21 de dezembro de 2010

reclames


Alguém tem a menor idéia do porque a TV por assinatura tem veiculado tantos anúncios de creme dental, enxaguante bucal e repelente? Seria uma preparação para o Apocalipse, quando a humanidade seria extinta em grande estilo, com dentes brilhando e sem uma única picadinha de mosquito? Quer dizer, se a TV é paga a priori, justo seria não haver comercial nenhum, a não ser aqueles referentes à programação do próprio canal. Mas estamos já tão acostumados com a "hora do intervalo" que aceitamos a propaganda na TV por assinatura sem muita rebeldia, com docilidade inclusive. Tem gente que até aproveita os reclames para fazer um lanche rápido, estourar uma pipoca, ir ao banheiro ou ter uma DR básica com o namorado pelo telefone. Isso sem falar em usar os comerciais para ir ao tweeter seguir a programação.

Entretanto nada, absolutamente nada justifica a quantidade de anúncios de creme dental, enxaguante bucal e repelente. Na verdade, os comerciais são os mesmos e ficam se repetindo num looping cruel, com requintadas pitadas de sadismo e nenhuma perspectiva de fim. Confesso que frases como "você já escovou os seus dentes hoje?", "a recomendação dos dentistas", "você tem placa nos dentes?" e "ele deixa você livre de insetos e com uma sensação tão gostosa na pele" estão de tal maneira enfronhadas em meu subconsciente que já até sonhei com dentistas sociopatas que me perseguiam em seus guarda-pós muito brancos em contraste com seus cabelos muito pretos (porque, em nome da brancura, nenhum desses dentistas de comercial pode ser louro, ou ruivo, ou negro, ou punk).

Você até decora os nomes das marcas. Lembra-se perfeitamente de qual pasta precisa comprar se tiver sensibilidade nos dentes e não puder tomar aquele copo d'água gelada que o dentista almofadinha oferece no comercial; você compreende que é vital levar um repelente em sua viagem de férias para ter aquela "lembrancinha de Fernando de Noronha" ao invés de picadas indesejáveis de pernilongos; você  aprendeu que se não usar o enxaguante bucal com tartar control seus dentes irão basicamente apodrecer e cair, e você vai invariavelmente ficar para titia. Em outras palavras, é indiscutível a eficiência desses comerciais, dada a lobotomia a que nos infligem a cada exibição entre um reclame e outro.

A coisa começa a ficar tortuosa e esquisita quando, em sinal de protesto, você passa a não escovar mais os dentes, a bochechar com omo e/ou venish - o poder do rosa! -  e a trocar seu Dolce & Gabbana floral por aerossol que protege contra os insetos. Contra os insetos! Basicamente esses são os produtos anunciados na TV paga brasileira: creme dental, enxaguante bucal, repelente, sabão em pó, perfumes e spray para mosquitos. A variedade é tão pequena que os comerciais se repetem à exaustão. Talvez fosse mais conveniente para a TV por assinatura - e menos neurotizante para a audência - parar de tapar o sol com a peneira e começar a anunciar todo e qualquer tipo de produto de uma vez por todas, para evitar tanta repetição.

Ver a mesma coisa um milhão de vezes durante a sua série de detetives favorita pode surtir efeito rebote, ou seja, ao invés de comprar e usar o determinado produto como recomenda a propaganda, o telespectador perde sua sanidade mental, começa a ter espasmos involuntários na frente da TV e se revolta contra ele, numa cruzada imaginária contra dentistas, donas-de-casa e borrachudos. Ainda em tempo: acabei de tomar uma tigela de leite com sucrilhos (afinal, tem outro nome para cereal matinal de milho...?). Agora adivinhe se eu vou escovar os meus dentes com a marca número um em recomendação dos dentistas? Faz-me rir. Sorriso, haaa!

19 de dezembro de 2010

galera "gonna fly" com Rocky


Esse post complementa o "Go, Rocky!", posterior a ele. Nos créditos finais do último filme de Balboa, uma multidão sobe as escadas do Museu de Artes da Filadelfia ao som de "Gonna Fly", música tema do filme, e comemora no topo, cada um a sua maneira. Para os fãs do boxeador mais cool de todos os tempos, não há forma mais apropriada e legal de terminar a saga dos seis filmes. 

Go, Rocky!



Filmes de Natal são geralmente muito cansativos, sem falar nos roteiros, que são basicamente a variação não muito criativa do mesmo tema: o filho pródigo que à casa torna, dessa vez com a noiva, para cear em família e confrontar seu Complexo de Édipo invertido, as DRN (Discussões de Relacionamento Natalinas) típicas que culminam na resolução de inúmeras neuroses antes da chegada de Santa Claus, o moleque endiabrado que os pais esquecem em casa e você já sabe todo o enredo de cor. É inevitável. A uma semana do Natal começa nas televisões paga e aberta a maratona de exibições desses "clássicos" e, o mais espantoso, a indústria cinematográfica americana, que parece nutrir uma obsessão à parte pelo tema, continua produzindo essas pérolas no mesmo ritmo em que a MGM, há sessenta anos, produzia seus inesquecíveis musicais. O X-mas movie, como é chamado, já é um gênero consagrado da liturgia norte-americana de Natal, tão essencial como o peru, as meias penduradas à lareira, o boneco de neve com uma cenoura no lugar do nariz e o indefectível mistletoe, aquela plantinha parasita com frutos vermelhos que os gringos usam para adornar suas guirlandas. O filme de natal não precisa necessariamente estar direcionado ao público infantil, como "O Grinch", "Scroodge", "O Expresso Polar" e "As Crônicas de Nárnia". Basta que haja neve, uma história de amor com final feliz, gente se reencontrando no La Guardia e o eterno tema da culpa e reparação para que a película seja rotulada como um X-mas movie.

Há que se respeitar as tradições, mesmo que não se comungue delas. E, em termos de tradições natalinas, não há povo mais prolífico e imagético do que o anglo-saxão. Mesmo que você nunca tenha passado um único X-mas Eve na Inglaterra ou em qualquer estado da ex-colônia britânica, seu lastro cultural é de tal forma difundido que já habita parte do nosso próprio repertório natalino. Sempre penso nisso quando vou a algum shopping nessa época do ano e me deparo com o papai-noel de barba de algodão e trajes vermelhos, crédito da Coca-Cola Company, é importante lembrar. Quer dizer, não é difícil pensar na estranheza de um sujeito da tez morena de sol tropical, encapotado de vermelho, sentado num trenó puxado por renas de papel machê, uma garrafa de Minalba geladíssima a seus pés e um enorme ventilador a sua frente, para impedir a desidratação do pobre Noel devido aos quase quarenta graus do Rio de Janeiro. O ideal de Natal que compramos é tão perfeito, limpo e lindo que ninguém imaginaria, por exemplo, um membro da tribo dos Tapajós distribuindo talos finos e macios de cana-de-açúcar para a criançada sob uma frondosa mangueira e pegando carona num boto para voltar à sua fábrica de brinquedos lá no distante Amazonas. Esse é o poder imagético da cultura: não se pode adaptar um modelo pronto a uma realidade diversa. Ou se compra esse modelo e o adota integralmente, ou inventa-se uma mitologia própria, totalmente específica, para adornar os ritos culturais.

