14 de março de 2019

não faça como o tio sam


O vídeo acima não é nenhuma novidade; vem do país líder no número de mass shootings (tiroteios em massa) no mundo. O vídeo é institucional, e foi feito em dezembro de 2012, por ocasião do tiroteio na escola do ensino fundamental Sandy Hook, em Connecticut, Estados Unidos. Adam Lanza, com então 20 anos, dirigiu até a escola numa manhã de sexta-feira e utilizou duas pistolas de calibre pesado para abrir fogo contra alunos e funcionários da escola. Ele feriu duas pessoas e matou 20 crianças entre seis e sete anos de idade, além de seis funcionários, dentre eles professores, assistentes, a psicóloga e o diretor da escola. Lanza cometeu suicídio logo após os disparos aleatórios. Antes do tiroteio, entretanto, ele também havia atirado na própria mãe e a matado, o que a polícia viria a descobrir logo em seguida.

O incidente em Sandy Hook é mais um dos que entram no rol das bizarrices da sociedade americana, que engendra jovens que, aparentemente, matam a torto e a direito. No entanto, Sandy Hook em especial, pelas próprias circunstâncias e pela eventual repercussão política, tornou-se o tiroteio em massa com mais vítimas fatais em uma escola nos EUA, e o quarto com mais vítimas fatais cometido por apenas um atirador. O vídeo faz parte de uma iniciativa de familiares de vítimas de Sandy Hook. Eles criaram a ONG "Sandy Hook Promise", que orienta pais, professores, adolescentes e a comunidade a reconhecer sinais - na maioria das vezes ignorados ou desconhecidos por familiares e docentes - de apologia às armas e à violência, e de bullying, depressão e risco de suicídio em adolescentes. Mais do que isso, a ONG trabalha para conscientizar os americanos em relação à intervenção federal em políticas mais severas de controle do porte e uso de armas.

Sandy Hook Promise  (saiba mais)

Criar uma ONG como a Sandy Hook Promise não é demagogia de esquerda, como alguns afoitos extremistas hão de apontar, mas uma tentativa de trazer objetividade e compreensão analítica a um ato de violência que deve estar associado não apenas a questões culturais e sociais, mas principalmente políticas. De acordo com o "Gun Violence Archive", órgão americano que contabiliza o número de incidentes e vítimas envolvendo armas de fogo, 340 mass shootings ocorreram nos EUA apenas em 2018. Embora o CRS, órgão de pesquisas de política pública do Congresso americano, admita que não haja uma definição amplamente aceita do conceito de tiroteio em massa, um evento onde um indivíduo atira em quatro ou mais pessoas indiscriminadamente e as mata deve ser categorizado como tal. Entretanto, diante das consequências de um mass shooting para as famílias das vítimas, para a sociedade e para a política pública, pouco importa o nome dado aos bois nesse caso. A mancha de sangue e a mácula moral falam mais e mais alto. 

Os dados do "Gun Violence Archive" mostram, entretanto, que quando se trata de posse e porte de armas e de violência, o buraco é sempre mais embaixo. Em um total de mais de 57 mil incidentes com armas de fogo nos EUA em 2018, 340 constituíram tiroteios em massa. Por mais assombrosos, aleatórios e violentos, não foram a maioria. Incidentes durante invasão de domicílio, por exemplo, contabilizaram 2.095; o número de disparos acidentais foi de 1.617; e de defesa pessoal, 1.805. Esses números apontam diretamente para o resultado da facilidade ao acesso às armas de fogo. Mesmo nos casos de legítima defesa - bandeira máxima da 2a Emenda da Constituição americana, promulgada em 1789 e segundo a qual todo cidadão tem o direito de portar armas e formar milícia organizada para proteger um Estado livre, o uso de armas de fogo por civis incorre no aumento da violência doméstica e na comunidade, no aumento de ferimentos (fatais e não fatais) entre os envolvidos, e no aumento de mortes.


