20 de novembro de 2017

Vericídio

"Nenhuma verdade pode ser tão dolorosa que justifique uma mentira". Foi com essa máxima que eu, ainda criança, aprendi a não mentir. A verdade era um negócio muito sério para o meu pai. Ele se doava ao mundo com laços de confiança, respeito e admiração que, segundo ele, só poderiam ser amarrados com transparência e boa-fé. Assim, eu fui ensinada, treinada e moldada para ser um livro aberto, carapuça que me serviu naturalmente, tamanho era o meu temor que confundissem uma possível tentativa minha de "omitir" com "mentir". E, para garantir que alhos jamais fossem tomados por bugalhos, eu dividia livremente meus pensamentos, sentimentos e ações, o que abria um portal para o escrutínio pleno da minha família. Na casa dos meus pais não havia segredos, pelo menos nunca da minha parte - pai e mãe são, afinal, magnânimos, e detém a prerrogativa de nem sempre agir de acordo com as lições que pregam.



Mas a verdade dialética e das discussões filosóficas habita um universo muito distinto da verdade que aprendemos a contar quando crianças e das mentiras brandas ou cataclísmicas que escondemos debaixo dos tapetes da vida. Isso porque, em prática, grande parte de viver em sociedade se apoia no fato de que a verdade precisa ser flexível e conveniente, especialmente na esfera da convivência social, onde cada esbarrar nosso produz arestas pontiagudas demais para que a verdade nua e crua possa ser dita sem consequências desastrosas. Uma coisa é sempre dizer a verdade na proteção e privacidade do lar e à sombra da família; outra, bem diferente e muito mais perigosa, é expressar toda e qualquer opinião a céu aberto, simplesmente porque nunca fomos tão encorajados a ser sinceros, a ter e a exibir uma personalidade forte e a abraçar a nossa autenticidade. Se, há algumas gerações, os pais ensinavam os filhos a observar mais do que falar e, acima de tudo, a calar antes de dizer qualquer coisa ofensiva ou inoportuna, hoje os indivíduos que não falam o que pensam a qualquer custo são taxados de fracos. E mais uma vez os polos se invertem em nosso prejuízo: a verdade que aprendíamos a contar em casa ultrapassa os muros do privado para ganhar proporções sociais incômodas e levianas, ao mesmo tempo em que, no ambiente doméstico, as meias verdades e a hipocrisia infestam famílias que, sem elas, não estariam verdadeiramente coesas.

Você provavelmente desconhece José Datrino, mas este é o nome verdadeiro do Profeta Gentileza, e aqui se entende porque a verdade às vezes é super-estimada. O pregador carioca é conhecido pela frase "gentileza gera gentileza". Da mesma forma, o aparente modismo de se falar o que se pensa em nome dessa tal verdade, gera brutalidade, mal-entendimentos, rancor e isolamento. A liberdade de expressão nunca foi tão livre e desimpedida; hoje, diz-se o que vem à cabeça sem o menor receio de ferir sentimentos alheios; o que importa é que a minha opinião seja preservada e expressada, que a minha personalidade forte prevaleça, que a minha autenticidade se mantenha. Não há mais tempo nem lugar para gentilezas. O cara gentil é fraco. O sujeito amistoso é um borra-botas. A mulher obsequiosa e amável é puxa-saco. Se antes a boa-fé era um sinal de honradez e boa-vizinhança, um convite para portas abertas e aperto de mãos, hoje ela é um escárnio, um deboche moral, uma mácula social, um fardo, um fastio visto por vezes com indiferença outras com desconfiança. "Verdade" e "gentileza" não deveriam, a priori, ser excludentes em si mesmas, mas por alguma razão, não conseguimos processá-las simultaneamente. Aparentemente, quanto mais "verdadeiro" alguém se propõe ser, menos "gentil" em relação ao outro ele será, e esta pode ser uma infeliz dicotomia, feito uma singularidade espaço-tempo para a qual não há equação final. Para resolver tal oximoro, é preciso abrir mão de algum desses vieses: já sabemos que não dá para ser honesto e gentil ao mesmo tempo. E parece que essa escolha já vem timbrada em cada um de nós, muito antes de nos darmos conta da existência do problema.

