9 de julho de 2011

a(crer)ditar


FÉ (s.f.):
  • fidelidade em honrar seus compromissos, lealdade, garantia: "a fé dos tratados";
  • confiança em alguém ou em alguma coisa: "testemunha digna de fé", "ter fé no futuro";
  • crença nos dogmas de uma religião: "ter fé", "a propagação da fé";
  • crença fervorosa: "fé patriótica";
  • afirmação, comprovação: "em fé do que lhe digo(...)";
  • testemunho autêntico que certos funcionários dão por escrito: "a fé do tabelião";
  • estar de boa fé, estar convencido da verdade do que se diz;
  • estar de má fé, saber muito bem que se diz uma coisa falsa, ter intenção dolosa.

Andei lendo um livro de astrologia esses dias, nos horários vagos entre uma brochura em inglês e outra sobre ouriços e a sua elegância. Também cortei radicalmente os cabelos e os tingi de marrom "chocolate belga" (esses nomes de tinturas para cabelos beiram o risível). E tenho ouvido bastante Queen, Billy Joel e Bob Dylan. Se meu pai tivesse acesso à internet - o que, de fato, tem, embora se recuse terminantemente a usá-la - o "Expresso do Inconsciente" não estaria, definitivamente, fixado em sua barra de favoritos. O que, de certa forma, é bom porque, se soubesse que ando pesquisando sobre signos, mudando o penteado e escutando qualquer coisa se não Montenegro, Sinatra ou trilhas sonoras, meu pai certamente me enviaria um email curto, incisivo e pleno de significado: "É, Roberta, a coisa tá feia pro seu lado".

Superegos exaltados e egos em construção à parte, o livro de astrologia diferencia, no prefácio, signo solar, signo lunar e signo ascendente, além de introduzir o conceito de polaridade e idade astral. Não entendi lhufas, não porque seja uma completa iletrada em astros, mas porque, muito inteligentemente, a autora pincela os conceitos com tintas suaves, deixa um milhão de perguntas saltando das páginas e recomenda ao leitor que aprofunde seus estudos no livro da edição anterior, também de sua autoria, algo sobre as novidades em seis mil anos da astrologia. Antes de qualquer coisa, também é recomendado que o leitor contrate um astrólogo competente para lhe traçar o mapa astral - ao que me consta, é a partir deste que se sabe os tais signos solar, lunar e ascendente, além da polaridade. A preferência da autora pelos nativos de Leão e Escorpião beira a indecência. Quanto ao meu signo solar, Câncer, ela diz o mesmo blá-blá-blá astro(i)lógico de sempre: chorões, intuitivos, superprotetores, inconstantes, ou seja, os losers do zodíaco; nada que me surpreendesse de fato.

Entre uma canção de Bob Dylan, outra do Queen e umas páginas do ouriço, deparo-me com uma informação valiosa: a partir dos 40 anos, os indivíduos passam a sofrer as influências de seu signo ascendente, que se tornam, assim, predominantes. Nasci às onze da manhã de um 23 de junho nublado, em 1978, no hospital da cidade de Mendes, no estado do Rio de Janeiro. Não mamei no peito de minha mãe; naquela época, o aleitamento materno não era tão valorizado como hoje. Meu pai, que trabalhava das seis da manhã às onze da noite, só pôde ver a filha com cara de joelho e orelhas de abano dois dias depois. No hospital, fazendo companhia à minha mãe, ficou a jovem e leal Irene, minha primeira babá. Conta-se que, na primeira noite, comigo ao colo, sentada à cadeira do quarto, ela pegou no sono por breves segundos. "Conta-se" é um eufemismo cretino. Minha mãe conta essa história. Foi então, na iminência da queda de um filho de Câncer, que mamãe gritou: "Ireeene!", e a preta despertou, ficando insone cinco noites seguidas depois do susto. Alguém aí se habilita a traçar o meu mapa astral ou tais informações não bastam para que eu saiba o meu signo ascendente?