Ainda assim, o saldo de tiroteios em massa, principalmente quando ocorrem em escolas, é estupidamente mais contundente, tanto na representatividade numérica quanto na força que as notícias ganham através do seu pathos e do ethos do leitor, por exemplo. Um atirador que mata a própria mãe, vinte crianças e seis funcionários de uma escola, e depois dá cabo da própria vida com um tiro na cabeça, da forma mais casual possível, tem um peso insuportável; é algo injustificável. Não há formas de se construir uma ponte, pinguela que seja, entre este ser-humano dantesco e incompreensível e um que usou a mesma arma para se defender de um assaltante que invadiu seu apartamento no meio da noite e, acidentalmente, tirou a vida não apenas do ladrão, mas a da esposa e da filha. Tal comparação é impossível porque esses universos, ambos segregados mas contraditoriamente amalgamados em violência, são de fato intransponíveis. A única coisa que une o adolescente matador insano e o marido que tenta defender sua família do malfeitor é a arma de fogo; todo o resto que flutua entre esses personagens, toda a vã filosofia, a discussão acadêmica e a treta familiar são questões morais secundárias que não pertencem ao dilema em si. E armas de fogo, os preceitos que as regem e quem deveria utilizá-las na sociedade são uma questão política, e não moral.

Propor debates políticos de gun control nos EUA, com medidas de controle e restrição ao porte e à posse de armas de fogo, é algo culturalmente complexo. Parece haver uma noção primal de que o americano perderia seus direitos inerentes de cidadão e, por conseguinte, de ser humano, se tivesse o seu direito de portar armas garantido pela 2a Emenda revogado. O americano é uma espécie de iconoclasta ao seu modo, onde os símbolos religiosos são uma série de referências kitsch do universo cultural americano que o cidadão verdadeiramente WASP cultua, dentre elas a indefectível figura do cowboy armado até os dentes. Restringir-lhe este poder, este direito, é mexer em um vespeiro político de mais de duzentos anos, e que muitos analistas e sociólogos não veem com otimismo em termos de mudanças. Isso porque a sociedade americana, de acordo com estudiosos, é estruturalmente violenta. Literal e metaforicamente violenta. Engendrada numa violência política e sociológica que move o próprio país e os cidadãos, que quebra a inércia e gera cinética, que promove a própria história. Tanto que a maior parte desse povo livre, democrático, informado e consciente prefere pagar o preço alto e sangrento do porte de armas em contrapartida à participação do Estado em um controle mais rigoroso do mesmo.

O tiroteio na escola da cidade de Suzano, em São Paulo, tem alguns elementos semelhantes aos de Sandy Hook, a começar pela história de um dos assassinos. Tivemos também outros tiroteios em outras cidades, outras mortes; todos leram sobre isso nos jornais e assistiram ao noticiário. Como nos EUA, esses casos são sempre muito noticiados, logo viram estatística. Mas as semelhanças com o tio Sam param por aí. Ou não? O presidente Jair Bolsonaro baseou sua campanha presidencial em grande parte no mote e na promessa da liberação do porte de armas de fogo, e muitos dos seus eleitores o apoiaram exatamente por isso. O Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, segundo o qual está proibido o porte de armas por civis, com exceção por necessidade comprovada, é criticado pesadamente em tempos onde a violência urbana é incontrolável, a polícia é ineficaz ou corrupta, e quando os líderes políticos prometem soluções "mágicas" e que não vão de encontro às causas reais dos problemas. Desemprego, tráfico de drogas, desigualdade social e econômica profunda, favelas controladas por milícias, tráfico de armamento pesado. Questões de ordem sócio-econômica e política complexas são as razões para o aumento da violência urbana, e armar a população não é uma solução para o problema, tampouco uma forma de evitar que ele ocorra novamente. Como os números do "Gun Violence Archive" apontam, o fato de um cidadão possuir uma arma de fogo não impede que a violência ocorra; estatísticas e estudos recentes apontam o contrário, na verdade. Estar armado, embora aumente a sensação de controle e de segurança do indivíduo em posse da arma, aumenta também as chances de erro do usuário e, portanto, de ferimentos, lesões e de morte entre os envolvidos em um provável incidente.

acesso a armas X conflitos com mortes (saiba mais)