E esse problema é que em nome da sinceridade brutal e da autenticidade narcísica dos millennials e pré-millennials que se intitulam como tal, a verdade é proferida em vômitos ardidos quando, fosse um pensamento sensato reservado à situação, bastariam um comentário cordial, uma mentira social conveniente, polida e agradável ou simplesmente o silêncio com um sorriso para evitar o desconforto, a ofensa e o ressentimento por parte de quem recebe a bofetada tantas vezes desnecessária. E daí comete-se vericídio: suicídio através da revelação da pretensiosa verdade. Mas o que seria a "verdade" nas relações sociais de trabalho, entre amigos e colegas que se veem a cada seis meses, parentes em reuniões de família, mães do grupo de Whatsapp da escola, a galera da academia, o pessoal da praia, a babá, o namorado, a amante, o marido, os pais? E em que momento começa a valer a pena, realmente, ser tão sincero e ter uma personalidade tão forte e uma autenticidade tão insuportável a ponto de rasgar o peito do outro em função de uma verdade que é muito mais legítima e faz muito mais sentido para você do que para ele? O quão gloriosa, devastadora e pateticamente inútil é a morte de um kamikase, no frigir dos ovos? Porque o vericídio é isso: uma "morte" de dois gumes. Aqui, saem em desvantagem tanto quem foi alvo de um comentário de uma honestidade brutal e devastadora, quanto quem perdeu a oportunidade de ficar calado, para variar.

Fratricídio, genocídio, vericídio. Qualquer tipo de assassinato é condenável, mesmo que este seja um neologismo, porque ainda que a palavra seja inventada, a ideia é muito literal e palpável. Nunca houve tanta liberdade de escolha para pensar, falar e agir, e nunca o indivíduo foi tão valorizado em detrimento do bem coletivo e social. Vem daí a noção exacerbada de que há um direito implícito de dizer o que se pensa, independente dos sentimentos dos outros e das próprias implicações absurdas do que se diz. Mas o preço dessa "verdade" é altíssimo: ela leva consigo a beleza e a candura no tratar entre as pessoas, enterra a tal gentileza sobre a qual o "seu" José pregava, faz com que os indivíduos desconfiem e debochem de quem é deferente e elogioso e, em contrapartida, venerem como forte aquele que tece comentários cáusticos e totalmente dispensáveis ao próximo. Uma barganha miserável, que verdade alguma nesse mundo justificaria. 

13 de novembro de 2017

quando a gente se reescreve

para o meu marido, Raul Neto, que me fez amar o presente e ansiar pelo amanhã

Era sábado, pouco antes da meia-noite. Já tínhamos apelado para o delivery amigo - até para não perder o costume, criaturas de hábito que somos - e esperávamos pela pizza pecaminosa, e não menos incrivelmente deliciosa por isso, que não tardaria a chegar em nossa porta. Eu me deixava balançar de leve na rede da varanda, a visão icônica da preguiça e satisfação em forma de mulher. Fossem os ganchos que seguram o aparato mais antigos e estivessem enferrujados, seria possível ouvir um ranger moroso e doce a entoar o nosso fim de noite. De costas nuas para mim, ele por vezes se virava para sorrir, confidenciar uma memória ou se debruçar ao parapeito, deixando o pensamento viajar para longe. Mas o que lhe tomava o tempo naquela noite, como em tantas outras, era a terra que ele revolvia e as plantas que ele regava, esse absurdo de verde que explodia em vida numa entropia às avessas: cada broto, botão, ramo e raiz nasciam dos dedos dele e sobreviviam na terra e com o ar que respirávamos, alimentados como éramos pela ânsia do presente.


Naquela noite ele não colocou música alguma para tocar na varanda, e a conversa nos embalou por horas. Sempre preferi assim, eu, tão facilmente a tagarela entre nós dois quando ele tem essa habilidade incrível de se desligar do mundo (quase) sem que percebam que ele - pluft! - já tinha ido embora dali há tempos. Um riso começa a borbulhar no meu peito feito o bater das asas de um milhão de borboletas quando me lembro das horas sem fim que passei contando infindas histórias para esse homem, para ao final me afogar naqueles olhos que me fitavam meio perdidos, quase sonados, como que há milhas de mim, mas jamais sem aquele sorriso de lado como recompensa, um candor genuíno a emanar. Jamais me importei. E vem daí a certeza de que você deseja aquele alguém muito específico, e plantas, e varanda, e mesmo as abelhas, se elas vierem. Porque simplesmente não importa que ele não seja "perfeito" aos olhos da humanidade - seja lá o que "perfeito" signifique, porque, a priori, ele é o ideal e muito mais do que você jamais esperou para você.

