20 de junho de 2011

tombos, escudos e um bunker

Para Marcelo Akstein


O que você faz quando, em galope alucinado, cai do cavalo? Estirado ao chão, as pernas dormentes pelo tombo, o rosto colado ao solo, o pó invadindo-lhe as entranhas pela garganta, arranhando a faringe, sufocando, roubando-lhe o ar? Cada osso seu parece estilhaçado, cada músculo a ponto de se lacerar, abrir uma fenda maior que o mundo, jorrar o sangue que o mantém vivo, encharcar a terra, matar a sede de vida da terra? Você gira os olhos, procura ver onde caiu, se é noite ou dia. Espalma as mãos no solo, mexe a cabeça e cada movimento seu é um estirar de dor latejante, excruciante, vergonhosa. Os segundos parecem se congelar num tempo que cessou de existir. Você está mudo, a boca seca, os lábios rachados. Sua voz não passa de um chiado rouco e você, como a terra, tem sede. Mas o solo de quem cai é estéril, inóspito e desolado e não há água, chuva, nem fonte. Ao cavaleiro tombado não são permitidas miragens. Você está num deserto, mudo, dolorido, colado ao chão, como uma sombra fria e comprida de final de tarde. É sempre fim do dia quando se cai. A noite não tarda a chegar, cobrindo-o com um manto sem estrelas, sem lua, sem luz. E, então, a dor e a aflição não vão bastar; a solidão vai chegar para lhe fazer companhia assim que a noite cegar os seus olhos. Mas a solidão é o pior dos amigos; não lhe estende a mão, apenas o olha de cima, com a arrogância velada de quem tem comiseração. A pena dos derrotados. Você sabe que o sol vai nascer mas que ela, a solidão travestida de piedade, ainda vai estar lá, sussurrando baixinho, com olhar de reprovação: "tsc, tsc, tsc...". Você não quer amanhecer. Sente um sono de letargia mortal, o sono da falta de apetite pela vida, pela luz, pela caminhada. No entanto, noite após noite, o sol há de nascer. Ele não dá trégua. A vida não dá trégua. E então? O que você faz quando leva um tombo, quando pensa que, desta vez, doeu demais, sangrou e cegou tanto que pode realmente não se reerguer?

Dizem que o cavaleiro fica mais forte a cada tombo, que sente menos dor, que fica mais ágil. Isso é balela, história para boi dormir. Não, é mais do que isso. É um mantra repetido em milhares de vozes mudas, um prêmio patético de consolação ao derrotado: "Outro tombo, companheiro? Não se preocupe. O que não mata, fortalece. Da próxima, você vai estar tão forte que nem vai cair. Vai antever a queda. E ainda marcar o gol. Parabéns, amigo! Você é um sobrevivente. Bola para frente, o show deve continuar!". O otimismo inserido goela adentro, feito remédio amargo, pode até melhorar a tosse a longo prazo, mas é invasivo, corrosivo, ultrajante. Pimenta em olhos alheios é caipirinha refrescante na praia de Ipanema para quem não acabou de levar um tombo. Quando está estirado no chão, você suporta ouvir qualquer coisa, menos "bola para frente". Isso é óbvio; você sabe que a vida deve, e vai, continuar, mas ouvir o ululante é afrontoso. Por outro lado, não é de piedade e paternalismo que você precisa. É de tempo, de ouvidos atentos, de um abraço amigo e, principalmente, de alguém que tenha coragem suficiente para se deitar no chão, ao seu lado, afugentar a solidão e, quando o sol nascer em seu peito, estender a mão e ajudá-lo a se reerguer. Frases feitas e telefonemas não atendidos abundam no universo dos tombados; encontrar alguém para se nivelar, sem os malefícios da dó e o jogo do contente de Pollyanna, é o primeiro desafio nesse terceiro, quarto ou milésimo tombo.