A história brasileira é diferente da história americana e, enquanto povo, somos estruturalmente diversos. Não temos uma 2a Emenda, e isso talvez seja ótimo, porque somos livres para voltar atrás numa decisão de dois séculos. Ainda há tempo para que o governo como um todo - legislativo e executivo - repense sua decisão de flexibilizar o porte e a posse de armas de fogo, principalmente depois do evento em Suzano e da repercussão que a coisa toda gerou e ainda vai gerar. Ninguém quer carregar nas costas o peso da possibilidade de ficar feito os malucos dos americanos, um caso de tiroteio em escola por semana. Mais do que isso, a responsabilidade de fazer justiça com as próprias mãos traz consigo também o ônus do erro, da dúvida, do julgamento, da consciência. É para contornar este equívoco e para isso que existem o Estado e a política, fundamentalmente para regulamentar a vida em sociedade. Se cada homem decidir tomar para si o papel de Leviatã, empunhar uma arma e fazer justiça, haverá poucos e parcos heróis e paladinos quixotescos, mas copiosos matadores de aluguel e assassinos em série. 

10 de março de 2019

a bruxa da vez



Após a polêmica com o vídeo escatológico envolvendo samba, (purp)urina, glitter e paetês no Twitter, aventura que lhe rendeu duras críticas tanto de opositores quanto de apoiadores, Bolsonaro continua tomando decisões importantíssimas no terreno que mais lhe apetece:  a vida sexual (alheia). A mamadeira de piroca e o kit gay, ambos objetos tão fictícios quanto unicórnios, foram deixados de lado. Dessa vez, é algo muito real e fundamental para a educação sexual e a saúde de adolescentes que está em jogo.

O inimigo da vez é a caderneta de saúde do adolescente. As páginas finais da caderneta, apontou o presidente, trazem imagens “inadequadas para crianças”. Há uma ilustração de uma vulva e outra que ensina o leitor a colocar um preservativo em um pênis. Bolsonaro orientou pais e mães a verificar a caderneta e, se acharem que é o caso, arrancar as páginas finais. Também disse que o Ministério da Saúde imprimirá novas cadernetas, sem essas páginas e a um custo mais baixo. 

Porque, como já sabemos, educação sexual não é um papel de profissionais conceituados da escola e de um estado laico, segundo o presidente e sua ministra evangélica da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, mas dos pais e da família, por mais tortos, preconceituosos, abusivos e ignorantes que sejam. Segue a foto “inapropriada” (sic) de uma das páginas que o presidente quer arrancada da cartilha, cujo conteúdo, como já diz o nome, é educativo.



8 de março de 2019

NÃO dê flores; estenda a mão


O Expresso vinha abandonado às traças já há algum tempo. Sabe como é; a vida prática e repleta destes pormenores importantíssimos e chatíssimos que ninguém pode deixar para depois - como trabalhar doze horas por dia, criar os filhos, cuidar da mente, do corpo, da vida alheia e ainda acompanhar o circo mambembe de Brasília em plena chuva dourada carnavalesca - atropela a introspecção, esta que impera sobre os sentidos e põe em ordem as ideias para que as palavras, embrião-pensamento, se torne esta coisa concreta que você pode ler agora.

Mas toda hora é qualquer hora para sair da inércia ou, neste caso, para entrar na toca do coelho de Alice no país das ideias e da reflexão. Porque basta chegar o bendito mês de março, essa época de águas abundantes e planejamento e cuidado urbanos nem tanto, temporais, deslizamentos de terra, enchentes com inúmeros desabrigados e, neste ano, Carnaval politizado, com direito a presidente chateado e bloqueado no Twitter e uma Sapucaí alagada, para mulheres brasileiras de toda idade, cor, credo e conta bancária começarem a receber "correntes" de parabéns pelo Dia Internacional da Mulher no WhatsApp. E a desinformação sobre a homenagem não para por aí. Promoções em churrascarias, ofertas imperdíveis (sic) em lojas de eletrodomésticos, rosas murchas ofertadas por funcionárias exaustas em postos de gasolina, jantares a dois em meio a silêncios constrangedores, parabéns por ser mulher (!), ditos entre olhares em elevadores impessoais à guisa de bom dia e, como não, a indefectível promoção do motel pertinho da sua casa. Mas essa oferta é enviada exclusivamente para celulares e emails de clientes masculinos, por motivos óbvios e, claro, machistas.