E porque não houve música, mas papo, ocorre que uma coisa levou à outra e decidi ler uns ensaios antigos postados aqui para o homem da minha vida. E que experiência fascinante - e aterrorizante - foi aquela. É claro que eu me reconheci em meus textos: a palavra escrita é a essência suprema de um indivíduo, e ninguém apaga, passa liquid paper e muito menos varre o passado para debaixo do tapete. Enfim, ali estavam as palavras, as ideias, as cores e sabores (dissabores...?) do "eu" que eu havia sido há um tempo, ou que vinha sendo. Ou, talvez, do "eu" que eu vinha tentando descobrir que era. Sim, porque, na pior das hipóteses, e incluo aqui o meu antigo e bolorento "eu", tem muita gente que fica marcando passo na encruzilhada-mor da vida, vendo a banda passar do atoleiro que é o "ser ou não ser, eis a questão" pós-adolescência. Li algumas crônicas antigas para o meu marido, outras da época anterior aos meses em que nos conhecemos e ainda namorávamos. E, honestamente, suspirei de alívio por ele ser um disperso compulsivo e nenhum grande amante da literatura. Afinal, se você acompanha o Expresso, eu não diria que temas "levemente triviais" (trivialmente leves...?) fossem o forte por aqui. Para azedar o meu sarau, de certa forma eu temia que meu marido se desse conta da mulher que eu me transformara - alguém tão mais otimista - em função daquela que eu deixara de ser - não, eu nem sempre fui assim, embora você saiba disso. Por outro lado, já diz a máxima: "somos a beleza única do somatório de nossas experiências", blá, blá, blá, um eufemismo cool para justificar todo e qualquer desvio de percurso lamentável e ataque de nervos com direito à internação psiquiátrica. Enfim. Tudo vale à pena quando a alma não é pequena e a gente é brasileiro e não desiste nunca.

O fato é que no meio da narrativa dos meus textos fin de siècle - não me leve a mal, ainda os amo - tanto que jamais os deletaria e muitos foram publicados em outros veículos de comunicação - me peguei surpresa com o distanciamento que senti da pessoa que eu fui, que eu era quando escrevi aqueles textos. E, ao mesmo tempo em que me senti aliviada por saber que as cores que me definem hoje, leves, brilhantes e serenas, fazem de mim a pessoa que eu sempre busquei ser, tão diferente dos plúmbeos pesados, metálicos e prenhes de culpa, igualmente não pude evitar sentir um orgulho olímpio por quem eu fui um dia, por ter "maratonado" até aqui debaixo de tanta chuva, trovoada e vendaval dentro de mim mesma. Pode até ser mais fácil nadar em mares rasos, ausentes de angústias, dilemas existenciais ou do puro e simples azar no jogo e no amor. É definitivamente mais confortável e mais prático jogar a vida com o bom e imbatível backhand das certezas absolutas, da auto-estima esmagadora, dessa capacidade sobre-humana que alguns indivíduos possuem de cometer "vericídio" o tempo todo e falar e fazer o que lhes dá na veneta, doa a quem doer. Pode ser mais conveniente e competitivo jogar assim, de fato. Mas, para a fortuna geral, nem todo mundo nasceu para competir. E para esses, como eu, resta a magia de um sábado à noite em que se relê um texto antigo e descobre que, assim mesmo, num piscar de olhos que custou uma vida inteira para passar, a gente se tornou exatamente quem sempre sonhou ser mas nunca havia tido coragem, oportunidade ou espaço suficiente no mundo para isso.

E qual não seria a expressão estupefata no rosto do meu marido se ele realmente estivesse ouvindo aquelas narrativas antigas, de uma mulher tão diferente da sua, de agora... Não por acaso vivo lhe dizendo que ele deveria ter me conhecido "antes dele". Na verdade, quem quer que vivencie um processo de transformação pessoal desta magnitude deveria ter essa chance, se ao menos pudéssemos engendrar universos ideais como este. Assim, poderíamos não apenas reafirmar uma nova e recém-descoberta identidade, mas também privilegiar aquele que foi instrumento e veículo decisivo dessa metamorfose: seríamos, então, a própria oferta de um presente único, intransferível. É preciso muita coragem para viver, basicamente: "matar um leão por dia", já versa o ditado popular. Mais ainda do que coragem para viver um dia de cada vez, é necessária uma bravura descomunal para assumir as duas facetas mais dolorosas de um ser-humano: por um lado, gostar de quem você é, se aceitar desta forma e reverberar isso para o mundo; por outro, não gostar de si mesmo e assumir tal verdade lancinante. Para a moléstia que é a segunda opção, há duas saídas: a fuga para uma vida às sombras, com conseqüências desastrosas irreversíveis, ou a mudança, igualmente dolorosa, mas reparadora e libertadora.