Por esse sentimento de estranheza que tenho quando vejo guirlandas de mistletoe, dúzias de candy canes - os pirulitos em forma de bengala - e bonecos de neve enfeitando nosso natal ensolarado e esturricante, não vejo legitimidade na maneira como celebramos o Natal. O choque entre as incomunicáveis formas do kitsch cultural anglo-saxão e latino-americano é o que gera em mim certa repugnância do Natal, da árvore com pisca-piscas e dos atores vestidos de Santa Claus, que as crianças menores, com sensibilidade estética mais aflorada e pura do que a de marmanjos indiferentes, temem como ao bicho-papão. Na verdade, dá até para dar umas boas risadas nessa época. Dia desses, durante minha caminhada vespertina na cidade, passei pela sacada de uma casa que se destacava com guirlandas enormes, mistletoe para dar e vender, um boneco de neve de isopor sorridente e um pinheiro de plástico digno das mais autênticas florestas de coníferas do Canadá, com uma reluzente estrela de Davi na ponta e pinhas salpicadas de neve artificial. Olhando aquela sacada e o cenário cuidadosamente montado, senti-me no ringue de patinação do Rockefeller Center. Ocorre que a tal casa se situa bem acima de um boteco super movimentado do qual, por um desses mistérios aos quais nos foge a compreensão, começou a tocar um axé "arretado" naquele exato momento, num volume de nem sei quantos decibéis. Ali estava o absurdo confronto entre o kitsch anglo-saxão e o kitsch tupiniquim.

Da mesma forma que esse confronto me faz sentir estranheza com relação à celebração de Natal e a todos os elementos dela imbuídos, os X-mas movies também o fazem. Daí, para não ficar numa constante geléia cultural e não sentir meu cérebro derreter com as canções do Bing Crosby, eu evito a programação nessas duas últimas semanas como o diabo corre da cruz. Ontem à noite assisti, pela milionésima vez, a um filme sobre a Guerra do Vietnã de que gosto muito. Não há nada mais reabilitante no Natal do que uma salva de tiros cruzados entre vietnamitas e soldados americanos prestes a perder o que restava de sua inocência. Mais tarde, conferi a programação de um canal pago, mas logo desisti quando vi a cara verde do Jim Carey, praticamente irreconhecível na pele do insuportável Grinch. Num protesto solitário, assisti ao "Labirinto do Fauno", uma fábula sombria do diretor mexicano Guillermo Del Toro. A visão dos rebeldes de tocaia nas montanhas espanholas, lutando contra o regime opressor de Franco, e a construção de identidade de uma menina cujo companheiro de aventuras é um bicho-de-pau que vira fada, levou-me definitivamente para longe, muito longe do Grinch.

O Universal Channel Brasil resolveu reprisar na manhã de hoje "Rocky Balboa", de 2006, algo que me fez pensar sobre essa pantomima de dezembro. Todos os cinco filmes da série foram lançados no Natal, nos Estados Unidos, e isso não aconteceu por acaso. Em outras palavras, os produtores de "Rocky" categorizam-no como um X-mas movie ou querem que a gente acredite que seja um. Para mim, isso sempre foi uma contradição porque não vejo em Balboa muito apelo aos corações encantados pelo Jingle Bells. Talvez a história de superação do boxeador e a própria idéia de uma nação construída por imigrantes bastem para que o filme seja considerado uma boa opção de entretenimento no Natal. Enfim, "Rocky" é um desses filmes que eu preciso ver, não importa a hora nem a época em que esteja de reprise na TV. Quer dizer, depois do Superman, do T-101 e do Maverick, Rocky Balboa é o herói de grande parte da população que viveu o auge da adolescência nos anos oitenta. Talvez seja a escalada rumo à vitória do "Italian Stallion" interpretado por Stallone, ou a cena clássica do boxeador erguendo os braços para o céu após subir as escadas do Museu de Arte da Filadelfia, ou as lutas coreografadas para ferver o sangue do espectador ou, simplesmente, a música tema eletrizante, "Gonna Fly Now", de Bill Conti, vai saber. Mas, contra fatos não há argumentos. Rocky Balboa rules, e mesmo que ele enfrentasse Ivan Drago, Clubber Lang ou o durão Apollo Creed com um gorro vermelho na cabeça, ainda assim seria o bom e velho Rocky.

No filme que o Universal exibe essa semana, o sexto da série, Balboa está viúvo e vai ao ringue pela última vez para enfrentar o campeão mundial dos peso-pesados, Mason Dixon. A película em que foi rodado lembra em tudo o primeiro filme, de 1976. Mickey, o antigo treinador de Balboa, está lá. A música tema, a escadaria do Museu, o açougue e as corridas pelos subúrbios da Filadelfia também. A camaradagem e o forte senso de família do boxeador são os mesmos. Stallone, com sessenta anos em 2006, ano em que a última seqüência foi lançada, tem rugas e bolsas de gordura ao redor dos olhos e a voz enrouquecida pela idade, mas os músculos do peito, dos braços e do abdômen ainda fazem inveja a muitos garotões sedentários de vinte e tantos anos. O lema do filme é simples e condiz com a figura do "coroa" de cara inchada que, há exatos 30 anos, estava no topo da cadeia alimentar do boxe profissional: na vida, não importa o quanto você bate, mas o quanto você aguenta apanhar firme até o final. É um clichê catchy e agradável de se ouvir, que você compra com facilidade e, sem se dar conta, acaba torcendo pelo "garanhão italiano" agora da mesma forma que torceu nos outros cinco filmes. 

A razão pela qual os filmes de Rocky são sempre lançados no Natal ainda se mantém um mistério para mim. Tudo é muito melancólico para combinar com a efervescência natalina que o povo tanto aprecia: Filadelfia, cenário e personagem dos filmes, é uma cidade que ostenta mais o antigo do que a modernidade dos shoppings e das inevitáveis compras de Natal; Balboa é um lobo solitário, que vive o sonho americano mas jamais abandona seus companheiros negros, latinos, pobres e marginalizados; embora o enredo seja sempre uma história de superação pessoal, o clímax dos filmes são as cenas de luta, em que o diretor não nos poupa do sangue, de cortes no supercílio nem de olhos inacreditavelmente inchados; a música tema e a inesquecível "Eye of the Tiger" têm um ritmo de marcha e guitarras que destoam dos sinos e harpas dos carols natalinos. Até as cores privilegiadas, muitos tons de cinza, céus nublados e penumbras, são um contraste com a iluminação efusiva e o multicolorido habitual de filmes do gênero. O fato é que Rocky faz parte da programação de Natal da TV brasileira e, felizmente, não me lembro de nenhum boneco de neve nem de um único ramo de mistletoe em nenhum dos seis filmes. Mas a negação psicológica é um fenômeno poderoso e talvez Adrian, a esposa de Balboa, possa ter decorado a casa num ou outro Natal o que, então, eu apagaria convenientemente da memória.