Nenhuma dessas mensagens-spam ou de corrente me abalou grandemente. Todo ano é sempre a mesma ladainha insossa e desprovida de conteúdo. Mas toda hora é qualquer hora para sair do próprio centro ou, neste caso, para dar um basta a si mesmo e deixar claro para o mundo, ainda que o "mundo" seja o infinitesimal e inflado universo da bolha que cerca a cada um de nós, que há algo de muito errado nesta concepção cultural e sócio-política do Dia da Mulher e, de quebra, do feminismo. Talvez ainda mais, e sobretudo, porque o dia tenha vindo no vácuo deste Carnaval tresloucado pela politica conturbada que se vive no país, pela noção incrivelmente torta e extremista que o lado da direita tem do lado da esquerda e vice-versa, do caleidoscópio cinza e horrendo de acontecimentos que vem soterrando tudo e todos, literalmente, em lama, em fogo, em água, em sangue, num ódio e numa confusão que estreitam a noção de liberdade, de esperança, da própria existência do brasileiro.

Ocorre que, em meio ao caos que existe em paralelo às questões da mulher, há ainda uma forma torpe e completamente distorcida de se "celebrar" o Dia Internacional da Mulher, definindo-a por estereótipos absurdos e inadmissíveis. As águas de março não trouxeram bossa, mas uma enxurrada de posts nas redes sociais sob o mote "ser mulher é", correntes e mensagens publicitárias no WhatsApp, ideias repetidas e perpetuadas ad nauseum de figuras de mulheres abstratas, mulheres-personagens, mulheres que outros indivíduos desejam que a mulher seja, ou imponham que ela seja a todo custo: louvores para a mulher mãe (como se o pai pudesse ser mãe, mas vá lá...), a mulher esposa, a mulher namorada, a mulher que trabalha, a mulher temente a Deus (!), a dona de casa (esta já até perdeu a alcunha de mulher), a mulher amante (porque ela tem tanto valor quanto a esposa), a mulher que treina (?), enfim, toda sorte de categorias que vão do pleonasmo ao simplesmente esdrúxulo. E, ainda assim, o que fica muito claro é que ainda inexiste a compreensão do significado real desse dia ou, sob uma lógica menos leibniziana, há um fingimento de que esta forma patética de elogios e celebração é o que cabe à mulher e a representa.

A ideia de celebrar o Dia Internacional da Mulher surgiu nos EUA e na Europa, no final do século XIX e início do século XX. O contexto eram as lutas feministas por melhores condições de vida e de trabalho, e pelo direito de voto. A a dor e a morte também ajudaram. Um incêndio catastrófico numa fábrica de tecidos em Nova York, em março de 1911, que matou 129 mulheres e 23 homens, também impulsionou esta luta. É nesse cenário que se inicia o movimento de emancipação da mulher, e os desdobramentos sociais, políticos e econômicos desse movimento mudaram profundamente a sociedade e a forma como esta se organiza. Foi devido a essas conquistas que as operárias e sufragistas guerreiras do século XIX pariram o Dia Internacional da Mulher: para lembrar a luta, para celebrar a dor que deu frutos, para berrar para o mundo dos machos que a fêmea tem força, tem voz, tem vez.

No entanto, ainda não há conclusão ou vitória possíveis para a luta por condições de trabalho justas, por direitos plenos, pela superação de preconceitos de gênero e, sobretudo, pelo fim da violência contra a mulher. Em fevereiro deste ano, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) destacou que, em menos de dois meses, ao menos 126 mulheres foram mortas no Brasil, além de outros 67 casos de tentativa de feminicídio, em mais de 90 cidades e 21 estados. Somos o primeiro país em números de feminicídio no mundo, uma estatística não apenas apavorante, mas acima de tudo tremendamente abominável. É é para organizar a sociedade civil na luta contra essa barbárie, pelo direito de voz a todas as mulheres, e pela igualdade plena de gênero, que o movimento feminista existe e relembra o Dia Internacional da Mulher. Não é para mostrar os peitos na rua, urinar, defecar, e toda sorte de loucuras escatológicas que tentam fazer os desavisados acreditar. É para garantir que você, que eu, sua irmã, sua esposa, sua mãe, e toda e qualquer mulher existam em sua integralidade humana, invioláveis.