Por um tempo longo demais para manter registro e do qual me orgulhar, não gostei de quem eu era. Faltava-me um universo a ser preenchido e, por outro lado, sobrava uma galáxia de pesos mortos, grilhões enferrujados e falsas cores. Eu tentava fincar raízes e estender meus galhos em terras estrangeiras e inóspitas, velejava às cegas em mares gélidos, dava murros idealistas e sonhadores em pontas de faca de uma objetividade cruel que me dilacerava estruturalmente. Eu sempre tive a esperança de mudar, ou de que o micro-cosmo ao meu redor mudaria, mas jamais consegui sozinha. Houve um tempo em que até a esperança, esta que me define tão crucialmente, passou a me frustrar: para que nutrir expectativas por mudança pessoal se, ainda que você evolua, pouco ou nada ao seu redor será compatível? Por muito tempo eu acreditei que seria para sempre uma versão inacabada e imprópria de mim mesma: um rascunho mal-ajambrado. Mas a rasura é isso: uma segunda chance. A possibilidade de fazer de novo, fazer melhor, acertar. Se não gostamos do resultado final da obra, da nossa própria e mais magnífica obra, do somatório em que acabamos nos transformando, nada impede que tentemos nos reescrever. Aliás, este é o mais honesto, mais digno e o maior ato de bravura e amor que alguém pode encerrar em vida. Tem gente que consegue se reescrever logo cedo; outros, levam o escopo de uma vida inteira para consertar a rasura da alma. Há quem se reescreva sozinho, feito nadador ou qualquer outro atleta individual que compete consigo mesmo, batendo recordes próprios. Eu não nasci para jogar, muito menos para competir. Foi a dois, na grande descoberta do amor e na surpresa do otimismo e dos dias de céu de anil, mesmo quando chove, que eu me reescrevi. Em reconhecimento pela reconstrução da minha vida, pelas noites de sábado na varanda e por todos os sorrisos que me evadiram e hoje enfeitam o meu rosto, eu já devia essa co-autoria ao meu marido. Mas é pela nova obra que sou hoje, por quem sempre almejei ser, que nós brilhamos a quatro mãos. 

19 de janeiro de 2017

ex-fulanos e tabus


"A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme"
Virginia Woolf

As palavras têm poder. A gente antiga já dizia isso e vivia a se benzer quando ouvia alguém dizer qualquer coisa que considerasse agourento: nome de doença sem cura, entidade maligna, suposição pessimista. Até quem morria costumava ser considerado tabu há algumas gerações, principalmente nas cidades provincianas do interior, onde os costumes enraízam mais profundo e vão se apagando mais lentamente. O indivíduo partia desta para melhor e perdia o seu nome próprio para adquirir a alcunha de "o falecido" ou "o finado". Chamar um morto pelo nome não era apenas considerado rude e desrespeitoso. Havia também a aura de superstição que o poder da palavra engendra; usar o vocativo é, como já o diz a própria palavra, invocar. E se há algo que muito cedo aprendemos com os nossos avós ou com filmes de terror é para não se mexer com quem está quieto.

O tabu de hoje é o politicamente correto e se no passado esteve confinado à sociedade miúda e a práticas amatutadas, atualmente ele corre às soltas nas artérias de um mundo interconectado em nível capilar pela internet e governado pela agilidade voraz da notícia, seja esta o que lhe convier. No coração dessa sociedade sem limites e global, pulsam minorias sociais cada vez mais estratificadas e pequenos ódios recém-nascidos e bem alimentados, numa contradição irascível que sustenta e simultaneamente contesta democracias e neo-liberalismo mundiais. É nesse cenário complexo de expansão sócio-cultural, ocorrendo paralelamente a movimentos de reforço de expressões e identidades de minorias, que se justificam a atitude e terminologia politicamente corretas. Para que tais grupos sejam não apenas preservados, mas poupados contra assédio moral e preconceito em uma sociedade cada vez mais monolítica e pariforme.