18 de dezembro de 2010

para sobreviver ao natal

Uma modesta lista de ativos, duráveis, comestíveis ou não, para passar incólume pela noite de 24 de dezembro, amanhecer firme para o almoço do dia 25 e, o mais importante, partir em direção ao 1° de janeiro com alguma dignidade e/ou sanidade mental. Sugestões bem-vindas nos comentários.

1. Rabanada. Muita rabanada para encher a cara, afogar as mágoas, manter a elegância e a coordenação motora e, de quebra, estar de acordo com a Lei Seca.


2. Panetones.

3. Rir do seu cunhado que se embebedou de vinho Canção e que, depois do almoço, ronca placidamente no sofá da sala.

4. Fazer contagem regressiva para o Dia de Reis, quando se pode retirar cada um dos enfeites macabros da árvore de natal da sua mãe e dizer para ela que você os guardou numa caixa em segurança.

5. Esconder os enfeites meticulosa e sadisticamente, só para ver o fogo cruzado entre os seus pais e seus priminhos chorando de nervoso diante da primeira discussão do ano.

6. Boicotar as sobras de chester, tender à califórnia e arroz colorido, sob a desculpa de que você acaba de iniciar uma dieta rigorosa que, desta vez, vai funcionar.

7. Reproduzir a Tocata e Fuga em ré menor, de Bach, cento e vinte e cinco vezes na noite de Réveillon, em volume considerável. Essa opção vale para quem tem vizinhos psicopatas, está de fossa e/ou dor de cotovelo ou simplesmente se opõe à animação contagiante do "tira o pé do chão!!!" da Ivete.

8. Estomazil, Engov, Digeplus, Dulcolax e similares. É, a indústria farmacêutica coopera com os abusos alimentícios dessa época de união e paz.

9. Viajar para a China cinco dias antes da virada. Lá, eles não celebram o ano-novo no dia 31 de dezembro e você pode aproveitar para fugir dos fogos barulhentos que seus vizinhos cafonas teimam em explodir.

10. Tirar uma foto sensual no colo do papai-noel mais feio de um shopping na Baixada Fluminense e contar para os familiares mais "distantes" que aquele é o seu namorado ator. Depois, ficar à espreita, da porta da cozinha, observando os rumores sobre a sua péssima capacidade de escolha fervilhar e animar a galera.

11. Encher uma garrafa de Moët & Chandon do ano passado com água gasosa e pagar de star em Copacabana, rindo da galera que espirra Sidra Cereser nos familiares incautos.

12. Aproveitar-se do súbito espírito natalino que contagiou o seu chefe e pedir um aumento para ele. Se falhar, você pode fazer uma cara de sofredor e chamá-lo de Scrooge capitalista.


13. Sugerir um "Inimigo Oculto" na empresa ou em casa, só para entreter os convivas, e presentear o felizardo que você tirou com aquelas meias lindas que a tia Beth lhe deu no natal passado. Cuecas, camisas-xadrez, livros de auto-ajuda e CD's de cantores que você desconhece também estão valendo. 

14. Aproveitar-se do súbito espírito natalino que tomou conta da sua alma e convidar sua sogra para dar uma volta de carro na Avenida Atlântica, em pleno calor sulfuroso de final de dezembro. Claro que ela desconhece que o ar-condicionado do seu Opala pifara no dia anterior. O que vale é a intenção acima de tudo.

15. Aproveitar-se do súbito espírito natalino que contagia todo mundo em sua casa e danificar o fio que liga a TV à tomada na noite do especial do Roberto Carlos. Ninguém vai polemizar, nem discutir e muito menos alterar a voz para você. Se isso acontecer, você vai à padaria mais próxima, na cidade vizinha, comprar umas latinhas de cerveja para abastecer o estoque dos amigos do seu irmão. E volta no almoço do dia seguinte, com alguns exemplares do mais novo blending da região do Círculo do Café.

16. Caso o seu cunhado, restabelecido da ressaca, saiba tudo de eletricidade e conserte o estrago na TV, você pode sugerir um filminho de natal ultra light em família, tipo "Dogville", do Lars von Trier. Diversão garantida.

17. Fazer uma "lista de resoluções para o ano-novo" às avessas, com tudo o que você gostaria de fazer mas não pode ou não permitem que você faça e xerocar para a galera ler em forma de jogral.

18. Convidar seu amigo violeiro super gente-boa para tocar os hits mais cult do natal em moda de viola, durante a ceia e depois do amigo oculto, quando todos vão guardar seus presentes felizes da vida.

19. Comunicar (logo após a moda de viola) que, nesse natal, você vai superar o seu egoísmo e empáfia e que, como prova cabal disso, vai distribuir os bibelôs da sua mãe, a coleção de carrinhos antigos do papai e as camisas do seu irmão entre os membros menos favorecidos da comunidade.

20. Aproveitar-se do teor alcoólico da namorada do seu pai e dizer-lhe, em segredo, que o show de dança que ela faz com a guirlanda da porta é simplesmente im-per-dí-vel. Então, você só vai precisar de um CD da Gloria Gaynor para começar o espetáculo. DJ Jacaré também está valendo.

Feliz Natal, amigos. E um próspero Ano-Novo. Em fevereiro tem Carnaval, calor tropical e muito jogo do flamengo para a gente começar o ano com TUDO diferente.   

testes


Um amigo meu, talvez o único ser-humano além de uns poucos membros da minha família a quem posso de fato chamar de amigo, incumbiu-me de um teste, uma lição de casa essa semana. Antes de falar da tarefa propriamente dita, preciso dar algumas informações a respeito desse amigo, como a desenvolver o personagem, por assim dizer. Conhecemo-nos desde os 14 anos, mas moramos relativamente distantes um do outro (ele, no Rio de Janeiro, eu, no topo da Serra do Mar), embora o verdadeiro elemento responsável por tal distância sejam os nossos estilos de vida, hoje bastante díspares. Estudamos juntos e, desde os bolorentos tempos do colegial, discordamos  em quase tudo o que não importa muito na vida prática, principalmente em questões intelectuais chatíssimas, que ninguém com o mínimo senso de ridículo fica discutindo por aí. Mas esse meu amigo e eu nunca tivemos muito senso de ridículo, ou talvez apenas fizéssemos o gênero "polemizador". Em outras palavras, éramos dois nerds deslocados que sentiram um no outro o cheiro do ostracismo e acharam por bem fazer uma dupla dinâmica, mesmo às turras na maior parte do tempo.