Por isso, não parabenize uma mulher por ser mulher no dia 8 de março. Isso é tão surreal quanto parabenizar um homem por ser homem em qualquer dia do ano. Não lhe compre eletrodomésticos de presente; isso é escravizante, é preconceituoso, é um deboche. Ao contrário, abrace a causa do movimento feminista por igualdade de gênero e de condições sociais e de trabalho; não julgue uma vítima de feminicídio ou justifique o ato criminoso por preconceito cultural; não faça comentários machistas; não crie o seu filho para “tomar” e a sua filha para “receber”; não perpetue a cultura da mulher frágil e dependente, ou exploradora e usurpadora. Neste 8 de março, não dê flores; estenda sua mão.

20 de novembro de 2017

Vericídio

"Nenhuma verdade pode ser tão dolorosa que justifique uma mentira". Foi com essa máxima que eu, ainda criança, aprendi a não mentir. A verdade era um negócio muito sério para o meu pai. Ele se doava ao mundo com laços de confiança, respeito e admiração que, segundo ele, só poderiam ser amarrados com transparência e boa-fé. Assim, eu fui ensinada, treinada e moldada para ser um livro aberto, carapuça que me serviu naturalmente, tamanho era o meu temor que confundissem uma possível tentativa minha de "omitir" com "mentir". E, para garantir que alhos jamais fossem tomados por bugalhos, eu dividia livremente meus pensamentos, sentimentos e ações, o que abria um portal para o escrutínio pleno da minha família. Na casa dos meus pais não havia segredos, pelo menos nunca da minha parte - pai e mãe são, afinal, magnânimos, e detém a prerrogativa de nem sempre agir de acordo com as lições que pregam.



Mas a verdade dialética e das discussões filosóficas habita um universo muito distinto da verdade que aprendemos a contar quando crianças e das mentiras brandas ou cataclísmicas que escondemos debaixo dos tapetes da vida. Isso porque, em prática, grande parte de viver em sociedade se apoia no fato de que a verdade precisa ser flexível e conveniente, especialmente na esfera da convivência social, onde cada esbarrar nosso produz arestas pontiagudas demais para que a verdade nua e crua possa ser dita sem consequências desastrosas. Uma coisa é sempre dizer a verdade na proteção e privacidade do lar e à sombra da família; outra, bem diferente e muito mais perigosa, é expressar toda e qualquer opinião a céu aberto, simplesmente porque nunca fomos tão encorajados a ser sinceros, a ter e a exibir uma personalidade forte e a abraçar a nossa autenticidade. Se, há algumas gerações, os pais ensinavam os filhos a observar mais do que falar e, acima de tudo, a calar antes de dizer qualquer coisa ofensiva ou inoportuna, hoje os indivíduos que não falam o que pensam a qualquer custo são taxados de fracos. E mais uma vez os polos se invertem em nosso prejuízo: a verdade que aprendíamos a contar em casa ultrapassa os muros do privado para ganhar proporções sociais incômodas e levianas, ao mesmo tempo em que, no ambiente doméstico, as meias verdades e a hipocrisia infestam famílias que, sem elas, não estariam verdadeiramente coesas.

