14 de abril de 2011

da necessidade de se apaixonar

Para Matheus Mendes 

E assim meu amigo disse, às duas e meia da manhã: "preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem". Vamos aos fatos, que fatos sempre dão credibilidade ao escritor. Ele não disse isso no meio da madrugada. Meu amigo está solitário e mudo, mergulhado na penumbra do apartamento onde mora no Buritis. Seu estômago vazio reclama por uma tigela de caldo de feijão e ele tenta conter o desejo de fumar um cigarro na varanda. É nesse cenário que se entrega ao hábito antigo, tantas vezes maléfico, de consumir-se em pensamentos, planos e questões sem resposta.

Mas às duas e meia da madrugada, quando a mente caminha na corda bamba que liga o passado ao presente e o coração galopa em pelo no peito, é preciso falar. Ele tem essa urgência dorida de dizer o que sente, mesmo sabendo que ninguém irá ouvi-lo de fato. Então escreve ao léu, no muro azul e já meio desolado da rede social mais badalada do momento. As palavras escritas, ao contrário do que se pensa, têm som e cor; as de meu amigo gritavam em plenos pulmões, ecoando do vazio de seu quarto para os dedos trêmulos e, daí, para a noite silente do mundo. Palavras clamadas em azul-petróleo, escuras, pegajosas e enregeladas. Ocorre que na contramão da alvorada e na outra extremidade da solidão pode haver uma alma insone, inimiga de Morfeu, para ler o que um rapaz melancólico tem a dizer. E do silêncio fez-se o eco.

"Preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem".

Já ouvi algumas vezes que sou do tipo que precisa sentir-se apaixonada para viver plenamente. Concordo. Mas tenho uma ressalva a fazer: não somos apenas meu amigo e eu que temos essa necessidade de se apaixonar; todos temos. Antes que o leitor torça o nariz e desista do texto, explico-me. Apaixonar-se não remete apenas ao ato de cair de amores por alguém. Quem se interessa vivamente por alguma coisa, um livro, por exemplo, está apaixonado; o indivíduo que se dedica ao trabalho com entusiasmo renovado está apaixonado; a camponesa que pára a colheita de tulipas para assistir ao por do sol é apaixonada; o engenheiro que projeta prédios por quarenta anos, aposenta-se e passa a pintar aquarelas, acaba de se apaixonar. Dessa forma, a palavra "paixão" tem significados mais abrangentes do que a atração física e a afeição pelo outro.

A etimologia, pedra no sapato do poeta, não poderia discordar mais dessa concepção de "apaixonar-se". O radical da palavra paixão, derivada do grego antigo, vem de pathos, que a rigor significa excesso, passividade, sofrimento e submissão, daí o termo "Paixão de Cristo". Do mesmo radical pathos derivaram-se as palavras "paixão" e "patologia"; por esse motivo alguns psicólogos afirmam que a paixão é o estado febril, delirante e patológico do amor. A bem da verdade essa diferenciação entre amor e paixão, que tanto consome a moderna literatura psicanalítica e o tempo de estudiosos do ramo, sempre me causou um penoso estado de letargia. É tedioso categorizar sentimentos humanos e estúpido tentá-los diferenciar com base na intensidade e na duração dos mesmos. "Você a ama ou está apenas apaixonado por ela?"; "Severino foi o grande amor da minha vida, mas já tive muitas paixões"; "Se a paixão fosse realmente um bálsamo, o mundo não pareceria tão equivocado". É muita dúvida e complicação para algo tão natural e inerente ao ser humano.

Esperto mesmo era o Luís de Camões, que no século XVI escreveu sobre o sentimento da paixão e, num golpe de mestre, nomeou-o "amor". Em um dos seus sonetos mais populares, o poeta português manda a etimologia e a filosofia às favas e se contorce em seu túmulo de tanto gargalhar dos acadêmicos que, quinhentos anos depois, debateriam sobre amor platônico, amor romântico, amor pragmático, paixão e perda de individualidade, paixão e entrega, paixão e patologia e sabe-se lá quais outras denominações obtusas para algo tão abrangente.  

"Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É nunca contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É querer estar preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade (...)"

Sigmund Freud, aquele para quem um charuto às vezes é apenas um charuto e pai da psicanálise, cunhou o termo libido para a pós-modernidade. Aviso aos navegantes: para Freud, às vezes um charuto pode ser um kibe e libido não designa apenas desejo sexual; é a energia necessária para que o homem movimente seus instintos de vida. Em outras palavras, libido é vitalidade, transformação, preservação e evolução. Na ausência da libido, o indivíduo é desprovido de energia vital para preservar sua espécie e buscar qualidade de vida; é um espectro. Aqui, não se discute paixão e amor como sentimentos antagônicos; nesta seara, os opostos extremos são a libido e o instinto de morte. No livro “Além do Princípio do Prazer”, Freud utiliza, no lugar de "libido", o conceito de eros como sinônimo daquele, que descreve como sendo a energia que impulsiona a vida. Na obra “Psicologia de Grupo e Análise do Ego”, definiu a libido como sendo a "energia de tais instintos, que tem a ver com tudo o que pode ser resumido com o amor."

