22 de novembro de 2010

cães, gatos e bonecas


Existe, no círculo de amizades e atividades comerciais onde trabalho, uma figura interessante. É uma balzaquiana bonita e atraente, que não revela sua idade em hipótese alguma, de estatura não muito elevada, mas sempre firme num salto doze, divorciada, dona de uma empresa em franco desenvolvimento, mãe de um adolescente que a respeita e venera, e, daí o motivo de estar em foco aqui, uma mulher que fala o quer, onde quer e como quer. Muitas pessoas falam o que querem, onde querem e como querem. Mas poucas têm um senso de humor afinado e, ao mesmo tempo, brejeiro dessa minha conhecida. Antes de passar adiante uma pérola que a ouvi dizer, é preciso conhecê-la e a algumas dilações convenientes.

Eu a apelidei, carinhosa e ironicamente, admito, de "boneca". Porque ela sempre usa vestidos justos e acinturados, muito bem alinhados, os cabelos pretos e curtos às vezes envoltos por uma faixa, uma pequena bolsa a tira-colo, maquiagem na medida ideal e um perfume marcante e envolvente. Ninguém mais no mundo deveria usar aquele perfume, a não ser ela. Tal essência é a sua marca registrada, inconteste e indelével. A "boneca", como a chamarei aqui, tem uma presença dominante. Quando chega num recinto vazio, logo o preenche por inteiro com sua voz de comando, seu andar ligeiro sobre os tamancos altíssimos, seu olhar perscrutador e indecifrável (ela tem os olhos mais pretos que já conheci. Olhos grandes, negros e que brilham muito), e uma audácia e coragem admiráveis. Imagine uma mulher pós-moderna, dona de si e dos que a rodeiam, com auto-estima tinindo, carreira brilhante, corpo esculpido em academia e liberdade plena. Imaginou? Pronto. Essa é a "boneca".

Em princípio, não senti muita simpatia por ela. A força daquela mulher, a ambição, a astúcia e a liderança dela faziam-me lembrar uma raposa esperta ou uma pantera à espreita. Felinos, para mim, com sua atitude independente, seu porte altivo e seu olhar de desdém, não são animais confiáveis. Daí minha paixão por cães. Submissos, brincalhões, carentes e babões, há cachorros que adoecem e até morrem na ausência de seus companheiros humanos, em oposição aos gatos, que valorizam muito mais o ambiente e o conforto onde moram do que seus "súditos" humanos. Americanos levam essa preferência por cães ou gatos tão a sério que perguntam, no início de um relacionamento, se o outro é uma "dog person" ou uma "cat person". Nossa preferência por felinos ou caninos parece revelar muito da própria personalidade do ser humano, levando-se em consideração o animal como gradiente. Lembro-me de Tereza e seu amor por Karenin, como exemplo. No livro, não posso imaginar Tereza se apoiando no amor por um gato para construir, como o fez com Karenin, dez anos de sua vida com Thomas baseados no tempo idílico da repetição em que vive o cão.

Não é que pessoas fracas prefiram cães, enquanto os fortes adorem gatos. Afirmar algo desse tipo seria de um determinismo anacrônico, irresponsável e surreal. Mas, quando repasso pela memória os donos de cachorros e gatos que conheço, vejo neles algumas características em comum que me levam a crer que humanos que precisam de atenção e de um olhar de credulidade, confiança e dependência pousado sobre eles, tendem a se apegar ao amor carente de um cão, ao passo em que pessoas com um estilo de vida mais independente e despojado, que não lidam bem com a carência afetiva e a constante necessidade de atenção do outro, tendem a preferir a personalidade volátil e desapegada do gato. Felinos são altivos e  independentes demais para um dono que precisa da certeza e da lisonja que o amor incondicional de um cão pode lhe ofertar. Por isso, quando penso na "boneca", não consigo vislumbrá-la com uma coleira na mão, sendo arrastada por um beagle gorducho e barulhento pelas ruas da cidade. Na verdade, não faço a menor ideia se a "boneca" tem ou não animais de estimação. Mas, se tiver, algo no fundo das minhas entranhas me diz que seria uma gata siamesa esbelta e garbosa, cujos passos leves e elegantes pela sala ela nem ouviria. Ou um peixe beta num aquário de cristal, no máximo.