Quando houve aquele plebiscito para os brasileiros escolherem entre três regimes de governo - presidencialismo, parlamentarismo e monarquia - tínhamos 16 anos e pensávamos que éramos muito politizados. Bem, pelo menos era essa a imagem pela qual a gente precisava zelar na escola, naquela época. Eu defendia o presidencialismo, ele, a monarquia. Pensando melhor agora, acho que esse plebiscito nem existiu. Acontecimento assim tão surreal só pode ter sido fruto de nossa imaginação adolescente muito ativa ou de uma eventual insolação de que fomos vítimas, já que passávamos tardes inteiras andando de bicicleta pela cidade, feito dois maratonistas de Belleville. Ele conhece mais de 60% das minhas mazelas - estranho isso, quantificar as mazelas de alguém - e me visita uma vez por ano. Essas visitas acontecem normalmente na época de Natal, quando ele também vem para o topo da Serra, para partir o chester e dividir as rabanadas entre os poucos mais de quinze membros de sua família. Nas ocasiões em que me visita, ele às vezes traz sua namorada, e aí a coisa toda fica muito mais divertida porque eles bebem umas cervejas e eu, que não bebo nunca, mas me comporto naturalmente de maneira ébria (o que deve ser mais embaraçante socialmente, admito), acabo me aproveitando da situação para forçá-los a jogar "verdade ou conseqüência" comigo. Meio bêbados e insones, eles dizem um monte de verdades, me fazem dizer outras tantas e a gente acaba se divertindo bastante.

Para saber quem é nosso amigo de verdade, bastam apenas três testes, relativamente fáceis de se fazer. O primeiro, é ligar para a casa da pessoa em alta madrugada, no auge do desespero emocional ou para contar uma piada esdrúxula, tanto faz. É apenas depois das duas e meia da manhã, pelo telefone, que a gente sabe se tem ou não um amigo. O segundo teste é passar seis meses ou mais sem trocar uma palavra com o candidato a amigo e, numa única conversa, constatar que tudo está mais ou menos do mesmo jeito como da última vez em que se falaram. Quer dizer, vocês basicamente continuam rindo das mesmas coisas e brigando pelas mesmas bobagens. Esse exemplo pode até parecer meio simplista e, à luz do relativismo, cair por terra. Mas, no frigir dos ovos, por mais que a gente rodopie na vida como elétrons, ninguém se permite sofrer alterações radicais em sua essência em seis meses. Você pode até passar a ouvir um estilo de música diferente, casar, descasar ou entrar para uma seita de bebedores de Matte Leão, mas a essência, aquela argila de que somos feitos e que nos molda a personalidade e os valores, esta não muda muito, se é que se modifica de fato. O terceiro teste, obviamente, é passar uma noite jogando "verdade ou conseqüência" com seus amigos e, na manhã seguinte, todos continuarem sãos, salvos e amigos. Bem, talvez esse teste não seja dos mais fáceis de se fazer, afinal.

Voltando à vaca fria, meu amigo me incumbiu de um teste essa semana. Nada muito complicado, talvez algo um tanto desafiador, o tipo de tarefa que só faz a gente esturricar os miolos se vier de alguém que consideramos um amigo na mais alta estima. Ocorre que esse meu companheiro de credo e de cruz - e aqui cabe uma ressalva: ambos ficamos no placar "zero de credo a mil de cruz" - ocupou-me o tempo com o desafio de escrever o que ele chama de "poema sujo". Danou-se. A coisa toda surgiu a partir de um telefonema meu para lhe dar os parabéns por ter passado no Doutorado. Este é dos grandes objetivos de vida do meu amigo, um norte para o destino por vezes confuso que ele traça. O mínimo que eu poderia fazer era ligar para ele no meio da tarde, gastar os tubos com um interurbano de quarenta minutos, contar as novidades e ouvir as novidades. Claro que, a uma certa altura, perguntei porque ele não lê esse blog. Afinal, o cara é meu amigo. Deveria ser um leitor assíduo, caramba, postar comentários, chocar a burguesia blogueira e mais o pacote completo que um escritor frustrado pode esperar de um amigo e escudeiro fiel. Diante das minhas cobranças e da evidente carência de público que me acometia, meu amigo não perdeu tempo. Postou-se em frente ao PC, ainda com o fone em mãos, e pôs-se a ler alguns textos em voz alta. E como rimos juntos!


Acontece que meu amigo me disse que, ao enveredar pelo terreno do texto erótico, eu mais pareço uma vetusta e puritana senhora escolhendo palavras apropriadas, leves e formais para falar do que há de menos apropriado, leve e formal, ou seja, o coito. Puxa, aquilo foi um tapa na cara, um soco no estômago, um chute na canela, uma rasteira na minha aspiração literária! Tudo bem, vai, estou exagerando. Mas o leitor faz alguma idéia de como é complicado escrever um texto erótico sem, digamos, vasto conhecimento de causa? Isso sem falar em inspiração. O que me levou a crer que, de fato, talvez haja muita repressão judaico-cristã em meu repertório ou, para ser honesta, um certo complexo de Édipo mal resolvido na minha caixola, no sentido bíblico da palavra, para escrever como Paul Verlaine, Madame Bovary e Hilda Hilst. Segundo meu amigo, eu estou mais para uma Emily Brontë ou, na melhor das hipóteses, um Nathaniel Hawthorne pudico e bigodudo. Valha-me Deus. É de Hawthorne o romance "A Letra Escarlate". Se você não o leu, não vá investir seu tempo nessa novela específica justamente agora, a poucos dias do Carnaval, cara-pálida. Se quiser, alugue o filme baseado no livro, com a deslumbrante Demi Moore, como a colonial casada e infiel até o último fio de cabelos, e o sorumbático e eterno Drácula, Gary Oldman, como o reverendo por quem ela se apaixona. Uau. É tudo muuuito picante, até a galera aviltada de Massachussets acender as fogueiras para assar a bela, adúltera e corajosa Demi. Ainda em tempo, o filme não é lá essas coisas para reacender o fogo de casais abrandados pela rotina, mas a trilha sonora, de Jonh Barry, é esplendorosa.

Claro que eu contestei. É óbvio que tentei salvar minha pena erótica. Afinal, os textos já foram postados, quem teria que os ler já o fez, então o mínimo que eu podia fazer era defender a minha honra manchada pela crítica construtiva do meu amigo. Mas, confesso, ele fez aqueles contos parecerem realmente literatura para senhoras apaixonadas no climatério. Daí surgiu o desafio. A bem da verdade, tudo seria muito mais simples se saíssemos para um duelo de espadas em pleno nevoeiro invernal da Serra do Mar. Para aonde, logicamente, eu enviaria não um espadachim em meu lugar, mas um habilidoso pistoleiro do Morro do Alemão para passar fogo no meu amigo. Enfim, o desafio estava lançado e, em tese, eu me redimiria se conseguisse escrever um conto ou um poema "sujo", desses que não falam "sexo umedecido" mas, vá saber, "boceta gotejante"? Puxa, como isso é embaraçoso. Admito que me aventurei por cinco, talvez dez linhas. Mas, quando via o resultado, eu brochava muito antes do clímax e do desfecho textuais, por assim dizer. Minha verve poética brochava literalmente, literalmente. O que, por mais que meu orgulho saia ferido e eu tenha ímpetos de esganar meu amigo pornográfico, atesta meu total fracasso na real, fina e boa poesia erótica. Jogo a toalha. Não consigo escrever sobre sexo sem o véu esgazeante do jogo de palavras, dos adjetivos comportados e dos verbos e substantivos idem. Quem sabe um dia eu ainda consiga escrever um verdadeiro conto erótico. Mas, por enquanto, falar de amizade, duelos de espadas, natais irritantes e todas essas coisas legais, mas nada eróticas, é mais fácil para mim. You win, buddy.