"Preciso me apaixonar para sempre de novo, mesmo que seja só até a semana que vem".

Apaixonar-se é sair do estado de torpor e inatividade ao qual a rotina, as decepções e as frustrações nos acorrentam; é abrir os olhos, aguçar os pensamentos, sair da sombra e brotar ao sol; é transformar-se, reconstruir-se, reescrever-se; é sentir fluir na alma e na carne a tal energia vital que Freud mencionava; é entregar-se a eros, à libido, ao amor. À paixão. Meu amigo diz que precisa se apaixonar para sempre; vou além. Ele, você e eu precisamos estar sempre apaixonados. Ocorre que o mercado de musas inspiradoras, trabalhos adoráveis e felicidades plenas é escasso e nada generoso. Então é preciso que escavemos do peito inspiração, admiração e, se não felicidade, ao menos ausência de sofrimento. O Vinicius rogava que o amor - "amor", cara-pálida, não "paixão" - fosse eterno enquanto durasse. Esta plenitude atemporal, suspensa no espaço-tempo como um satélite no vácuo, é o desejo do meu amigo. E o de Vinicius e de Camões. E o de Freud. Com você e comigo não haveria de ser diferente.

14 comentários:

  1. Pri Rohem14.4.11

    E viva a paixão!!!
    Vc tinha que sern colunista de revista feminina, revista de domingo ou até da Playboy... temos que arrumar uns contatos. Urge! Não podemos deixar seus textos brilhantes somente no universo virtual. Eles merecem ser impressos e ter grande circulação. Beijos

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  2. Ô, minha linda, só você pra levantar o meu astral cabisbaixo de quinta-feira! Amei a idéia de ser colunista da Playboy. Imagina! Contatos, contatos, contatos, urge!

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  3. Você uma vez disse aqui que meus comentários sobre seus textos são os que mais refletem a você mesma.
    O que eu senti sobre isso tudo que vc escreveu é que, seu texto sobre o meu comentário, reflete a mim mesmo.
    Espelho.

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  4. Seu comentário faz o esforço do meu trabalho valer cada linha, cada lágrima, cada elucubração. Obrigada, amigo caro; esse texto reflete a mim também.

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  5. Anônimo15.4.11

    love lee rssss
    maíra

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  6. Vixe... Maíra, criatura, você por aqui! Trem bão sô, rsrsrs!

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  7. Alberto Lacerda15.4.11

    Roberta....Paixões vem e vão. Amores ficam. Amizades duram uma eternidade...Mais uma vez,um texto brilhante!Faltam-me palavras pra expressar tamanha emoção!!Beijos!!

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  8. Obrigada, amigo. Só não vejo tanta diferença entre amor e paixão; acho que são sentimentos que ocupam as faces de uma mesma moeda, entende? Abraço enorme!

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  9. Anônimo22.4.11

    ...mais que precisar estar sempre apaixonada, eu preciso amar com paixão. Talvez haja o amor calmo, de águas a passar por rochas, e o amor que ameniza, mas eu repouso na paixão, eu sinto a suavidade na paixão, a minha própria calma é amar no intenso, que seja o arrebatamento que me causa uma flor por ser colorida e simples, seja um poema por ser pura alma, seja alguém por ser o tal do amor da minha vida.
    Sem o impulso e a veemência o retrato em preto e branco não me interessa. Há tantas e muitas formas de ser intenso e ter paixão, e as que nada têm a ver com prisão são bem mais amplas e bem mais pelo coração facilmente consagradas que as que as narradas em histórias de amor de perdição.

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  10. Amiga, você disse tudo. E parece que, de longe, lia os meus pensamentos. Ainda nesse fim de semana eu dizia: "amo apaixonadamente". Temos ou não sincronia?

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  11. Anônimo12.8.12

    Meeeeu, que texto perfeito! Adorei a maneira que você descreveu o facebook, sem falar do resto do texto, de mais importância, que descreve algo tão complexo de se descrever, com clareza!

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  12. Obrigadíssima, Anônimo. Seja mais do que bem-vindo ao Expresso!

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  13. Obrigadíssima, Anônimo. Seja mais do que bem-vindo ao Expresso!

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  14. a maneira como você se coloca me inspira parabéns !!!

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