Depois de tantas dilações, volto à história da mulher a quem apelidei de "boneca". Em princípio, por me fazer lembrar um felino, ela não me pareceu confiável. Ao contrário, me inspirou antipatia e desconfiança. Mas, se a primeira impressão que eu tivesse dela fosse a de uma mulher insegura, carente, brincalhona e frívola como um fox terrier, talvez eu tivesse logo estabelecido laços de empatia com ela. E, talvez, como a um cachorro babão, eu não a tivesse respeitado. Mas, então, ela não seria a "boneca", não teria superado inúmeros obstáculos em sua vida pessoal e profissional e, o mais importante, não os teria vencido, tornando-se um exemplo de sucesso. Vejo agora que ela me intimidou com sua força, elegância e auto-confiança. Ou melhor, eu me senti intimidada, já que esta nunca fora sua intenção. Aos meus olhos (e o olhar constrói os pilares da realidade de cada um), ela era a gata altiva e segura de si e eu, o vira-lata acuado, desprezado e carente. Entendi, de alguma forma, que minha desconfiança não era necessariamente em relação a ela, mas a mim mesma. Em outras palavras, eu não desconfiava da "boneca"; apenas não confiava o suficiente em mim mesma para olhá-la nos olhos e me sentir em posição de igualdade (uma atitude bem canina, admito).

Hoje já não suspeito mais da "boneca", embora, sendo de mundos diferentes (ela à moda persa, eu, rolando no chão à cocker spaniel), não possamos, de fato, estabelecer uma relação intrínseca de amizade. Mas, acima de tudo, nutro um respeito profundo por essa mulher. Quando eu a via, olhava (com os mesmos olhos pidões de um lhasa apso) para o chaveiro que ela sempre carregava consigo. É uma joaninha de couro envernizado de vermelho, de tamanho médio, com dois brilhantes no lugar dos pequeninos olhos. Eu amei aquela peça no momento em que a vi. Não demorou muito para que eu, desprovida do orgulho e da elegância felina, logo lhe pedisse que me desse o chaveiro, já que ela tinha tantos outros, tão mais bonitos. Um dia, depois de muita insistência de minha parte, a "boneca" me prometeu que, quando trocasse de carro, me daria a joaninha vermelha. No fundo eu achava que ela estava tentando me engambelar, e logo tratei de ignorar minha obsessão pela joaninha.

Ocorre que a "boneca", muito amiga de minha mãe, ficou sabendo que eu andava passando por uns terremotos, com direito a pancadas de chuva e trovoadas em minha vida e, como faria qualquer cachorro assustado na mesma situação, pus o rabo entre as pernas e logo encontrei um canto do cômodo para me esconder. Quem conhece bem o esconderijo da minha alma pode até ouvir, de longe, o "caim, caim" triste dos ganidos que solto em madrugadas solitárias. Quando soube disso, a "boneca" sentiu-se pessoalmente aviltada. E disse à minha mãe que eu não poderia assumir tal posição derrotista. Claro que, para quem não está no olho do furacão, no meio da tempestade ou soterrado por escombros, fica muito mais fácil aconselhar o "derrotista" a levantar-se do chão, sacudir a poeira, rodar a baiana e se posicionar majestosamente diante da vida. O fato é que assim ela o fez. E, num impulso de generosidade e empatia, deu o chaveiro de joaninha a minha mãe, pedindo para que ela o entregasse para mim.

Quando pus as mãos no "presente", meus olhos marejaram. É difícil, ou melhor, "humanamente" impossível para um gato se livrar de seus pertences. Gatos podem até não delimitar seu território da forma típica como fazem os cachorros, mas valorizam a casa onde moram e não abrem mão dos brinquedinhos que seus donos lhes dão. Eu sabia que dar aquele chaveiro, um objeto de estimação, representava muito para a "boneca", assim como representou muito para mim. Hoje, a joaninha, feita símbolo sob a luz de uma metáfora sentimental, representa uma ponte, um elo entre essa mulher e eu. Quando minha mãe me entregou o chaveiro, disse que a "boneca" tinha dois recados para mim, naquele momento de turbulência que eu estava vivendo.

O primeiro, ouvi minha mãe dizer, era para que eu usasse a joaninha sempre, para me dar a sorte que deu a ela e me deixar "mais alegrinha", já que eu a queria tanto. O segundo recado é a razão pela qual eu havia dito, no início dessa história, que a "boneca" fala o que quer, onde quer e como quer, e ainda enfeita as palavras com seu senso de humor ao mesmo tempo afinado e brejeiro. O segundo recado dela, esse sim, me deixou alegre de fato, porque, na semântica torta da vida, suas palavras me fizeram rir de verdade: "quando o coração amolece, o cu padece". Pode não ser um ditado digno de uma mulher elegante como ela e talvez, na contradição implícita na imagem dela casada com a sua fala, residam toda a originalidade, graça e significado da coisa. Curioso. Não consigo pensar num ditado que expresse com igual força essa pérola da "boneca". E, o mais incrível, não vejo pessoa mais adequada para dizê-lo do que ela, que não se permite abater, e muito menos padecer, quando segue os ditames de seu coração felino, intrépido e guerreiro. 