Já bati a minha. Três vezes. Telas de LCD, watch out.

7 de dezembro de 2010

é conversando...



Comunicação é uma das habilidades mais notáveis do ser humano. A gente fala, gesticula, faz sinal de fumaça, grita, sussurra, fala com os olhos, com a cabeça, com o corpo inteiro. Não há como não citar aquele sujeito lá do início da década de oitenta, que deu fama à Gretchen e à Rita Cadillac e adorava uma buzina: "quem não se comunica, se estrumbica". O ditado do "velho guerreiro" vem bem a calhar quando, por exemplo, você está perdido, em pleno trânsito, na hora do rush de São Paulo. Ou quando o almoço no restaurante do bairro caiu mal, você está em plena Avenida Ayrton Senna e precisa desesperadamente de um banheiro. Agora, imagine que sua esposa teve acesso, miraculosamente, à sua senha de email e acabou de ler todas aquelas mensagens "estranhamente" românticas de uma certa "eternamenteSua". Quer dizer, você há de querer possuir incríveis habilidades comunicativas para explicar para a sua mulher, em tempo hábil e a tempo de se desviar do cinzeiro de cristal de cinco quilos que ela lançou em sua direção, que "eternamenteSua" é provavelmente um vírus que driblou o McAfee do computador e agora planeja destruir o casamento de centenas de casais honestos, incluindo, "veja só, meu bem, a gente".

No local onde trabalho, há um mudo que só entra para comprar tinta de cabelo preta. Dia desses parei para observar como ele prosseguia, ou melhor, como prosseguiria a funcionária que o atendeu. Naquele dia, ele não queria tinta preta. Desejava inovar. O que presenciei foi assombroso. Resumo da ópera: o rapaz conseguiu se fazer compreender, ser auxiliado na escolha da melhor coloração, optar pelo exótico "chocolate acobreado irisado profundo", ir ao caixa e se despedir, tudo em menos de cinco minutos. Quer dizer, o cara não usa palavras para se comunicar e consegue escolher uma tinta diferente da habitual em menos tempo do que uma mulher em posse de suas plenas faculdades verbais! Esse não vai se estrumbicar nunca.

Meu pai é um sujeito meio calado, que dá conselhos e faz previsões cabalísticas. Não. Não é bem assim. Na verdade, acredito que ele tenha qualquer poder sobrenatural porque, entre dez coisas que ele diz que podem acontecer a você numa situação em que lhe aconselha, nove saem exatamente da maneira como ele "previra". De uns tempos para cá parei de pedir conselhos a ele. Vai que a coisa sai do jeito como ele aconselha, e não da maneira como eu idealizo... Enfim, meu pai nunca foi fã do "velho guerreiro". A bem da verdade, nem assistia à televisão naquele tempo e nunca escondeu de ninguém o fato de achar o Chacrinha um chato. Além de não assistir ao programa do sujeito, meu pai sempre discordou radicalmente do lema que ele usava. Entretanto, papai nunca se estrumbicou na vida, pelo menos não tanto quanto eu, que me comunico até demais. Hoje me pergunto se ele, assim como o rapaz mudo das tintas, não é dotado de uma maneira própria de se comunicar, sem que a gente "ouça".

O fato é que cresci ouvindo três mandamentos do meu pai. E ouvi tanto que escuto cada palavra ressoar aos meus ouvidos mesmo hoje, quando ele já desistiu de me fazer seguir os tais mandamentos à risca. O primeiro, que comecei a ouvir por volta dos seis, sete anos, era simples e sábio: "Quando um burro fala, o outro baixa a orelha". Acho que eu devia interromper muito as pessoas naquela época. O segundo, mais complexo e bem mais difícil de se seguir, começou a fazer parte do meu repertório lá pela adolescência: "Fale pouco, escute mais. Se puder, nem fale. Só escute". É. Papai era hardcore. O terceiro, um gancho de direita na minha cara linguaruda, é mais recente: "Em boca fechada, não entra mosquito".

Lembro-me de um episódio hilário, envolvendo minha mãe, meus pai e os seus "mandamentos". Tínhamos encontrado um antigo conhecido de passagem pela rua, alguém que não víamos há séculos. Foi tudo muito rápido e muito embaraçoso. O cidadão, bem confortável em seus cinqüenta e tantos anos, abraçava pelos ombros uma jovem de, no máximo, um quarto de século de idade. Como não conhecia nenhum dos dois, sorri educadamente e guardei silêncio. Mas minha mãe, de quem seguramente herdei minhas habilidades sócio-comunicativas, sorriu e comentou, no auge de sua amabilidade: "Sua filha é linda! Eu não a conhecia". É óbvio que o infeliz, de uma tez morena de sol do Rio de Janeiro, ficou meio pálido e gago quando teve que nos explicar que a moça era sua namorada. A filha estava na Bahia... Meu pai saiu à francesa e me puxou pela mão. Minha mãe ficou com o casal por mais meia hora, só para desfazer o mal-entendido. Na caminhada de volta, ainda ouvi papai dizer: "Quanto mais se fala, maior é a chance de se parecer idiota e dizer besteiras". Eu ri um bocado da minha mãe naquele dia, mas me senti culpada depois. Afinal, poderia ter sido eu a fazer o comentário inoportuno.

Pensando bem, ter citado minha mãe em contrapeso a meu pai não foi a melhor das idéias. Afinal de contas, ela ainda incorre no mesmo e antigo erro de perguntar pela mãe de alguém e escutar, embaraçada, que esta morrera há dois anos. Em outras palavras, não faz muito sentido alocar nos pratos de uma mesma balança pessoas que estão em extremos separados por um abismo de diferença. Acaba-se perdendo a referência do que se queria "pesar" em primeiro lugar. Sei que algumas pessoas compartilham da noção do meu pai de falar o estritamente necessário, apenas quando necessário. Rubem Alves, por exemplo, diz que é conversando que a gente de desentende. Manoel Bandeira tem uma poesia que diz que as almas são incomunicáveis, e que os amantes "azedam", por assim dizer, o convívio e o amor quando insistem em se comunicar. Por outro lado, que valor têm essas afirmações, vindas de pessoas que vivem da comunicação e da auto-expressão?