Entretanto, nada justifica a atitude politicamente correta e o pronome de tratamento, leia-se "apêndice", dos ex-amantes, pelo menos na cultura ocidental. Eu já vinha ensaiando abordar este tema há uns bons anos, mas o temor da polêmica me mantinha distante do assunto em nível público. Acontece que chega um momento na vida do escritor em que encarar o branco da página e o cursor piscando faz a coragem aflorar à revelia de prováveis julgamentos e preciosismo na escolha da pauta. Além do mais, as palavras têm poder, e esse poder é ainda mais expressivo quando a palavra é repetida à exaustão. Porque poucas coisas podem ser mais letais do que a reiteração, "ad vomitorium", destas duas palavras tão diametralmente desconexas e, no entanto, casadas - o trocadilho é intencional - na mesma frase: o meu ex.

Ou "a minha ex", o gênero dos fatores não altera o resultado. Que é o mesmo: um contrassenso absurdo e ultrajante por uma série de razões. Observe abaixo a definição do prefixo "ex", lembrando-se sempre que uma palavra não é apenas prenhe de sentido e significado, mas poder:

ex- 
(prefixo latino ex-, .ação de tirar, saída, acabamento, .ação de levar, privação ou negação, reforço)
prefixo
1. Indica fora de, derivação, saída, separação, afastamento, apartamento, .extração, em palavras de várias categorias morfológicas (ex.: exterritorialidade).
2. Quando unido por hífen a um substantivo, indica que o nome indicado deixou de ser aquilo que era (ex.: ex-mulher) ou de exercer o cargo ou função que tinha (ex.: ex-presidente).
3. [Informal]  Pessoa que já teve com outra uma relação de casamento ou namoro, em relação a esta última (ex.: tem uma relação conflituosa com as suas duas ex).
4. [Informal]  Pessoa que deixou de ser alguma coisa

Ora, a definição mesma do vocábulo é auto-explicativa e dispensa quaisquer tentativas de reforço argumentativo além da pergunta retórica: se o indivíduo em questão é um "ex" como pode ser "seu" já que, a priori, se foi, não mais faz parte de sua vida, tendo há muito - se é que já o fora um dia - abandonado a condição de "sua propriedade"? Certamente que aqui não me refiro ao valor denotativo e literal dos termos "o meu ex" ou "a minha ex", uma vez que está implícito na condição de quem termina um relacionamento amoroso fazê-lo exclusivamente com o seu parceiro. Falo do peso metafórico da expressão e do perigo que são as conotações que, como infinitas matizes de uma única cor, tingem a mente com ideias. Um "meu ex" é como um dente, um pedaço de marfim ou uma lasca de osso que o aborígene coleciona e vai pendurando ao pescoço em seu colar de troféus. Cada novo item é um peso a mais que, quando "mencionado", enverga o artefato, peso morto, até arrebentá-lo.

Pode parecer afetação ou exagero, mas a terminologia do "meu ex" está tão arraigada culturalmente que o fato de se refletir na linguagem é mero efeito colateral. Note o exemplo dado no item número três, retirado ipsis litteris do dicionário Priberam de língua portuguesa: "tem uma relação conflituosa com as suas duas ex". Até no dicionário o camarada tem uma relação esquisita com não apenas um, mas dois passados. Esse exemplo é pífio pelas seguintes razões: relata o óbvio. Notícia seria se ex-amantes tivessem uma relação harmoniosa, o que faria deles ainda amantes ou, na melhor das hipóteses, amigos, em ambos os casos anulando a necessidade do termo "ex" para designá-los; como o uso do prefixo isoladamente é vago - assim como o fazemos informalmente em todas as línguas ocidentais - é impossível dizer se o sujeito em questão tem uma relação conflituosa com as suas duas ex-namoradas, ex-esposas, ex-noivas, ex-amantes, ex-peguetes do Tinder ou ex-primeiras paixões. O que vem apenas a corroborar o óbvio: referir-se por regra a um ex-parceiro como "o meu ex", alienando-o do nome que lhe foi dado pelos pais, é patético, desnecessário e de um tom blasé forçado que não cai bem a ninguém. Como se o término de um relacionamento fosse apenas mais um término, e aquele parceiro, apenas mais um ex, sem expressividade ou importância, indigno do próprio nome. 

