20 de junho de 2011

claves de sol, fá e casas

Para Caroline e Raísa, e todos que tem algum talento, revelado ou não. E em busca de um sonho, marcam na pele e na alma o que lhes orienta os passos.

Carol Rohen e suas claves de sol e fá

A minha prima mora numa cidadezinha que eu amo por muitas razões. Lá passei os melhores anos da minha infância e os momentos mais gloriosos da minha adolescência (sim, a adolescência pode, em raras ocasiões e cidadezinhas, ser gloriosa). A cidade da minha prima, essa menina que nem é mais menina, uma morena com pele de jambo, sorriso rasgado e olhos de jamelão, é também a cidade da minha família. O meu refúgio. Quando olho no espelho e não vejo ninguém, quando desconheço os traços outrora meus porque, em algum momento da caminhada, deixei de ser quem achava que era ou quem deveria ser, é para essa cidade com nome de fruta que vou. Até bem pouco tempo era lá que considerava refazer minha vida. Mas, então, muita gente me disse que a cidade da minha prima não é uma realidade palpável para mim, mas um sonho distante, uma reminiscência que sobrevive apenas porque, diariamente, reavivo as brasas de carvão da memória. Uma fuga, dizem os sensatos, sem sal. Ouço calada e, por dentro, chovo. Ninguém escuta os meus trovões de rebeldia por não poder dominar o tempo, fazê-lo girar para trás ou, ao menos, pará-lo por algum tempo, o tempo necessário, para que eu possa chover até a última gota e clarear o meu céu lá, na cidade da minha prima, na cidadezinha com nome de fruta.

Então descobri - ou talvez já o soubesse, apenas permiti que aflorasse à consciência o fato - que quanto mais próximos estamos das raízes, mais distantes nos vemos do horizonte. Isso vale como regra geral, claro. E se não houvesse exceções, ocorrências repetidas jamais seriam regras. De cinco filhos arraigados e enraizados, meu pai foi o único que contemplou o horizonte e não achou que ele estivesse longe demais; foi até onde o céu encontra o chão, fez um limite próprio, escapou à regra. Quanto a mim, não posso dizer o mesmo. Não nasci na cidade com nome de laranjas, mas volto para lá recorrentemente, como se aquela, e não a cidade no topo da Serra do Mar, fosse a minha cidade natal. Como se lá fosse a "casa" que, andanças e estrada que sou, ainda não encontrei. Então me lembro dos sensatos, aconselhando-me a não me apegar a sonhos, à fuga. Fuga-cidade. E a parte mais louca, viva e liquefeita da minha consciência se pergunta se "casa" não é, de fato, como já dizia o poeta, o lugar onde a alma está. E como a minha alma vive "fugindo" para lá, talvez seja lá a minha casa, ainda que eu nunca venha a residir naquele lugar. Tem gente que mora e vive no mesmo lugar onde dorme e acorda a sua alma. Não há estatísticas para isso: mas posso dizer que estes devem ser a minoria. Ou talvez o meu palpite não passe de um resquício de um ranço nauseabundo de inveja.

Tem gente que mora na mesma casa em que nasceu, uma vida inteira, e vê, pela janela da sala, a última folha da árvore da casa vizinha cair, o sol deitar para a lua ficar gorda no céu e a alma ir embora para sabe-se lá aonde. Ou ficar ali mesmo, na mesma casa, na forma de poeira sobre os móveis, retratos envelhecidos, pés-de-jabuticaba e ranger de portas. Não, cara-pálida. Não é de assombrações ou almas-penadas que falo. Sou cética - ou ao menos acredito sê-lo - o bastante para não sugerir isso num blog que, a rigor, é o meu inconsciente expresso. A alma em forma de poeira, árvore, fotografia luz e som é a memória. É nas brasas reavivadas da lembrança que vive, eternamente, uma alma. Na casa onde, outrora, escolheu para morar. Pois existe uma sutil - porém relevante - diferença entre "viver" e "morar", entre "residência" e "casa". E se o Quintana está certo e "casa é onde a alma está", alguém pode viver cem anos sem jamais ter morado em casa alguma, embora, obviamente, numa ou em milhares de residências. Talvez este seja o meu caso. Mas se a alma for, para os sensatos e céticos, apenas sonhos e fugas, a minha vive (vaga...?), mas não mora. E todas as residências cujos tetos abrigarem o meu corpo serão apenas isso: logradouros. Até que eu encontre, finalmente, a minha casa. 