Particularmente, sempre temi muito mais as palavras engolidas do que as ditas. Não vejo tanto perigo em falar ao outro, desde que haja boa fé por parte do emissor e receptividade do ouvinte. Mas vejo uma ameaça terrível no silêncio, nas palavras truncadas, nos subterfúgios, nas manobras de oratória e, mais precisamente, em se dizer algo completamente diferente do que se pensa. Como o "velho guerreiro", também acredito que perdemos muito mais em não nos comunicar do que nos comunicando. Entretanto, falar com o outro só vale a pena se houver sinceridade e transparência no diálogo. Do contrário, não haverá diálogo, mas sim, um discurso político manjado. Redundante dizer que sinceridade e transparência expõem muito mais quem diz alguma coisa. Não é de se espantar que a maioria das conversas que travamos diariamente sejam veladas. Quem quer ter a sensação de estar nu, em praça pública, sob o sol do meio-dia? Nesse sentido, falar pouco, manter silêncio e ouvir atentamente são estratégias infalíveis na comunicação. Mas, por outro lado, onde há estratégia, há batalhas, e a comunicação tem por princípio básico o entendimento comum, e não a guerra. É como sempre digo: o segredo de muita coisa, se não todas, está no caminho do meio, e não nos extremos separados pelo abismo. O diacho é que a gente se perde entre os extremos e não consegue encontrar o tal caminho do meio, em plena hora do rush da vida. Então, alguém aí poderia me dar uma informação...?

4 de dezembro de 2010

canta pra subir!


Sempre tive tudo para ser uma pessoa guiada pela fé. Pensando bem, poderia até ser bastante religiosa e espiritualizada, já que algumas das pessoas a quem mais amei durante a minha infância, e com quem convivi de perto por muitos anos, eram extremamente religiosas. Quer dizer, se considerarmos que a crença no metafísico seja algo "de família", e que seguimos os exemplos daqueles que amamos como referência, seria natural que alguém com avós, tios, pais e primos religiosos fosse, igualmente, devoto de alguma forma de fé. Ao menos essa foi uma das concepções que sempre nutri da fé: uma habilidade "herdada" de nossos ancestrais, quase como um traço fenotípico ou uma cadeia genética hereditária. 

Entretanto, tal concepção mostrou-se totalmente inválida para mim no decorrer dos anos, uma vez que nunca tive fé, pelo menos não no sentido metafísico da palavra. Ateus se orgulham muito de dizer que não têm fé nem crença em nenhuma entidade religiosa e, de fato, costumam ser tão avessos à idéia da existência de "algo superior" que acabam se tornando praticantes extremistas de sua própria "não-religião". No afã de negar o sagrado a todo custo, ateus convictos passam a cultuar o dito "profano", para desenhar entre eles e os crentes uma linha divisória bem definida. Então, acabam sofrendo o efeito rebote da crença e da fé. Por almejarem o pleno distanciamento de qualquer prática religiosa, ateus extremistas tornam-se, não raro, tão cegos quanto fundamentalistas e crentes fanáticos. Revoltam-se contra pessoas que praticam qualquer tipo de rito religioso, condenando-os e taxando-os de levianos e incultos, incitam debates acalorados e preconceituosos à menor menção do sagrado e restringem-se a um universo cujas práticas sócio-culturais jamais incluem a mais leve noção de fé. Limitam-se, pois, principalmente porque se definem. O ateu convicto tem tanta fé quanto um cristão praticante. A única diferença entre eles é que o cristão tem fé no divino e na providência, enquanto o ateu carrega consigo uma fé inabalável na não-existência do divino e do sagrado. São, portanto, as duas faces de uma mesma moeda.

Eu nunca fui atéia, de fato. A bem da verdade, sempre evitei caminhar sobre o campo minado das discussões sobre religião. Certos pontos de vista são tão definidos e arraigados que, em um possível confronto entre si, não geram debate nem dialética, apenas confusão e falastrice. Como nunca tive opinião formada sobre a existência ou não do divino, abstenho-me solenemente de tais discussões sem sentido. Prefiro não rotular minhas tendências, nem me definir ou limitar a um grupo específico. Considero muito mais sensato manter as portas abertas para o mundo, inclusive para a crença no sagrado. Também não duvido nem questiono pontos de vista a esse respeito. Para ser mais exata, é como se eu pairasse por sobre a religião, o sagrado, o profano e o ateísmo. Não é de meu interesse converter ninguém a qualquer dogma, portanto, sempre toquei o barco da vida norteada por valores construídos e adquiridos ao longo dessa jornada, a saber, valores éticos, e não morais. Não por coincidência, sempre fui muito disciplinada e altruísta no trato para com os outros. Quando não se tem diretrizes religiosas a seguir, nem o temor do castigo e da punição por não seguir tais diretrizes, viver torna-se muito mais uma responsabilidade solitária. Sem um deus para orientar, proteger e perdoar, é preciso agir conforme seus próprios mandamentos e se policiar o tempo todo para ser honesto, cordato e justo, além de nunca invadir o espaço alheio. Ter fé e seguir uma doutrina não garante uma vida de recreação, indulgências e hedonismo, pelo contrário. Mas não seguir uma doutrina e viver de maneira ética pode ser igualmente complicado, já que você acaba se tornando um mártir de si mesmo, mais auto-crítico e compassivo.

Mas sinto falta da fé. Crer em alguém ou em alguma coisa, Deus, reencarnação, vida eterna, o cosmo, a força interior de cada um, não importa. Crer é uma habilidade inata e, preconceitos ateus à parte, uma habilidade e prática aliviantes e renovadoras. Sigmund Freud, um dos maiores pensadores do século XX, afirmava que a religião é o ópio das massas, já que, como o "bálsamo" extraído da papoula, alivia a dor, acalenta a alma solitária e, por final, entorpece. O que Freud nunca disse, nem publicou para a imortalidade foi que, durante anos e até o final de sua vida, foi usuário compulsivo de ópio, assim como inúmeros de seus contemporâneos filósofos e vários antes dele. Quando encontro-me numa situação de desesperança profunda, lembro-me da frase de Freud e sinto-me num beco sem saída: sem o alívio e a segurança proporcionados pela fé, através da concentração durante uma oração, por exemplo, e principalmente sem a menor sombra de ópio para me entorpecer os sentidos e permitir-me distanciar do sofrimento, mesmo que por alguns momentos, vejo-me presa fácil dos percalços da vida e tenho a certeza inabalável de que sou a pessoa mais solitária do universo.

Quando digo que a fé é uma habilidade inata, não me refiro a templos, pregações nem dogmas. Aqui, falo da fé primordial e inerente, da capacidade que o indivíduo tem de entrar em comunhão com a sua própria consciência, num exercício de meditação que nada mais é do que uma forma de extrema concentração mental. Dessa maneira, a pessoa mentaliza o objeto de sua fé, depositando nele confiabilidade e, de alguma forma, acreditando que terá um retorno positivo de sua prece, terá o bálsamo para a sua dor. Um cérebro em concentração ou meditação regula automaticamente a respiração e os batimentos cardíacos do corpo, desacelerando-os naturalmente. Além disso, o lobo frontal do cérebro, concentrado em uma oração, libera altos níveis de endorfina, dopamina e serotonina, neurotransmissores responsáveis pela sensação de paz, alegria, conforto e recompensa. Ora, se somos ou não filhos criados à semelhança do Pai, isso não importa tanto quanto a idéia de que o divino reside em nossas próprias mentes e que, através da capacidade de crer, não nos sentimos tão vulneráveis e sós. Suponhamos que a fé esteja inscrita num código de pares de genes. Se quiser analisar a questão de forma menos "científica", pense na fé como uma chave em posse da qual você já vem ao mundo. Assim, não possuir a capacidade de ter fé é uma desvantagem na corrida pela seleção natural.