Conheço um sujeito que esteve num relacionamento por quatro anos. Ele não se casou formalmente, "de papel passado", como se costumava dizer no tempo em que todo mundo era obrigado a se casar de papel passado. Entretanto, houve festa, vestido branco, champanhe, buquê e troca de alianças para celebrar a união do casal, de modo que o camarada, embora orgulhoso de ser o único oficialmente solteiro entre todos os amigos casados ou divorciados, ainda se refere à mulher com quem se relacionou como "minha ex-esposa". Ele está separado há mais de três anos. Não posso evitar um sentimento de simpatia e comiseração pela mulher que se apaixonar por esse homem. Quando fala do passado, ele menciona o tempo em que estivera "casado"; se precisa citar a mulher com quem viveu, ela não possui rosto, nem nome. Será eternamente "minha ex-esposa" ou "minha ex-mulher", o tabu ambulante, a personificação do politicamente correto na vida conjugal, ocupando todo o espaço denotativo e impedindo a metáfora amorosa de acontecer.

Descobri outro dia, em conversa com amigos, que não existem "ex-sogra", "ex-genro", "ex-cunhado" e afins. Na verdade ouvi dizer, então não posso afirmar muita coisa sobre o assunto. Ainda estou em dúvida quanto a questão do "não existe". O que exatamente não existe? A terminologia ou o conceito? Porque, no contexto inter-relacional amoroso, se uma mulher murmurar as palavras "o meu ex", não haverá a menor indecisão a respeito de quem ela se refere, e o mesmo aconteceria para o homem, de maneira que a palavra e o que ela representa, em todas as suas manifestações simbólicas, exitem e caminham lado a lado, daí o seu poder em ter e criar sentido próprio para quem fala, ouve, escreve e lê. Palavras têm poder. Os nomes têm poder. E a maneira como os enunciamos, ou melhor, o discurso em si, é que dá vida às palavras e, estas, às histórias que vivemos.

"Ex" também significa "fim", e se acabou, é porque alguma coisa morreu. Dia desses conversava com um amigo recém-separado que me contou que ele e a "sua ex" - e eu uso as suas exatas palavras - se dão super bem, se vêem todos os dias, almoçam juntos e que o divórcio está sendo "mega tranquilo". Minha expressão de paisagem diante de tal comentário é inenarrável. Porque no meu cérebro de australopiteco, se o meu amigo e a "sua ex" se dão tão bem, por que não estão juntos? Ou então, se o meu amigo e a Maria se separaram, por que não viram a página, queimam a ponte, enterram o cadáver do relacionamento e deixam o "falecido" quieto? Obviamente, eu jamais diria isso ao meu amigo e, mesmo que ele leia essa crônica, o índice de divórcios é tão alarmantemente alto e a forma como os ex-pombinhos encaram a tal fatalidade tão assustadoramente "natural", que ele jamais saberia.

Em semelhante proporção ou mais virulentas do que "ex" são as alcunhas-filhas, criadas tão somente para ecoar e abrilhantar sua pro-genitora: o "atual" e o "próximo" - não o "futuro", este, sim, com uma conotação positiva, como em "o meu futuro marido" ou "minha futura namorada". Aqui o ponto é, mais uma vez, o poder contido na conotação que as palavras possuem e como elas podem, enquanto metáforas, afetar a simbologia e os sentimentos humanos. O presente jamais terá o charme, a aura de glamour e o eterno apelo fin-de-siécle do passado, exatamente por ser agora, por ser possível e por não possuir o feitiço do distanciamento do passado. Por isso, nada é mais degradante do que ser "o marido atual" ou a "atual namorada", pois ambos estão à sombra dos eternos ex e dos ameaçadores "próximos", que não tardam a chegar, ainda que sequer existam. É da escritora inglesa, Virginia Woolf, a frase: "A coisa nenhuma deveria ser dado um nome, pois há perigo de que esse nome a transforme". Se nomes têm tal peso e poder, para que rotular pessoas então?

Talvez uma epidemia de histeria coletiva pós-conjugal tenha acometido os indivíduos, deixando-os em um torpor ardente de negação, onde sorriem abestalhados para as próprias imagens nos espelhos retrovisores dos carros enquanto dirigem para a audiência de divórcio consensual com seus ex, que também são seus amigos do peito, e com quem vão tomar um chopp logo em seguida. Talvez essa febre seja apenas um sintoma brando do vulcão de ódio, frustração, solidão e pavor que ameaça explodir e revelar para o mundo o eu conjugalmente nada correto que se auto-mutila, os tabus engolidos a seco, os anos de vida a dois perdidos, em vão. Ou pode ser que a maré esteja realmente mudando e as pessoas sejam, de fato, melhores ex-amantes. Mais individualistas, com mais divórcios, mais descompromisso e desconfiança, sim. Mas, numa lógica dantesca, melhores ex, quem sabe. Afinal, quem não quer mais um ex para chamar de seu nessa terra de ninguém?

