8 de outubro de 2010

Insomnius


três da madrugada
o primeiro galo do quintal do vizinho já cantou
duas vezes (ou já não seriam três?)
ah! como se a solução para todo o peso da solidão nesses ombros
fosse apenas contar um ou outro
longínquo cacarejar...!
as pálpebras pesam-me os olhos
mas o sono não vem
ou talvez eu viva em constante
queda de braço com aquele sujeito
o Morpheu, não é como o chamam?
que parece ter me abandonado
ou eu a ele...

porque prefiro me esconder nas palavras
ou me desnudar através delas
e escrever para correr, para esquecer
que somos só eu e o galo, sozinhos os dois
ele, no terreiro, um galináceo abandonado
pelo seu harém empoleirado e sonolento
que nem lhe percebe mais o pavonear
e eu aqui, habitando este corpo que reconheço como meu
mas cativa de um coração que já perdi

que já não mais habita meu corpo
porque eu o doei, um órgão vital, no auge da vida e da esperança
mas, pensando melhor
existe alguma diferença entre "viver" e “ter esperança"...?

recordo-me, neste nevoeiro maciço da vigília
do conselho de um cardiologista
que fazia eco cardiogramas da alma
mas quem segue conselhos, afinal...?
"coração é órgão que não se doa
pelo menos não em vida
pelo menos não em sã consciência"
mas agora, com o tique-taque do relógio
a me derreter a mente aos poucos
já nem sei se o tal cardiologista
de fato existiu algum dia
quem me garante que o sábio doutor
não passasse de minha própria insana consciência
a bancar um Grilo Falante sem voz ativa...?
não me importa mais essa verborragia
mera tentativa frustrada de fuga literária
quando meu companheiro, o galo
enfrenta sua solidão no frio
e ainda não deixa de bater as horas
feito um relógio de cuco
outra ave que não pode voar..
.
nenhuma sentença há de importar
para alguém que perdeu seu coração
justamente porque o doou
a guisa de sonhos que vêm
sem o auxílio de Morpheu
e sonhos assim, que chegam sem sono
é porque há muito já moravam ali, acordados, entorpecidos

ainda assim, na solidão de um corpo
cujo coração habita outro corpo
prefiro desfiar meu rosário de palavras
a me deitar com Morpheu
esse intruso, que entorpece minha mente
ele, que acaba abrindo as masmorras dos sonhos...
e qualquer criança sabe que sonhar é perigoso
porque sonhar rima com esperar
que rima com desejar
que rima com inflar
que rima com voar
que rima com (des)habit(u)ar
que rima com amar
que não rima com nada...


somos, eu e o galo, nada mais que estrelas
a pontilhar um céu de sonhos
que decoramos como ímãs colados
mesmo que distantes
há quem sonhe acordado
há quem se deite com Morpheu
e se entregue a seus braços ardilosos


e há quem prefira nem sonhar
para não ter que esperar
nem desejar
muito menos inflar
o que dirá voar...?
tudo isso para não ter que acordar
(ou não seria o contrário...?)
o galo, este meu companheiro quixotesco de penas
ele não desiste de sonhar jamais
e insiste em cantar solitário
na noite silente, só seu canto a ecoar
mas sabe que nunca chegará a voar
ele conhece seus limites
é muito, mas muito mais sábio do que eu...

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