Então você levanta a cabeça da lama, sacode a poeira e continua a jogar. E aí começa o verdadeiro desafio: em quem você vai se transformar agora? No cavaleiro de cota de malha, escudo, armadura e espada, pronto para a próxima batalha do amor? Ou no braço-direito do general, protegido e anulado pelas paredes fortificadas de um bunker, ouvindo os gritos dos soldados pelo rádio? No cético amargurado, com senso de humor refinado e cáustico, inatingível e entorpecido, desprovido de sensações, talvez? No solteirão convicto, habitué de bares do momento, velado pela fumaça dos cigarros e pelo cheiro das bebidas? No conquistador inveterado, que vive em serial monogamy, arrasando quarteirões e corações e amanhecendo sozinho, sempre? Num avatar de sites de encontro e relacionamentos, que vive intensa e virtualmente emoções que, outrora, foram reais? Ou, por outro lado, se você não se transformar em absolutamente ninguém que você mesmo, da forma como sempre fora? 

Amizade é um vocábulo peculiar em meu léxico emocional. Você pode ter milhares de colegas, companheiros de bares e baladas, parceiros de goles e cigarros, camaradas de conversas leves e agradáveis. Mas considere-se um sujeito de sorte se você possuir um amigo que seja. Aquele que vai se deitar na lama com você e ajudá-lo a se levantar; a pessoa que ouve o seu pranto frustrado às duas da madrugada ou uma boa piada às onze da noite; aquele que o abraça, chora e ri com você. O indivíduo que, soterrados você e ele pela avalanche do tempo e da distância, ainda conversa como nos primeiros meses de convívio. Talvez eu seja uma idealista e, por isso, poucos - e leais - sejam os meus amigos. Por eles, rujo, mordo e carrego ao colo. E deles, como não poderia deixar de ser, espero o mesmo. Porque amizade é, por definição, estar nivelado. Do contrário, é coleguismo. Colegas e amigos não competem, nem se complementam. Apenas habitam universos distintos.

Há pouco tempo descobri um amigo. Nele vi cicatrizes que são também as minhas, expectativas, sonhos e frustrações que compartilhamos, como bons, velhos e inseparáveis amigos. Ele tem olhos de água, que as pessoas pensam ser azuis, mas que ele afirma serem verdes. Não me importa. São olhos líquidos, cristalinos e, neles, se observados um pouco mais de perto, aflora a essência desse meu amigo. Ele gosta de tênis brancos, jaquetas modernas e cachecóis, não entende lhufas de gibis de super-heróis e diz que sou nerd. Quando está feliz e relaxado, caminha lentamente. Aborrecido, ansioso ou entristecido, dá passos rápidos, normalmente tomando a liderança. Faz piadas em filmes, gosta de cozinhar, toca piano desde moleque e fala não sei quantas línguas. Aceito o rótulo de nerd porque, talvez, eu seja mesmo. Um pouco. Mas é ele quem tem a coleção completa do Star Wars e faz esculturas em argila. Do Homer Simpson. Ele é vasto: lê Dickens e se diverte aos montes com o Austin Powers. Seu sorriso habitual é discreto, com muitos e brancos dentes; mas sua gargalhada é sonora e contagiante. Um cara que nasceu para dar risada, fazer música, contar e ouvir casos.

E que nasceu para levar tombos. O primeiro, há algum tempo, não presenciei porque ainda não o conhecia. Mas senti, pelas palavras dele, a dor que vivenciou então. O segundo, feliz ou infelizmente, vi de perto. Na crônica "De Encruzilhadas e Pipocas"


mencionei que é no furacão e nas encruzilhadas da vida que, às vezes, temos a sorte de encontrar aqueles que entram em nossas trajetórias como companheiros, para permanecer. Nessa, vou além: é na fossa, na lama e no bunker que descobrimos os amigos. Assim foi com o meu amigo pianista, de olhos d'água. Caído, do avesso, machucado e de asas quebradas, ele olhou para mim e não precisou pedir ajuda. Naquele momento, ele era eu, numa derrota que já foi a minha um dia. E se hoje sou eu a lhe estender a mão, amanhã poderá ser ele a me ajudar a levantar de mais um tombo. No escuro do deserto da batalha - e da busca - do amor, o sangue dos soldados se mistura; é apenas um. O que reveza é a doação. 