Você provavelmente desconhece José Datrino, mas este é o nome verdadeiro do Profeta Gentileza, e aqui se entende porque a verdade às vezes é super-estimada. O pregador carioca é conhecido pela frase "gentileza gera gentileza". Da mesma forma, o aparente modismo de se falar o que se pensa em nome dessa tal verdade, gera brutalidade, mal-entendimentos, rancor e isolamento. A liberdade de expressão nunca foi tão livre e desimpedida; hoje, diz-se o que vem à cabeça sem o menor receio de ferir sentimentos alheios; o que importa é que a minha opinião seja preservada e expressada, que a minha personalidade forte prevaleça, que a minha autenticidade se mantenha. Não há mais tempo nem lugar para gentilezas. O cara gentil é fraco. O sujeito amistoso é um borra-botas. A mulher obsequiosa e amável é puxa-saco. Se antes a boa-fé era um sinal de honradez e boa-vizinhança, um convite para portas abertas e aperto de mãos, hoje ela é um escárnio, um deboche moral, uma mácula social, um fardo, um fastio visto por vezes com indiferença outras com desconfiança. "Verdade" e "gentileza" não deveriam, a priori, ser excludentes em si mesmas, mas por alguma razão, não conseguimos processá-las simultaneamente. Aparentemente, quanto mais "verdadeiro" alguém se propõe ser, menos "gentil" em relação ao outro ele será, e esta pode ser uma infeliz dicotomia, feito uma singularidade espaço-tempo para a qual não há equação final. Para resolver tal oximoro, é preciso abrir mão de algum desses vieses: já sabemos que não dá para ser honesto e gentil ao mesmo tempo. E parece que essa escolha já vem timbrada em cada um de nós, muito antes de nos darmos conta da existência do problema.

E esse problema é que em nome da sinceridade brutal e da autenticidade narcísica dos millennials e pré-millennials que se intitulam como tal, a verdade é proferida em vômitos ardidos quando, fosse um pensamento sensato reservado à situação, bastariam um comentário cordial, uma mentira social conveniente, polida e agradável ou simplesmente o silêncio com um sorriso para evitar o desconforto, a ofensa e o ressentimento por parte de quem recebe a bofetada tantas vezes desnecessária. E daí comete-se vericídio: suicídio através da revelação da pretensiosa verdade. Mas o que seria a "verdade" nas relações sociais de trabalho, entre amigos e colegas que se veem a cada seis meses, parentes em reuniões de família, mães do grupo de Whatsapp da escola, a galera da academia, o pessoal da praia, a babá, o namorado, a amante, o marido, os pais? E em que momento começa a valer a pena, realmente, ser tão sincero e ter uma personalidade tão forte e uma autenticidade tão insuportável a ponto de rasgar o peito do outro em função de uma verdade que é muito mais legítima e faz muito mais sentido para você do que para ele? O quão gloriosa, devastadora e pateticamente inútil é a morte de um kamikase, no frigir dos ovos? Porque o vericídio é isso: uma "morte" de dois gumes. Aqui, saem em desvantagem tanto quem foi alvo de um comentário de uma honestidade brutal e devastadora, quanto quem perdeu a oportunidade de ficar calado, para variar.

Fratricídio, genocídio, vericídio. Qualquer tipo de assassinato é condenável, mesmo que este seja um neologismo, porque ainda que a palavra seja inventada, a ideia é muito literal e palpável. Nunca houve tanta liberdade de escolha para pensar, falar e agir, e nunca o indivíduo foi tão valorizado em detrimento do bem coletivo e social. Vem daí a noção exacerbada de que há um direito implícito de dizer o que se pensa, independente dos sentimentos dos outros e das próprias implicações absurdas do que se diz. Mas o preço dessa "verdade" é altíssimo: ela leva consigo a beleza e a candura no tratar entre as pessoas, enterra a tal gentileza sobre a qual o "seu" José pregava, faz com que os indivíduos desconfiem e debochem de quem é deferente e elogioso e, em contrapartida, venerem como forte aquele que tece comentários cáusticos e totalmente dispensáveis ao próximo. Uma barganha miserável, que verdade alguma nesse mundo justificaria. 

13 de novembro de 2017

quando a gente se reescreve

para o meu marido, Raul Neto, que me fez amar o presente e ansiar pelo amanhã

Era sábado, pouco antes da meia-noite. Já tínhamos apelado para o delivery amigo - até para não perder o costume, criaturas de hábito que somos - e esperávamos pela pizza pecaminosa, e não menos incrivelmente deliciosa por isso, que não tardaria a chegar em nossa porta. Eu me deixava balançar de leve na rede da varanda, a visão icônica da preguiça e satisfação em forma de mulher. Fossem os ganchos que seguram o aparato mais antigos e estivessem enferrujados, seria possível ouvir um ranger moroso e doce a entoar o nosso fim de noite. De costas nuas para mim, ele por vezes se virava para sorrir, confidenciar uma memória ou se debruçar ao parapeito, deixando o pensamento viajar para longe. Mas o que lhe tomava o tempo naquela noite, como em tantas outras, era a terra que ele revolvia e as plantas que ele regava, esse absurdo de verde que explodia em vida numa entropia às avessas: cada broto, botão, ramo e raiz nasciam dos dedos dele e sobreviviam na terra e com o ar que respirávamos, alimentados como éramos pela ânsia do presente.