9 de janeiro de 2017

fora da caixa

paradigma
(grego parádeigma, -atos)
substantivo masculino
1. Algo que serve de exemplo geral ou de modelo = PADRÃO
2. [Gramática]  Conjunto das formas que servem de modelo de derivação ou de flexão = PADRÃO
3. [Linguística]  Conjunto dos termos ou elementos que podem ocorrer na mesma posição ou contexto de uma estrutura.


O conceito de quebra ou mudança de paradigma se tornou uma febre entre os profissionais do ramo de recursos humanos de médias a gigantescas empresas na década de 1990. De repente, era vital que funcionários dos mais variados escalões fossem treinados a abrir suas mentes para novas ideias, que os desafiassem e a seus padrões de comportamento engessados. Mais do que isso, o empregado - em especial no ambiente corporativo - deveria aprender a mudar sua forma de pensar, a pensar "fora da caixa", termo emprestado e traduzido literalmente de uma expressão em inglês, "think outside the box". Com um movimento orquestrado do pessoal do RH, a criatividade, a capacidade de inovação e a adaptabilidade transformaram-se no novo paradigma, nunca antes tão valorizado no mercado de trabalho.

Passadas mais de duas décadas, trazer à baila o assunto de mudança de paradigma no ambiente corporativo é tão redundante quanto adicionar o inglês como língua estrangeira no currículo; ter a mente aberta à mudança e falar inglês são pré-requisitos, meras formalidades. Parece cruel, e de fato é, mas o mercado de trabalho, sempre inchado e competitivo, se torna uma arena cada vez mais implacável, restando aos combatentes o gládio e a coragem. Em seu favor a atual geração possui a sede nata pelo plural e o anseio pela mudança. De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), a rotatividade de trabalhadores formais - com carteira assinada - de 15 a 24 anos de idade, pulou de 4 milhões para 8 milhões entre os anos 2000 e 2010. Em outras palavras, o dobro de jovens pediu demissão de seus empregos porque entendeu que "já era hora de mudar".

Mas este ensaio não é sobre paradigmas no ambiente corporativo; é sobre os arquétipos, modelos que concebemos em nossas vidas pessoais e que permeiam toda a nossa existência, definindo não apenas a forma como pensamos e julgamos o mundo ao redor, mas construindo nossos valores morais e preceitos éticos. Paradigmas pessoais são, na melhor das hipóteses, uma personalidade bem delimitada, dita "forte": na ceia de Natal, o primo parcimonioso, que diz o que pensa e é sempre lembrado por suas manias, importunas ou não. Na pior das hipóteses, são um conjunto desastroso de preconceitos e pré-julgamentos, o "monolítico": na mesma ceia, aquele tio que se recusa a cumprimentar a nora que não tem curso superior, causa um furdunço com o sobrinho que votou no partido de oposição e abre um debate sobre o fato de você ainda estar solteiro aos 40.

Falar sobre arquétipos pessoais é delicado porque, no processo de formação da personalidade, há uma linha muito tênue que impede características e valores de se transformar em paradigmas monolíticos e nocivos. Esse cenário ainda é agravado pela ideia de que uma personalidade forte, comumente associada a valores positivos como caráter, ambição, determinação e sucesso, reflete condições paradigmáticas, ou seja, modelares, estruturais e, por consequência, bem definidas. O problema é que não existem gradientes contra os quais medir os valores de um paradigma de pensamento ou comportamento pessoal além do bom senso e da opinião alheia. Sim, porque da mesma forma que  se quebra um paradigma para se "adaptar" a outros no ambiente de trabalho, mudamos a forma de pensar e, por excelência, de ser, em função do ambiente social.