Tome um exemplo: um amigo meu consegue contornar as emoções dilacerantes de um luto, em parte com suas orações, ou seja, com a concentração, mentalização e, em última instância, com a fé. Diante do peso da derrota, da solidão e do luto, eu, em contrapartida, mal consigo abrir as janelas de manhã sem precisar de uma ou duas pílulas da felicidade adequadamente legalizadas pela Anvisa e pelo FDA. Quem está em franca desvantagem aqui? Meu amigo, que usa sua crença para sair do lamaçal e leva seu cérebro a produzir neurotransmissores de serenidade e plenitude naturalmente, ou eu, que em busca da mesma plenitude e serenidade, acabo por engordar a caixinha de natal do laborátorio Wyeth, obtendo como resultado um cérebro embotado e uma passageira irritação gástrica?

Fizeram-me pensar sobre isso dois novos amigos que ganhei da vida, do cosmo, das circunstâncias, de Deus. Um deles é Lucinete, minha "boneca" guerreira, que vem me telefonando insistentemente há duas semanas, dizendo-me palavras de incentivo e quase pondo-me porta afora de casa aos pontapés, para que eu encare a vida, a batalha e a escada. Esta é a segunda vez que escrevo sobre Lucinete, por ela e para ela. O outro amigo que ganhei "de lambuja" é, na verdade, o pai e mentor da "boneca", uma criatura que, com um abraço apertado e a frase "você é maravilhosa, menina! Olhe, o dia é maravilhoso!" dita olhando-me nos olhos, ganhou minha admiração e lealdade com meia hora de prosa. Se Lucinete é a "boneca", Tim é o "berço" que embala, acalma e renova como uma noite de sono e paz.

O cosmo deve, de fato, conspirar a favor de nós, mortais confusos, sofridos, enraivecidos e mudos. Eu não consigo ter fé, embora nutra o desejo perene de possuí-la. Mas a "boneca" e o "berço", meus mais novos amigos, a têm de sobra, por eles e por mim. E talvez nesse loco, no momento em que os dois vêm ao meu encontro para me mostrar que o céu está azul, que há vida em abundância e que é preciso derrotar cada obstáculo para que se possa ver o azul e a vida, e não o cinza e o adormecido, talvez nesse momento o cosmo faça votos de felicidade para mim e Deus... bem, Deus simplesmente saiba que eu, a "boneca", o "berço" e você existimos.

Não há ninguém mais apropriado do que a "boneca" para entrar numa trincheira ou sarjeta com você e tirá-lo de lá, mesmo que ela precise carregar o fardo nos próprios braços pequenos, mas fortes. Ninguém seria mais adequado do que ela para passar uma noite assombrosamente escura ao seu lado porque todas essas mazelas, a trincheira, a sarjeta, a fossa e a escuridão, são velhas conhecidas de Net. Ela me abraçou apertado, olhou-me bem dentro dos olhos e contou-me um pouco de sua história. A "boneca" chora quando se lembra das trincheiras onde teve que se esconder, das sarjetas em que viveu porque simplesmente não tinha lugar algum para ir, da escuridão das noites em que fantasmas do passado e de um presente brutal vinham-na assombrar. Ela chora, o que é compreensível, mas em segundos seca as lágrimas e diz: "Cara, se você tem um obstáculo na vida, pode ter certeza que também tem a solução para ele". Parece simples, e é simples, de fato, embora não necessariamente fácil. Vendo meu olhar velado e descrente, ela contra-ataca com um argumento irrefutável: "É, sim, cara. A solução tá no nariz da gente, mas a gente não vê, porque tá ocupado demais olhando pra merda do problema!". Palavras duras que só a "boneca" pode pronunciar  se quiser torná-las leves, reais e belas.

Nas lágrimas de Lucinete vejo e sinto o sal das minhas próprias. Mas ela está a alguns passos a frente do caminho: tem fé e uma perseverança que me assombram. E, mais do que isso, a "boneca" tem a alma forjada por um otimismo que toma conta do espaço que ela ocupa como gás, expandindo-se. Com Net, você só fica no breu e no sereno se quiser, porque ela faz de tudo para levá-lo para um quintal onde é sempre meio-dia. Quando se despediu de mim, disse-me mais uma de suas frases tão peculiares: "Amiga, sai da concha, vai pra vida, cai pra luta e canta pra subir!" É impossível não sorrir ao recordar essas palavras e a imagem do rosto e do riso de Lucinete. Diante de tal força, otimismo e fé, a gente acaba entendendo que precisa pegar aquela mão estendida em nossa direção e começar a engatinhar, para depois caminhar e, finalmente, correr com as próprias pernas, intrépidas e fortes. A lição da "boneca" é, na verdade, bastante simples: "Se eu consegui, cara, e olha que ninguém dava nada por mim, por que você não conseguiria?". Faz sentido. Total sentido. E canta pra subir, Lucinete!

velha estrada nova

A vida da gente é vagão...


... que às vezes desembesta e sai dos trilhos.


Mas, enquanto houver uma praça, numa cidadezinha hospitaleira...


... com gente amada e poentes tranqüilos como companhia... 


... ficará mais fácil apreciar as paisagens que a vida revela, de tempos em tempos.


Porque a vida, vagão que desgoverna, também é estrada que conduz.


E às vezes, numa curva ou outra do caminho, a gente até tem a sorte de virar flor.


Enraizar e colorir os caminhos do mundo, como crianças com giz de cera, pintando o céu com o anil mais efervescente da paleta.


 E colorir, pintar e escapar às margens da tela não é fácil num mundo que nos molda e modela tanto.


Mas, no fundo da cabine, tem sempre um broto teimoso, que a gente nem suspeitava mais poder existir.


E, a despeito da noite que cresce dentro do peito, o sol nunca pede permissão para nascer e brilhar.


Então, se ele ofusca nossos olhos de toupeira, a gente caça uma sombra para se refugiar, mesmo que só por um tempinho, até a alma acostumar com a claridade.


E, enquanto descansamos da caminhada, respiramos fundo, para contemplar as curvas que a vida faz.


Porque, pensando bem, há vida até onde não se vê vida e nem se conta com a existência dela.


Embora tudo seja uma questão de saber olhar e enxergar vitalidade nas coisas mais simples e estranhas aos olhos, sob os ângulos menos convencionais.


E, acima de tudo, buscar o sol sempre, doa o quanto doer.


Mas é preciso também aparar as farpas que aprisionam a alma e dilaceram a carne da gente.


Porque, afinal, não somos gado, nem ave que tem asas mas não pode levantar vôo. 


