7 de julho de 2011

de inverno e árvores

Para minha mãe.


Era noite e estava frio. Frio demais, vindo de fora e explodindo por dentro. Não sei se os demais convivas sentiam os ossos enregelados como eu. Talvez não. Certamente, não. O frio é daquelas sensações que terapeutas recém-empregados gostam de denominar "psicossomáticas". Quem sabe têm razão. Possivelmente. Hoje ainda faz frio e chove; ouço buzinas, vejo o chumbo dos dias e uma andorinha imóvel, pousada na antena do prédio em frente. Olho as nuvens, os pingos, a andorinha muda e os guarda-chuvas ambulantes e percebo que sou muitas dúvidas plenas e escassas certezas. À noite, quando o inverno entrou-me no peito como através de uma precisa incisão cirúrgica, fiz contato com a minha casa: esta que é o porto para onde volto quando o mar está de ressaca e sente fome; um apetite voraz por náufragos, inexperientes navegantes. Para não ser engolida, volto ao cais. Não sou apenas dúvidas; sou o eterno e doloroso retorno, até que o cansaço seja maior que a esperança e eu, eventualmente, desista, no meio do caminho.

Era noite, estava frio e, em meio a risos, comentários e piadas que eu não compreendia, senti-me absurdamente só, num deserto de gelo siberiano. Fechei os olhos, cerrei os punhos sob a mesa e engoli a seco as lágrimas, tão doridas quanto o retorno, a esperança e o cansaço.  Um aniversário a celebrar numa rua de nome pleno de significado: Fonte da Saudade. Sempre busquei a fonte da juventude, a fonte da sabedoria, a fonte da riqueza. Por buscá-las, entende-se que não existem: o Santo Graal da modernidade. Por alguma razão desconexa, busca-se apenas o que é inatingível, impossível, inexistente. Ninguém busca o que está ao seu lado ou a sua espera; do contrário, não haveria "a busca", essa entidade que, mais perniciosa que a esperança, promove e sustenta o eterno retorno. Buscamos a felicidade, o sucesso, a perfeição, o amor verdadeiro, uma posição de considerável status social, o labor sustentável, a plenitude, a casa dos sonhos, uma vida de sonhos. E porque buscamos o graal, a roda gigante do mundo não pára, não quebra, não despenca. Não sou apenas dúvidas e busca; sou uma preá de olhos cegos, inconsciente de si, a girar estupidamente em seu carrossel, enquanto busca pela recompensa por ser um espécime tão dedicado, domesticado e previsível.

Em minha gaiola, girando um carrossel grande demais para a preá diminuta que sou, eu sentia frio e estava só. "Fonte da Saudade", era o nome da rua, uma alameda arborizada, margeada pela Lagoa. Saudade não é busca, nem cálice sagrado. Ela preexiste e jamais prescreve. Penso que a inspiração para nomear aquela rua possa ter nascido de uma fonte borbulhante e perene de nostalgia e saudosismo. Nomes são mágicos. Se a rua se chamasse "Fonte de Saudade", o sentido e o peso das palavras seriam outros. Se você morasse numa fonte de saudade, sua vida seria uma fita-cassete, projetando suas realizações - sucessos e derrotas - de trás para frente. Numa fonte de saudade brotam suspiros melancólicos, de uma saudade doída que não tem remédio, nem cura. Mas, na Fonte da Saudade, os moradores nascem, vivem, mudam-se, modificam-se e suspiram leves, aliviados do peso morto de um passado que, por definição, é história. Dizem que há saudade boa e saudade ruim. Quem deu àquela rua um nome tão único entre tantos e impessoais nomes de políticos, artistas e coronéis, certamente acredita na saudade boa, no retorno que não é maldito nem eterno e na busca que é possível.

Na Fonte da Saudade, fiz contato com o porto. Para não ser engolida pela fome do mar; para escapar do frio e da sensação de oco no peito; para retornar, ainda que por um sopro da alma; por saudade. A quilômetros, ouvi a voz da capitã de um cargueiro colossal, que enfrenta ondas mortais com a mesma facilidade com a qual abro uma sombrinha sob a garoa leve, quase de mentira, de julho. Ela me diz: "dê a quem você ama asas para voar, raízes para voltar e motivos para ficar". Há dez meses - pouco mais de uma gestação - quis tatuar nas costas um ipê. A vontade, como a busca, cessou. Mas a árvore em mim, tronco enviesado, folhagem mutável e raízes profundas, ainda respira, um ronco baixo, que retumba e ressoa no tum-tum de um coração de saudades, esperança e caminhadas. Recentemente podei muitos galhos: "a tesoura do desejo, do desejo mesmo de mudar" cortou-me os cabelos que eu havia deixado crescer por dois anos. Lembro-me das palavras de meu avô, que dizia ser preciso aparar certos ramos para fortalecer a árvore. Cabeleireiros afirmam o mesmo, e ainda associam o crescimento das madeixas às fases da Lua. Cabelos, tal como galhos desbastados, crescem novamente. Não sei se mais fortes. Provavelmente, sim. Prouvera à Lua, aos deuses e à coragem que sim.