Mas não era exatamente sobre astrologia, ouriços e Bob Dylan que eu queria falar. Era sobre a tal fase dos trinta e muitos anos, quando, segundo a autora, o indivíduo realmente passa a conhecer a si mesmo, profundamente. Lembrei-me daquela máxima de Mark Twain: "A vida seria infinitamente mais feliz se pudéssemos nascer aos 80 anos e, gradualmente, nos aproximássemos dos 18". Fitzgerald, seu conterrâneo, gostou tanto da frase que escreveu, em 1921, um conto sobre um tal Benjamin Button, que nascia velho e morria bebê. A frase, a ideia e o próprio conceito de vida ao reverso é tão fascinante que, 87 anos depois, virariam filme, com Brad Pitt como Benjamin, e Cate Blanchett como Daisy, o amor de sua vida. A produção, inexplicavelmente, perdeu a estatueta do Oscar para um filme indiano do qual ninguém se lembra mais. Bem-vindo à pós-modernidade, aos democratas na presidência, ao casal Barack e Michelle e à necessidade de expiação que os americanos sentem junto aos países em desenvolvimento. Consolam-me os festivais de Cannes e Toronto.

Mais do que fã incondicional do conto de Fitzgerald e do filme de David Fincher, compartilho integralmente da ideia tresloucada, ainda que prenhe de lirismo, de Mark Twain. Quem nasce velho, não morre; rejuvenesce. E a vida, assim, seria infinitamente mais feliz porque, dotados de sabedoria, paciência e auto-conhecimento, adentraríamos a juventude lisos de rugas, plenos de vitalidade e alegria e, o mais importante, sem cometer os inevitáveis erros de quem nasce jovem, inexperiente, estúpido e inconsciente de si, com uma longa estrada de trancos e barrancos a frente para envelhecer como maracujás de gaveta. Genial. Uma ideia impossível, claro, mas absolutamente cativante. O conto de Fitzgerald não tem nada de romântico: o tom é de humor negro, até porque Benjamin morre como um bebê de colo, desdentado, de fraldas e desprovido da habilidade da fala. Em Twain, ao contrário, o limite para a morte é o auge da juventude, 18 anos de amor, sonhos e felicidade: a perfeição, o ideal incognoscível. No filme de 2008, Benjamin fica aos cuidados de Daisy, igualmente frágil com as conseqüências do envelhecimento: dentes que caem, incontinência urinária, dificuldade para caminhar, perda de memória, introspecção e pouco a dizer. Não é por acaso que a sabedoria popular afirma que, na velhice, voltamos a ser bebês.

Clichês como: "o bom da maturidade é que aprendemos quem somos" ou: "a beleza em envelhecer é aprender a gostar de si mesmo" aborrecem-me ao extremo. Qual é a vantagem de viver 40, 50, 60 anos dando murro em ponta de faca, levando topadas e caindo de barrancos para, só então, atingir o nirvana do auto-conhecimento, com pés-de-galinha a esconder os olhos sem brilho, papadas no queixo, pálpebras flácidas, braços em pelancas, músculos atrofiados, artrose, hormônios e cabelos em queda livre, "vista cansada", impotência, infertilidade, bigode-chinês, narizes maiores e estatura menor? Ora, entusiastas do envelhecimento, me poupem. Aos trinta e alguns, com injeções de toxina botulínica para amenizar as rugas, tretinoína e ácido retinóico para acelerar a produção de colágeno e antioxidantes para, inutilmente, retardar o envelhecimento celular, eu ainda mal me conheço. Nem sei ao certo se gosto desta que, de fato, não sei quem sou. Quantas portas ainda terei que abrir, entrar, sair e fechar, quantos desamores, dissabores e derrotas ainda terei que amargar, quantas rugas ainda terei que colecionar para descobrir do que gosto, a que vim, para aonde meus passos me levam...?

Tem gente que afirma não saber o que quer, mas que tem certeza absoluta do que NÃO quer. Sou assim grande parte do tempo, mas, confesso, no torvelinho de águas onde busco chão, ultimamente tem sido um desafio distinguir o querer do não querer. Penso que, talvez, o que eu queira seja exatamente aquilo que não deveria desejar. Ou, quem sabe, toda essa dúvida seja culpa do meu signo ascendente, que começa a se sobrepor ao solar. Na contrapartida, há os que definem e sabem o que querem desde muito cedo, vislumbrando seus horizontes e traçando seus caminhos sem demais percalços, envelhecendo tão naturalmente quanto se é esperado. Coincidência ou não, tenho conhecido ou ouvido histórias de um bom número de pessoas que, aos trinta e muitos ou quarenta e poucos, decidem mudar radicalmente o rumo de suas vidas: engenheiros que se tornam taxistas; advogados que viram fotógrafos; jornalistas que abraçam a jardinagem; professores que fazem concurso público para juristas; comerciantes que viram mães full time. De alguma forma muito esotérica, paira sobre mim a certeza de que mudanças assim são fruto da busca por um par de alelos que se encaixam como peças de um quebra-cabeça: a felicidade e a juventude.