Naquela noite ele não colocou música alguma para tocar na varanda, e a conversa nos embalou por horas. Sempre preferi assim, eu, tão facilmente a tagarela entre nós dois quando ele tem essa habilidade incrível de se desligar do mundo (quase) sem que percebam que ele - pluft! - já tinha ido embora dali há tempos. Um riso começa a borbulhar no meu peito feito o bater das asas de um milhão de borboletas quando me lembro das horas sem fim que passei contando infindas histórias para esse homem, para ao final me afogar naqueles olhos que me fitavam meio perdidos, quase sonados, como que há milhas de mim, mas jamais sem aquele sorriso de lado como recompensa, um candor genuíno a emanar. Jamais me importei. E vem daí a certeza de que você deseja aquele alguém muito específico, e plantas, e varanda, e mesmo as abelhas, se elas vierem. Porque simplesmente não importa que ele não seja "perfeito" aos olhos da humanidade - seja lá o que "perfeito" signifique, porque, a priori, ele é o ideal e muito mais do que você jamais esperou para você.

E porque não houve música, mas papo, ocorre que uma coisa levou à outra e decidi ler uns ensaios antigos postados aqui para o homem da minha vida. E que experiência fascinante - e aterrorizante - foi aquela. É claro que eu me reconheci em meus textos: a palavra escrita é a essência suprema de um indivíduo, e ninguém apaga, passa liquid paper e muito menos varre o passado para debaixo do tapete. Enfim, ali estavam as palavras, as ideias, as cores e sabores (dissabores...?) do "eu" que eu havia sido há um tempo, ou que vinha sendo. Ou, talvez, do "eu" que eu vinha tentando descobrir que era. Sim, porque, na pior das hipóteses, e incluo aqui o meu antigo e bolorento "eu", tem muita gente que fica marcando passo na encruzilhada-mor da vida, vendo a banda passar do atoleiro que é o "ser ou não ser, eis a questão" pós-adolescência. Li algumas crônicas antigas para o meu marido, outras da época anterior aos meses em que nos conhecemos e ainda namorávamos. E, honestamente, suspirei de alívio por ele ser um disperso compulsivo e nenhum grande amante da literatura. Afinal, se você acompanha o Expresso, eu não diria que temas "levemente triviais" (trivialmente leves...?) fossem o forte por aqui. Para azedar o meu sarau, de certa forma eu temia que meu marido se desse conta da mulher que eu me transformara - alguém tão mais otimista - em função daquela que eu deixara de ser - não, eu nem sempre fui assim, embora você saiba disso. Por outro lado, já diz a máxima: "somos a beleza única do somatório de nossas experiências", blá, blá, blá, um eufemismo cool para justificar todo e qualquer desvio de percurso lamentável e ataque de nervos com direito à internação psiquiátrica. Enfim. Tudo vale à pena quando a alma não é pequena e a gente é brasileiro e não desiste nunca.

O fato é que no meio da narrativa dos meus textos fin de siècle - não me leve a mal, ainda os amo - tanto que jamais os deletaria e muitos foram publicados em outros veículos de comunicação - me peguei surpresa com o distanciamento que senti da pessoa que eu fui, que eu era quando escrevi aqueles textos. E, ao mesmo tempo em que me senti aliviada por saber que as cores que me definem hoje, leves, brilhantes e serenas, fazem de mim a pessoa que eu sempre busquei ser, tão diferente dos plúmbeos pesados, metálicos e prenhes de culpa, igualmente não pude evitar sentir um orgulho olímpio por quem eu fui um dia, por ter "maratonado" até aqui debaixo de tanta chuva, trovoada e vendaval dentro de mim mesma. Pode até ser mais fácil nadar em mares rasos, ausentes de angústias, dilemas existenciais ou do puro e simples azar no jogo e no amor. É definitivamente mais confortável e mais prático jogar a vida com o bom e imbatível backhand das certezas absolutas, da auto-estima esmagadora, dessa capacidade sobre-humana que alguns indivíduos possuem de cometer "vericídio" o tempo todo e falar e fazer o que lhes dá na veneta, doa a quem doer. Pode ser mais conveniente e competitivo jogar assim, de fato. Mas, para a fortuna geral, nem todo mundo nasceu para competir. E para esses, como eu, resta a magia de um sábado à noite em que se relê um texto antigo e descobre que, assim mesmo, num piscar de olhos que custou uma vida inteira para passar, a gente se tornou exatamente quem sempre sonhou ser mas nunca havia tido coragem, oportunidade ou espaço suficiente no mundo para isso.

