveniente, mais econômico, menos doloroso e mais fácil de se desapegar: basta não entrar no balão, num vagão ou na barca. Ou, ainda, desembarcar à francesa, na estação mais oportuna entre o encontro e a perda. Arriscando-se menos, há menores chances de sucesso, é verdade, mas, igualmente, menores chances de fracasso. Ao condutor, restam o gás, o motor, o leme, as viagens e a entrega: tudo é mais cansativo e arriscado, e o apego ao transporte, ou melhor, ao passageiro, é inquebrantável. E já dizia o sábio do transporte público: "na vida, tudo é passageiro. Menos o motorista". E então, cara-pálida? Vais ou ficas?   

7 de julho de 2011

de inverno e árvores

Para minha mãe.


Era noite e estava frio. Frio demais, vindo de fora e explodindo por dentro. Não sei se os demais convivas sentiam os ossos enregelados como eu. Talvez não. Certamente, não. O frio é daquelas sensações que terapeutas recém-empregados gostam de denominar "psicossomáticas". Quem sabe têm razão. Possivelmente. Hoje ainda faz frio e chove; ouço buzinas, vejo o chumbo dos dias e uma andorinha imóvel, pousada na antena do prédio em frente. Olho as nuvens, os pingos, a andorinha muda e os guarda-chuvas ambulantes e percebo que sou muitas dúvidas plenas e escassas certezas. À noite, quando o inverno entrou-me no peito como através de uma precisa incisão cirúrgica, fiz contato com a minha casa: esta que é o porto para onde volto quando o mar está de ressaca e sente fome; um apetite voraz por náufragos, inexperientes navegantes. Para não ser engolida, volto ao cais. Não sou apenas dúvidas; sou o eterno e doloroso retorno, até que o cansaço seja maior que a esperança e eu, eventualmente, desista, no meio do caminho.

Era noite, estava frio e, em meio a risos, comentários e piadas que eu não compreendia, senti-me absurdamente só, num deserto de gelo siberiano. Fechei os olhos, cerrei os punhos sob a mesa e engoli a seco as lágrimas, tão doridas quanto o retorno, a esperança e o cansaço.  Um aniversário a celebrar numa rua de nome pleno de significado: Fonte da Saudade. Sempre busquei a fonte da juventude, a fonte da sabedoria, a fonte da riqueza. Por buscá-las, entende-se que não existem: o Santo Graal da modernidade. Por alguma razão desconexa, busca-se apenas o que é inatingível, impossível, inexistente. Ninguém busca o que está ao seu lado ou a sua espera; do contrário, não haveria "a busca", essa entidade que, mais perniciosa que a esperança, promove e sustenta o eterno retorno. Buscamos a felicidade, o sucesso, a perfeição, o amor verdadeiro, uma posição de considerável status social, o labor sustentável, a plenitude, a casa dos sonhos, uma vida de sonhos. E porque buscamos o graal, a roda gigante do mundo não pára, não quebra, não despenca. Não sou apenas dúvidas e busca; sou uma preá de olhos cegos, inconsciente de si, a girar estupidamente em seu carrossel, enquanto busca pela recompensa por ser um espécime tão dedicado, domesticado e previsível.

Em minha gaiola, girando um carrossel grande demais para a preá diminuta que sou, eu sentia frio e estava só. "Fonte da Saudade", era o nome da rua, uma alameda arborizada, margeada pela Lagoa. Saudade não é busca, nem cálice sagrado. Ela preexiste e jamais prescreve. Penso que a inspiração para nomear aquela rua possa ter nascido de uma fonte borbulhante e perene de nostalgia e saudosismo. Nomes são mágicos. Se a rua se chamasse "Fonte de Saudade", o sentido e o peso das palavras seriam outros. Se você morasse numa fonte de saudade, sua vida seria uma fita-cassete, projetando suas realizações - sucessos e derrotas - de trás para frente. Numa fonte de saudade brotam suspiros melancólicos, de uma saudade doída que não tem remédio, nem cura. Mas, na Fonte da Saudade, os moradores nascem, vivem, mudam-se, modificam-se e suspiram leves, aliviados do peso morto de um passado que, por definição, é história. Dizem que há saudade boa e saudade ruim. Quem deu àquela rua um nome tão único entre tantos e impessoais nomes de políticos, artistas e coronéis, certamente acredita na saudade boa, no retorno que não é maldito nem eterno e na busca que é possível.