Não há estatísticas para isso, mas pais e mães são o tipo de gente que mais abre a cabeça e muda de paradigma por mês no universo explorado, seguidos de educadores e amantes. Nada mais natural. Pais e mães não são donos de seus filhos. Podem nutrir expectativas, o que é altamente não recomendável para ambas as partes, mas muito cedo percebem que a cria não é apenas completamente independente deles (a tal máxima "cria-se filhos para o mundo" faz sentido, de fato), mas é principalmente outro ser, um estrangeiro com algumas características em comum com o seu "molde". E não só um estrangeiro, mas um forâneo em mutação, quebrando ele mesmo seus próprios paradigmas e tentando se adaptar a uma vida que o circunda e gira velozmente. Os pais vivem nada mais que uma ilusão masoquista de que "criam" e ensinam seus filhos quando, na verdade, é exatamente o oposto que ocorre. Filhos ensinam a mulher a ser mãe, o homem a ser um pai. E, no meio do caminho, abrem-lhes a caixola, plantando ali um universo de novas ideias e conceitos, imagens, sabores e sons que, sem a cria, jamais seriam capazes de vivenciar. Aos pais que se recusam a mudar de paradigma, restam filhos vivos, porém a eles abortados.

O papel do educador é vasto e de importância tão meritória quanto à dos pais. Na educação formal, a imagem do professor primário, aquele que marcou a vida do aluno - para o bem ou para o mal - logo vem à tona na memória. A "tia" da educação infantil não é marcante por acaso; quanto mais jovens, mais abertos estamos à influência do meio social e, por consequência, mais "elásticos" estão os nossos paradigmas em construção. Da mesma forma que pais aprendem com os filhos, alunos ensinam seus professores em semelhante, quiçá maior proporção, e por isso o educador precisa ter a mente naturalmente aberta, ser adaptável e estar sempre preparado para mudanças. Imagine uma mãe que possui dois filhos e reconfigura o seu arranjo mental para acompanhar os deles durante o escopo de duas décadas, aproximadamente. Agora, pense na adaptabilidade de um professor que faz o mesmo processo,  mas com milhares de alunos, durante no mínimo quatro décadas, a maior parte de sua vida. É redundante dizer que educadores incapazes de realizar tal processo desistem da profissão logo no primeiro ano de carreira ou são rechaçados da mesma. 

Há muitos paradigmas envolvendo o amor que, por si só, já é um conceito arquetípico. Trezentos anos antes de Cristo nascer e a terapia de casal virar uma tentativa de consertar relacionamentos à beira da falência, Platão já havia categorizado o amor. Ele é a tônica da maioria absoluta das letras de músicas e combustível para a literatura universal, o teatro e o cinema. Cada um tem a sua própria e muito particular versão do que é o amor e como alcançá-lo, e no momento em que constrói a partir desse conceito um modelo ideal, um paradigma de amor se estabelece. Mas quebrar um paradigma como esse, embora bastante comum e necessário para a realização do amor, seja ele como for, é uma tarefa hercúlea porque envolve mais do que uma mudança de pensamento; implica adaptar, moldar ou reformular a própria noção de amor romântico que nutre o inconsciente para incorporar a do ser amado e, por conseguinte, vivenciar com ele a experiência de amor.

Até pouco tempo eu temia mudanças como o diabo a cruz. A vida adulta, com o seu número incalculável delas, foi me tornando mais resistente, ao ponto da insensibilidade. "Adultecer" é, ao fim e ao cabo, aceitar que mudanças acontecerão e que você deverá se adaptar a elas. Não sou uma milennial, ou seja, "adulteci" antes do início do século XXI, o que não me confere o anseio inato pela novidade da galera do Vale do Silício. Em contrapartida, já não digo que odeio mudanças, o que é um avanço considerável; se vierem agregar valor, ampliar meus horizontes ou para me desatolar do lamaçal, serão recebidas de braços abertos, com leite gelado e cookies de chocolate. Dessa forma, a quebra do meu paradigma de amor foi um susto, mas não de assombro; mais uma surpresa, a certeza de que uma grande mudança dobrava à esquina em minha direção, devagar mas inexoravelmente.

Há quem diga que o "amor verdadeiro" não demanda mudanças, aceita o objeto de desejo como ele é. Em parte. A máxima "ninguém muda ninguém" ainda procede. Se Maria tiver que se transformar em Ana para ter um relacionamento romântico com Pedro, então Maria não pode amar Pedro. Desculpe, Maria, vida que segue. Mas daí a não mudar conceitos pré-estabelecidos e rígidos para acomodar o amor, a história muda de tom. Ainda revisito meus antigos conceitos de "amor". Gosto de tê-los guardados em naftalina, nos fundos de gavetas da memória, para comparar com a realidade e sorrir de mim mesma. Seres humanos tendem a atribuir explicações extraordinárias ou românticas ao que lhes faltam respostas lógicas, o que não raro acontece com o amor. Por que ele, por que agora, como assim? Porque era para ser, porque estava na hora, porque parecia amor... e era.