17 comentários:

  1. Ela não se definiria melhor! E, como a conheço, concordo em gênero, grau e número.
    Sabe que eu nunca reparei na joaninha?

    ResponderExcluir
  2. Hehehe... Pois é. Acho que só eu via aquela joaninha, amigo. Era para ser minha mesmo!

    ResponderExcluir
  3. lucinete22.11.10

    fiquei sem voz... nunca pensei em ler algo escrito com tanta sabedoria e carinho, com beleza nas palavras esse foi de longe o melhor presente que ganhei na vida....
    QUE DEUS TE ABENÇOE

    bjs

    ResponderExcluir
  4. lucineia22.11.10

    ganhou por que mereceu..se nunca escondeu seu jeito de ser...e nunca mostrou fraqueza mesmo, quando estava rastejando...e tudo parecia estar caindo...mas voce ficou de pe...e sempre continuara...beijosss....

    ResponderExcluir
  5. Parabéns, Net, hoje e sempre. Você e toda a sua fortaleza são um exemplo para nós, vira-latas de coração amolecido. Muitos beijos!

    ResponderExcluir
  6. Meus parabéns pelo texto e pela coerencia temática. nunca ví tanta verdade num texto tão bem feito.......ainda bem que conhecemos a LUCINETE...... rssss

    ResponderExcluir
  7. Obrigada, Lúcia! Ainda bem que temos o privilégio de conhecer Lucinete!

    ResponderExcluir
  8. Francinele23.11.10

    Fiquei muito feliz de ver Roberta, como você conseguiu esculpir o rosto da Lú com suas lindas palavras.
    Realmente Ela é um exemplo de mulher...
    Parabéns...

    ResponderExcluir
  9. Alexandre Lindgren23.11.10

    Fiquei impressionado além de muito articulada, vc descreveu uma pessoa que conheço relativamente bem, com muito lirimos e ao mesmo tempo de uma forma simples e fidedígna...vc deve ser muito especial...

    ResponderExcluir
  10. Muito obrigada pelos comentários, Francinele e Alexandre. Escrever é sempre uma cruz, um filho que nasce de uma inspiração e do trabalho de dar forma a esse sentimento. Sem os comentários de vocês, esse trabalho seria muito vazio. Valeu mesmo!

    ResponderExcluir
  11. A verdadeira pergunta que coça as paredes da mente é: Onde reside a maior força? na "boneca" que com palavras destemidas molda sua vida... ou na "maquinista" que relata com consciência e intensidade (mas sem aquele censo chato de derrota) seus furacões pessoais?

    Quem sabe as duas! cada uma a sua maneira. né?!

    Parabéns pelo blog...
    O que lembra que preciso agradecer a responsável pela indicação! =)

    ResponderExcluir
  12. Essa coisa de força é uma marra. Sei lá, eu queria ter a força, a determinação e a coragem da "boneca". Para levar minha vida mais "com as rédeas nas mãos", como essa mulher incrível leva. Mas... Cada um é cada um, tem jeito não!

    ResponderExcluir
  13. Lucimar26.11.10

    Maravilhosamente escrito...Parabens....Quase precisei de um dicionario...rsrsrsrs.
    Nos sempre acreditamos na "Boneca", nos altos e baixos, e somos extremamente orgulhosos por te-la como mana. Te cuida...

    ResponderExcluir
  14. Obrigada, Lucimar. A "Boneca" é um exemplo para a gente! Beijos a todos aí!

    ResponderExcluir
  15. Jane Marins11.12.10

    OLA

    Querida, adorei seu blog. E sabe você não vai acreditar, sou fã incondicional do Milan Kundera. Eu li tanto a Insutentável leveza do ser, que acabei destruindo o livro, preciso comprar outro. rsrs

    Quanto a Boneca, realmente você descreveu ela com fina sensibilidade. A moça da trabalho, mas no fundo é uma boneca que constroi sua vida a partir dos sonhos e sua fé.

    Espero te conhecer um dia pessoalmente. Bjs.

    ResponderExcluir
  16. Oi, Jane! Acredita que o meu "A Insustentável Leveza do Ser" também já está destruído de tanto que eu li? (...rs). Espero conhecer você pessoalmente também. Grande abraço!

    ResponderExcluir
  17. eu preciso ver essa joaninha!

    quer dizer que houve tempos de furacão por aí?
    precisamos falar mais por email... sei que andei sumida, e talvez pelos mesmos motivos seus... há tornados aqui tb... =/

    bjo

    ResponderExcluir