A cidade da minha prima não será a sua casa por muito tempo. Será a de seus pais, a de meus outros primos, tios e velhos amigos. Para nós, mais "antigos", as raízes estão mais próximas do que as folhas das árvores, e o horizonte, muito mais distante do que o riacho que corre, sereno, logo ali, na curva da estrada. Para nós, a regra é mais forte do que a exceção: ficar é mais fácil do que partir. A lua gorda no céu, para nós, é mais bonita naquele céu, daquela cidade, daquela casa. Para Caroline, a lua que ela ama será ainda maior, mais brilhante e mais perto de um toque seu no horizonte à distância, que é distância apenas para quem é raiz, mas proximidade para quem é folha. Carol, a moça que tatuou na pele uma clave de sol intrincada a uma de fá, é folha. E está prestes a soltar o galho e ser levada pelo vento, para mais longe de nós, para mais perto de si mesma. O mesmo aconteceu com seu irmão. E com sua prima, fruto da mesma cidade, da mesma geração que vai subindo das raízes ao tronco, nutrindo a árvore com seiva renovada, até alcançar os galhos mais altos e, folha, soltar-se e ir brotar noutras casas.


O orgulho que sinto dessa moça, em particular, é imenso. Filha da prima que, até hoje, cuida de mim como se eu ainda tivesse cinco anos, ela foi batizada Raísa Rohen. Sorrio baixinho ao ler o seu nome recém-digitado por esses dedos de árvore que são os meus. Raísa deveria ser o meu nome porque é de raízes que sou feita e é em raízes que vejo a possibilidade de fazer uma casa para a minha alma morar. Ocorre que Raísa nunca viu a cidade com nome de laranjas como "casa"; não era lá que a sua alma estava. Lá, Raísa olhava no espelho e não conseguia entrever a alma pelo branco dos olhos. Folha, Raísa quis voar. E foi a primeira que o fez, num galho antigo onde todos ficam enraizados, na mesma casa onde nasceram. Raísa mudou-se para uma cidade grande, grande demais para uma cidadezinha com nome de fruta e, hoje, estuda leis, petições, artigos e códigos. Não encontro Raísa; a distância nos separa. Mas, quando fecho meus olhos, enxergo claramente os seus, escuros, que brilham de alegria, sonhos e ideais; vejo-a fazendo amigos, sorrindo aberto, sentindo-se "em casa". E a felicidade dela me faz mais feliz. Mora em mim a certeza de que, no dia da formatura dessa moça com nome de raiz, eu serei a primeira da fila, juntamente com meus primos, seus pais. E aplaudirei, calma e frenética como um são francisco febril.

Caroline e Raísa traçam rotas diferentes, ainda que tenham partido do mesmo lugar, das mesmas raízes. Elas vêem o horizonte e não temem a distância, a mediocridade ou o fracasso; elas voam. Porque, no frigir dos ovos, temer a distância, a mediocridade e o fracasso é um engodo, uma máscara que engana apenas a quem permite ser ludibriado. Quem tem medo de voar teme, na verdade, a felicidade e o sucesso. É exatamente isso o que eu disse, cara-pálida. A felicidade dá medo; assusta. Põe gente grande para correr, feito menino de calças curtas. À tristeza e ao fracasso já nos preparamos, desde a primeira derrota. Estes não assombram; são a regra, como somos levados a crer: "Tristeza não tem fim, felicidade sim (...)". O que enregela os ossos e faz subir pela espinha um calafrio de emoção é a exceção: a alegria, o sorriso, o enlevo. E se abrirmos a porteira um pouco mais e baixarmos a guarda... E se ousarmos fazer da exceção a regra? Caroline e Raísa fizeram. Suas almas não vivem, apenas; moram em casas próprias, o sonho brasileiro mais antigo. Para terminar, uma "canja" do sonho, da casa, da alma de Caroline, fazendo o que nasceu para fazer: cantar. Ela é um corrupião. E, como tal, não canta engaiolada. Se gaiolas e pássaros não casam, imagine se uma gaiola pode ser a casa de alguém.

6 comentários:

  1. Como te admiro! Vou até plagiar uma parte de seu texto, mas deixarei os créditos, pode deixar! Milhões de beijos e agradecimentos de coração =)

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  2. Minha linda, você pode usar os meus textos como quiser, o quanto quiser, porque são seus também. Agora, só um minuto: EU é que admiro VOCÊ, mocinha (...rs). Milhões de imensos e saudosos beijos.

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  3. Alberto Lacerda23.6.11

    Que delícia !!!Essa família só tem meninas tal
    entosas,é uma honra poder ler e ouvir vocês.E eu digo sim, vocês estão maravilhosas esta noite.Parabéns as duas!!

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  4. Excelente trocadilho, Alberto. É verdade. Essa família até que tem alguns talentos, viu? Agora é torcer para vermos Caroline, ou melhor, ouvirmos Carol Rohen nas rádios. Abraços mil!

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  5. Dante F Moriera24.9.11

    Que lindo, Roberta. Passeando por este seu expresso, escolhi essas claves de sol para começar o dia. Ritmo, palavras e sentido. Foi inspirador:pura poesia. Estou feliz com isso, Bjs. Dante

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  6. Boss! Que maravilha um comentário seu por aqui! Quanta saudade... Fiquei emocionada, de verdade. Leia esse aqui: http://www.expressodoinconsciente.com/2011/09/pronto-falei.html
    Para você e para a Bi.
    Beijos!

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