E qual não seria a expressão estupefata no rosto do meu marido se ele realmente estivesse ouvindo aquelas narrativas antigas, de uma mulher tão diferente da sua, de agora... Não por acaso vivo lhe dizendo que ele deveria ter me conhecido "antes dele". Na verdade, quem quer que vivencie um processo de transformação pessoal desta magnitude deveria ter essa chance, se ao menos pudéssemos engendrar universos ideais como este. Assim, poderíamos não apenas reafirmar uma nova e recém-descoberta identidade, mas também privilegiar aquele que foi instrumento e veículo decisivo dessa metamorfose: seríamos, então, a própria oferta de um presente único, intransferível. É preciso muita coragem para viver, basicamente: "matar um leão por dia", já versa o ditado popular. Mais ainda do que coragem para viver um dia de cada vez, é necessária uma bravura descomunal para assumir as duas facetas mais dolorosas de um ser-humano: por um lado, gostar de quem você é, se aceitar desta forma e reverberar isso para o mundo; por outro, não gostar de si mesmo e assumir tal verdade lancinante. Para a moléstia que é a segunda opção, há duas saídas: a fuga para uma vida às sombras, com conseqüências desastrosas irreversíveis, ou a mudança, igualmente dolorosa, mas reparadora e libertadora.

Por um tempo longo demais para manter registro e do qual me orgulhar, não gostei de quem eu era. Faltava-me um universo a ser preenchido e, por outro lado, sobrava uma galáxia de pesos mortos, grilhões enferrujados e falsas cores. Eu tentava fincar raízes e estender meus galhos em terras estrangeiras e inóspitas, velejava às cegas em mares gélidos, dava murros idealistas e sonhadores em pontas de faca de uma objetividade cruel que me dilacerava estruturalmente. Eu sempre tive a esperança de mudar, ou de que o micro-cosmo ao meu redor mudaria, mas jamais consegui sozinha. Houve um tempo em que até a esperança, esta que me define tão crucialmente, passou a me frustrar: para que nutrir expectativas por mudança pessoal se, ainda que você evolua, pouco ou nada ao seu redor será compatível? Por muito tempo eu acreditei que seria para sempre uma versão inacabada e imprópria de mim mesma: um rascunho mal-ajambrado. Mas a rasura é isso: uma segunda chance. A possibilidade de fazer de novo, fazer melhor, acertar. Se não gostamos do resultado final da obra, da nossa própria e mais magnífica obra, do somatório em que acabamos nos transformando, nada impede que tentemos nos reescrever. Aliás, este é o mais honesto, mais digno e o maior ato de bravura e amor que alguém pode encerrar em vida. Tem gente que consegue se reescrever logo cedo; outros, levam o escopo de uma vida inteira para consertar a rasura da alma. Há quem se reescreva sozinho, feito nadador ou qualquer outro atleta individual que compete consigo mesmo, batendo recordes próprios. Eu não nasci para jogar, muito menos para competir. Foi a dois, na grande descoberta do amor e na surpresa do otimismo e dos dias de céu de anil, mesmo quando chove, que eu me reescrevi. Em reconhecimento pela reconstrução da minha vida, pelas noites de sábado na varanda e por todos os sorrisos que me evadiram e hoje enfeitam o meu rosto, eu já devia essa co-autoria ao meu marido. Mas é pela nova obra que sou hoje, por quem sempre almejei ser, que nós brilhamos a quatro mãos.