Em uma semana de trevas, meu amigo e eu trocamos emails que, no final, regados à pizza, idas e vindas pela cidade e à rivalidade de Charles Xavier e Erik Lehnsheer no novo filme dos X-Men, renderam essa crônica. Perguntava-me como ele era capaz de escrever, trabalhar e "tocar em frente" depois de mais um tombo. E ainda caminhar na praia de manhã. Se fosse eu, estaria debaixo das cobertas, cortinas cerradas e ouvindo Montenegro, no mínimo. A esse comentário ele respondeu que, de Montenegro, não conhece nada mais do que uma bebida tal de um bar tal. É incrível como alguém essencialmente bom pode, mesmo num bunker, com três capacetes e um escudo, sorrir e fazer o outro rir.

Meu amigo e eu acreditamos nessa entidade chamada "amor da vida". Houve um tempo, o momento cínico, cético e cinza da minha vida, em que eu não acreditava nisso. Depois, passei a crer que o amor da vida de alguém precisa, por definição, não estar na vida desse alguém, como nas tragédias de Shakespeare, em Tristão e Isolda e em uma centena de outros casais separados pelo destino na literatura clássica. Hoje, tenho uma definição própria, muito minha e muito peculiar, para o "amor da minha vida": é aquele homem que, um dia, hoje, amanhã ou daqui a quantos anos o amor viver - e ainda acredito que haja maneiras de fazê-lo acordar renovado, a cada manhã - vai se sentar comigo no topo de uma colina gramada e, em silêncio comigo, num abraço de cumplicidade e esperança, assistir ao por do sol, até que as nuvens alaranjadas sejam tudo o que se possa ver no céu, porque o sol foi dormir atrás de outra colina. E sabemos que ele vai se levantar no dia seguinte. Por isso acredito que o amor da minha vida, tendo assistido comigo ao por do sol e tendo certeza de que ele sempre se deita e se levanta, terá certeza também de que o amor, tal como o próprio sol, dorme para acordar depois. E depois, e depois, e depois.

Para o meu amigo, o conceito é mais simples e, por isso, ainda mais belo. Para ele, "amor da vida é aquele que sabemos que combina com a gente em quase tudo, que há harmonia e que sabemos que poderemos viver até o resto da vida, acordando de manhã e olhando para aquele rosto amassado e pensando 'que sorte estar do lado dela'. Eu já pensei ter encontrado esse amor da vida, mas hoje vejo que não; que era apenas a ilusão de querer ter encontrado. Enfim, tenho certeza de que o amor da vida não pode ser vencido por tombos, escudos, desilusões e medos. Eu acredito no amor, por mais difícil que possa ser. Porque para mim, além dos sonhos, é o que me faz andar e viver."

Tive certeza de que éramos amigos quando li o último email do pianista, durante a semana das trevas. Para quem estava no chão, ele era ainda mais corajoso do que qualquer outro soldado, caído, imunizado, dormente ou protegido pelo bunker. E suas palavras ainda ensinam, sem que ele ao menos se dê conta disso, de que não basta encontrar o amor da sua vida; você pode ter sido apenas ludibriado pela ilusão do desejo de encontrá-lo. A semana de trevas passou. Meu amigo agora está de pé e caminha. Ainda está ferido, mas as feridas existem para fechar e para que se tornem cicatrizes. Tem gente cuja cicatrização é tão eficiente que a cesura, após um tempo, não passa de uma linha fina, imperceptível. Gente assim não se transforma depois de um tombo; continua sendo quem era, à procura, sem a derrota maior que é o medo. Por outro lado, há aqueles que, ao menor corte, formam queloides incuráveis, hiper-sensíveis, avermelhados e incômodos como corcovas. Acredito que esses, sim, transformam-se em tudo, menos no que já foram um dia. Ou, então, tornam-se insensíveis. Ao ruim e ao feio, assim como ao bom e ao belo. Relacionar-se é uma aposta, um risco. Mas, por mais que tema o tombo, assim como meu amigo, acredito que tem mais chances de vencer, andar e viver quem se permite amar.    

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