Na Fonte da Saudade, fiz contato com o porto. Para não ser engolida pela fome do mar; para escapar do frio e da sensação de oco no peito; para retornar, ainda que por um sopro da alma; por saudade. A quilômetros, ouvi a voz da capitã de um cargueiro colossal, que enfrenta ondas mortais com a mesma facilidade com a qual abro uma sombrinha sob a garoa leve, quase de mentira, de julho. Ela me diz: "dê a quem você ama asas para voar, raízes para voltar e motivos para ficar". Há dez meses - pouco mais de uma gestação - quis tatuar nas costas um ipê. A vontade, como a busca, cessou. Mas a árvore em mim, tronco enviesado, folhagem mutável e raízes profundas, ainda respira, um ronco baixo, que retumba e ressoa no tum-tum de um coração de saudades, esperança e caminhadas. Recentemente podei muitos galhos: "a tesoura do desejo, do desejo mesmo de mudar" cortou-me os cabelos que eu havia deixado crescer por dois anos. Lembro-me das palavras de meu avô, que dizia ser preciso aparar certos ramos para fortalecer a árvore. Cabeleireiros afirmam o mesmo, e ainda associam o crescimento das madeixas às fases da Lua. Cabelos, tal como galhos desbastados, crescem novamente. Não sei se mais fortes. Provavelmente, sim. Prouvera à Lua, aos deuses e à coragem que sim.

Árvores não voam; têm raízes profundas demais. E as raízes, segundo a capitã, fazem-nos voltar. Pássaros voam. Mas dificilmente permanecem ou retornam, a não ser que estejam engaiolados onde, como as preás, viverão em proteção confortável, beliscando fatias de laranja e jiló e enchendo os papos com sementes de girassol e alpiste. A vida não é feita apenas de buscas, mas fundamentalmente de costumes. Até os pássaros se habituam às gaiolas e, vez ou outra, cantam lá de dentro. Assim como árvores habituam-se às raízes, vivendo centenas de anos no mesmo metro quadrado de terra onde suas sementes vingaram. Valéry dizia que toda a gente precisa ser leve como um pássaro, mas não como uma pluma. É compreensível: muitas plumas fazem uma ave que decide para aonde voar ou migrar. Por outro lado, uma única pluma não alça voo, mas é levada ao sabor do vento. Plumas, preás, pássaros engaiolados: todos sujeitos passivos de destinos cujo controle lhes escapa.

Para mim, que sou árvore, voar é um desafio, mas não necessariamente um desejo. Na Fonte da Saudade, as palavras da capitã sinalizaram-me que, a quem se ama, é preciso permitir voar. Ocorre que ninguém vive apenas de brisa, literalmente: sem raízes - ou porto - não há árvore que se firme o suficiente para crescer, perdurar e viajar pelo vento através de suas folhas e sementes. Enraizar é preciso. Voar é recomendável. Mas, construir e ter motivos para ficar, cá ou lá, é fundamental. Entretanto, palavras são mágicas, principalmente se você souber ouvir o que têm a dizer e brincar com elas. Na palavra "árvore" cabe o verbo "voar"; para isso, basta-me acrescentar uma letra "a" no local mais apropriado: árvo(a)re. Acrescento um "n" e a palavra soa ainda melhor: arvonar. Neologismo elegante, este. Parece até verbo conjugado em latim: arvonare, arvonaris, arvonatur, arvonamur, arvonamini, arvonantur. Arvonare, ergo sum

De certa forma, árvores voam, sim, através de sementes levadas nas asas e nos bicos de pássaros. Ao dente-de-leão, essa plantinha rasteira que colore o pasto de amarelo ou branco, bastam a mais leve brisa ou o sopro de uma criança peralta para que as suas sementes se despreguem do caule e voem como pára-quedas. Na caatinga nordestina, onde a seca faz de cactus espinhosos fonte d'água, o dente-de-leão tem um nome mais bonito: esperança. Quando a chuva tarda a chegar para matar a sede da terra, do gado e do mato, a gente igualmente sedenta de água e de vida da caatinga diz assim: "abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa, trazida pelo vento da tarde". Ou pelo sopro de um menino. Eu disse que os nomes são mágicos. E, no caso da esperança - flor ou sentimento - são mais do que magia: são poesia. Quero ser dente-de-leão. Talvez esta seja a única certeza que encerro, no solo incerto onde tento fincar raízes.  

1 de julho de 2011

(nem) tudo tem explicação

Quando o blog de alguém que é escritor por natureza, paixão e essência - mas não por profissão, o que é facilmente presumível - fica mais parado e abandonado do que poça d'água em beira de estrada, das duas, uma: (i) a inspiração acenou-lhe um elegante adeus, fez as malas e comprou uma passagem de ida (e volta...?) para a Sibéria; (ii) a vida real do escritor, aquela que, de tão plausível, fica a milímetros de um toque, tem andado mais movimentada do que trem de metrô às seis da tarde. O problema entre a inspiração e a realidade é apenas um vagão desse trem: o tempo.