Envelhecer não me apetece. Mas, e daí? Contra o tempo e suas inexoráveis marcas - nas linhas do rosto e nas da alma - não há armas, apenas patéticos paliativos. Eu gostaria realmente de acreditar que envelhecer equivale a amadurecer e que, dessa forma, o auto-conhecimento sobrepujaria as dúvidas, os limites e os labirintos. Mas tal crença inexiste em mim. Canso-me de ver gente envelhecida - o que é diferente de velho, idoso ou maduro - aos vinte e muitos ou, o que é mais estrambótico, gente de cinquenta e tantos, com rugas ou não, boiando em beócia imaturidade. Por isso a frase de Twain faz sentido. Ela combina dois desejos humanos primais e, no entanto, inacessíveis, justamente por não se sobreporem na linha do tempo: a maturidade da vetustez e o frescor da juventude.

Recentemente descobri algo muito estável em meu universo limitado de desejos: qualquer mínimo detalhe de minhas trajetórias deve estar ensopado de fé. Não falo de fé religiosa, patriótica ou dogmática. Falo de fé no sentido de acreditar nos valores e resultados do que faço, dos relacionamentos que abarco, das profissões que exerço, das casas onde moro, dos castelos que construo. Quando não acredito no valor intrínseco do mundo ao qual me circunscrevo, ele desaparece, inexiste, evapora como éter. Fé, para mim, equivale ao montante de entrega, comprometimento e gás que são o motor propulsor das atividades que inicio: práticas, subjetivas, fraternais, maternais, filiais, amorosas. Quando cessa a minha fé, quando deixo de a(crer)ditar, tudo em mim murcha e carece de sentido; perco o chão; esvão-me dos olhos o brilho e a identidade; escorre-me pelos dedos a essência sobre a qual tento escrever minha história; torno-me uma casca oca. Envelheço. E, imatura e velha, vejo a vida passar diante de meus olhos baços, sem viver. Porque, para mim, viver é acreditar. À propósito: minha mãe é de Aquário; meu pai, de Escorpião; Irene, minha primeira babá, de Sagitário; Kafka era de Câncer; Chaplin, de Áries; Fitzgerald, de Libra; Obama é de Leão; David Fincher, de Virgem. E Freud, que não tem nada com isso, de Touro.                      

6 comentários:

  1. Oi Roberta,
    Hoje me perdi no meio de tantas coisas que escreveu...Astros, fé, maturidade, velhice...
    Percebo sua indignação por um ter que envelhecer, mas o que podemos fazer a não ser viver cada momento, esperando que não seja o último. Vc comenta no texto que qual a vantagem de viver 40, 50, 60 anos, dando murros em ponta de faca, caindo... Eu não concordo com o que diz, a impressão que dá é que o mundo acaba quando se chega a uma "certa idade", só pq não se tem mais a pele maravilhosa, o bumbum empinado, uma noite de sexo selvagem. rsrs..
    A vida é mais que isso, é perceber as coisas ao seu redor, é ver o mundo, é saber conviver com mudanças, sem sofrimento. Talvez isso seja a fé e a maturidade. Ah! E eu também não tenho nada com isso e sou do Signo de Aquário (por sinal o melhor do zodiaco).. rsrs..
    Beijo e Boa noite
    Cirlene Idalgo

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  2. Você está mais do que certa, minha amiga. Saber envelhecer, com a juventude preservada na alma, é que o segredo. Pensar que a vida "acaba numa certa idade" é um estado de melancolia no qual uma pessoa não lucra nada estando. Adorei o seu comentário. E, viu só? Com uma cabeça como a sua, só podia mesmo ser de Aquário! (...rs) Beijos!

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  3. Nem me fala Roberta, não é que sempre me dizem isso.rsrsr.. Cabeça de Aquariana é diferente.
    Já estou curtindo o Expresso no Facebook.
    Ótima semana pra você.
    Beijo!

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  4. Obrigada, minha linda! Beijo grande para você!

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  5. Gabi Becker8.5.12

    Ai ai guria, acho que somos irmas de alma, ou é o nosso signo mesmo que nos iguala como forma de pensamento, vontades, medos e necessidades....vim te procurar, senti falta das tuas palavras... baci nel cuore!

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    1. Minha irmã de alma... Como ainda não nos encontramos, guria linda? Saudade de ter tempo para escrever. Ultimamente só engulo tudo, sem digerir nem escrever. Eita, vida! Baci, carissima.

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