Árvores não voam; têm raízes profundas demais. E as raízes, segundo a capitã, fazem-nos voltar. Pássaros voam. Mas dificilmente permanecem ou retornam, a não ser que estejam engaiolados onde, como as preás, viverão em proteção confortável, beliscando fatias de laranja e jiló e enchendo os papos com sementes de girassol e alpiste. A vida não é feita apenas de buscas, mas fundamentalmente de costumes. Até os pássaros se habituam às gaiolas e, vez ou outra, cantam lá de dentro. Assim como árvores habituam-se às raízes, vivendo centenas de anos no mesmo metro quadrado de terra onde suas sementes vingaram. Valéry dizia que toda a gente precisa ser leve como um pássaro, mas não como uma pluma. É compreensível: muitas plumas fazem uma ave que decide para aonde voar ou migrar. Por outro lado, uma única pluma não alça voo, mas é levada ao sabor do vento. Plumas, preás, pássaros engaiolados: todos sujeitos passivos de destinos cujo controle lhes escapa.

Para mim, que sou árvore, voar é um desafio, mas não necessariamente um desejo. Na Fonte da Saudade, as palavras da capitã sinalizaram-me que, a quem se ama, é preciso permitir voar. Ocorre que ninguém vive apenas de brisa, literalmente: sem raízes - ou porto - não há árvore que se firme o suficiente para crescer, perdurar e viajar pelo vento através de suas folhas e sementes. Enraizar é preciso. Voar é recomendável. Mas, construir e ter motivos para ficar, cá ou lá, é fundamental. Entretanto, palavras são mágicas, principalmente se você souber ouvir o que têm a dizer e brincar com elas. Na palavra "árvore" cabe o verbo "voar"; para isso, basta-me acrescentar uma letra "a" no local mais apropriado: árvo(a)re. Acrescento um "n" e a palavra soa ainda melhor: arvonar. Neologismo elegante, este. Parece até verbo conjugado em latim: arvonare, arvonaris, arvonatur, arvonamur, arvonamini, arvonantur. Arvonare, ergo sum

De certa forma, árvores voam, sim, através de sementes levadas nas asas e nos bicos de pássaros. Ao dente-de-leão, essa plantinha rasteira que colore o pasto de amarelo ou branco, bastam a mais leve brisa ou o sopro de uma criança peralta para que as suas sementes se despreguem do caule e voem como pára-quedas. Na caatinga nordestina, onde a seca faz de cactus espinhosos fonte d'água, o dente-de-leão tem um nome mais bonito: esperança. Quando a chuva tarda a chegar para matar a sede da terra, do gado e do mato, a gente igualmente sedenta de água e de vida da caatinga diz assim: "abre as janelas e deixa a esperança entrar na tua casa, trazida pelo vento da tarde". Ou pelo sopro de um menino. Eu disse que os nomes são mágicos. E, no caso da esperança - flor ou sentimento - são mais do que magia: são poesia. Quero ser dente-de-leão. Talvez esta seja a única certeza que encerro, no solo incerto onde tento fincar raízes.  

4 comentários:

  1. André Conforte7.7.11

    Sou dos que ainda leem sua coluna, tá, Roberta? Sempre escrita com magia e maestria. Coisa de quem domina a língua e as linguagens em todas as suas facetas. Sobre o conteúdo, nada a declarar, só o pasmo ante a sensibilidade de sempre. Já disse que você me lembrava o Rubem Braga. Mas às vezes me lembra o Miguel Esteves Cardoso, cronista português, conhece? Dá uma beliscadinha: http://www.citador.pt/pensar.php?pensamentos=Miguel_Esteves_Cardoso&op=7&author=1133. Por fim, sugiro conjugar de fato o verbo "arvonare": "arvono, ergo sum". Aí você legitima o neologismo. Parabéns, beijo.

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  2. Beta, com esse inverno de zero grau, o seu texto e o clipe no final...o superman teve quer comer uma banana amassada para aplacar a saudade de casa...

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  3. André, por sua causa, em grande parte pelos que ainda leem o que escrevo, é que ainda escrevo. Às vezes bate uma lentidão que parece me fazer sucumbir ao desânimo. E é justamente aí, para não me perder em mim mesma, que escrevo. Ser comparada ao Rubem faz o meu dia ficar mais azul. Como agradecê-lo por isso, meu amigo? Vou ler alguma coisa do Esteves e depois comento com você. Mais uma vez, obrigada, obrigada, obrigada.

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  4. Rodrigo, meu amigo de tantos, tantos anos, companheiro de teatro, matemática, bicicleta, chuva e aniversários... Que bom ler um comentário seu aqui. Puxa, o Superman fez essa manteiga derretida ainda mais emotiva. Zero grau, saudade e banana amassada com Farinha Láctea. Haja coração! Obrigada, amigo eterno.

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