E só mesmo o bicho-homem, certo de quem é, consegue ver cor, vida, beleza e continuidade na estiagem do solo inóspito e estéril do caminho.


E qual não é nossa surpresa quando a gente se descobre verde num campo árido e sem cor!


O que não dá é para ser apenas uma sombra do que já se foi...


Nem estanque sobre um solo arenoso, feito um bando de pedras a rolar.


O que é fundamental, mesmo, é ter coragem para (re)florescer, ainda que haja riscos envolvidos nisso, como ervas-daninha, intempéries e a solidão dos invernos.


É preciso coragem até para encarar o por de sol de frente, um após o outro, até o dia em que a gente não vai estar mais lá para vê-lo nascer.


E, acima de tudo, é preciso persistência e uma força de guerreiro para continuar seguindo essa estrada imprevisível que a gente chama de "vida".

2 de dezembro de 2010

as olívias



Email encaminhado, apresentações em PPS e correntes de email solidário são a tortura máxima do universo virtual contemporâneo. Não há nada mais chato do que acessar sua caixa de entrada e deparar-se com uma mensagem que o irmão do tio, da prima, do colega, do cunhado, da enteada, da sogra, do seu amigo no orkut mandou para você, simplesmente porque o seu endereço eletrônico estava lá, às traças, e o remetente cometeu a gafe tecnológica de escolher a opção "incluir todos os contatos". Quer dizer, ser contato de alguém nas páginas de relacionamento e no messenger não garante a ninguém exclusividade e, pior, não significa que o dono da lista de contatos de fato conheça você. Eu, por exemplo, posso ser considerada uma aberração da natureza cyber. Tenho quase duzentos contatos no messenger. Destes, conheço, de verdade, no máximo dez (alguém como eu não tem a menor chance de conhecer duzentas pessoas. Isso seria socialmente impossível para mim). Dentre esses dez, converso com três pessoas, cinco, na mais otimista das hipóteses, isso quando acesso o MSN ou me digno a selecionar a opção "visível para todos os contatos". Como sites de relacionamento a exemplo de orkut, facebook e myspace - para ficar apenas com os que eu conheço; deve existir no mínimo o dobro desses sites em funcionamento - automaticamente "importam" os seus contatos e, via de regra, acabamos adicionando as pessoas sem muito critério ou rigor - afinal, quem ainda leva orkut a sério? - ficamos todos enredados e conectados virtualmente, num processo de retroalimentação semiótico digno de uma tese para fanáticos por Pierce. Entretanto, nunca tivemos tantos contatos e conhecemos tão pouco, ou quase nada, deles.

Por isso, email encaminhado é algo tão inconveniente. Ocorre que encaminhar um email, incluindo todos os seus contatos, pode ser não apenas muito chato, mas trágico. Imagine o seguinte cenário: um sacana, espírito de porco, fica sabendo que seu colega Z está traindo a esposa X com uma amiga em comum, Y. Pior. Ele não fica apenas sabendo da traição, mas decide também tirar uma foto dos pombinhos se amassando num bairro isolado com o seu IPhone. Como a internet está ali, a um touch screen do nosso anti-cristo em potencial, ele resolve mandar a foto recém tirada para uns colegas farristas e dividir com eles essa informação super quente. Como se não bastasse, nosso cara de pau fundamental ainda resolve encaminhar o email com a foto. Afinal, onde uma pessoa sabe de uma fofoca, cinco podem saber também, certo? Ao encaminhar o email, nosso exterminador de adúlteros do futuro inclui todos os seus contatos. Claro que ele não repassa seus contatos um a um. Quem em sã consciência repassa os contatos quando encaminha um email, uma apresentação em PPS ou uma corrente solidária? Pronto. Está armado o circo do terror do Google. Nosso sacana-mor esqueceu que, desde que abrira essa conta de email, fazia parte de seus antigos contatos X, a esposa traída, humilhada e que em nada desconfia da paixão fulminante entre seu marido, Z, e a vadia do momento, Y. Ou melhor, que em nada desconfiava. Porque, nesse momento, incauta diante de seu notebook Samsung vermelho-cereja, ela constata que recebeu um email de um velho conhecido, W, o pentelho da nossa história. Já imaginou? Esse cenário apocalíptico pode até ser pouco provável, mas não impossível, nessa roda viva de contatos, emails e correntes em que vivemos. Por essas e outras, eu não encaminho emails. E, caso veja as três letrinhas do mal, "Fwd", nem abro a mensagem. Por medida de precaução e tentativa de preservar minha exclusividade, de alguma forma.

Ocorre que, hoje, fugi à minha própria regra. Recebi um email encaminhado de uma velha amiga, mas confesso que só abri a mensagem porque, na descrição do assunto, ela escreveu: "Roberta, esse vale a pena. Não deixe de ver". Quer dizer, a mensagem era encaminhada, mas pelo menos minha amiga teve a decência de se dirigir à minha pessoa, exclusivamente, no cabeçalho do email. Pode ser que eu sofra de certa neurastenia virtual pós-moderna da era digital, afinal nunca se sabe que tipo de males estranhos e recalcitrantes podem acometer um cidadão respeitável hoje em dia. Mas, ao final, valeu a pena ter aberto pelo menos um email encaminhado. Era o vídeo dessa trupe de mulheres conhecidas como "As Olívias", que fazem sucesso na internet com suas sketches impagáveis. Minha amiga encaminhou o vídeo que você confere lá no início para uns cem contatos, todos mulheres. E dizia assim: "Meninas, nossa revanche contra as cantadas em canteiros de obras". Valeu pela gargalhada. Como não posso burlar minhas próprias regras mais do que o aceitável, recuso-me a encaminhar o vídeo para os meus cento e pouco contatos fantasmas. Então, posto aqui no blog. Se você for mulher, vai rolar de rir. E se não for, vai dar boas risadas com os trejeitos únicos das moças do vídeo. Agora, se for pedreiro... Bem, aí já fica um pouco mais complicado para agradar.

com vocês, a canção




"Amazing Grace"

Amazing grace, how sweet the sound
That sav’d a wretch like me!
I once was lost, but now am found,
Was blind, but now I see.

’Twas grace that taught my heart to fear,
And grace my fears reliev’d;
How precious did that grace appear,
The hour I first believ’d!

Thro’ many dangers, toils and snares,
I have already come;
’Twas grace that brought me safe thus far,
And grace will lead me home.

John Newton, Olney Hymns (1779)

natal e naftalina


Agora, o natal está próximo. Mais próximo do que eu poderia esperar. O ano de 2010 voou para mim e, aposto um Bubbaloo de uva, deve ter voado para você também. Aliás, vivo sob a constante e firme impressão de que, a cada ano, o tempo escorre mais depressa pelos dedos enquanto nós, à janela, enxergamos a vida como do olho de um furacão. Afinal, tivemos mesmo o tempo sob controle em algum momento...?

Atestado maior para a diversidade e complexidade humanas não há do que as "festas de fim de ano" ou, como o pessoal acima da Linha do Equador gosta de chamar, o "holiday season". Tem gente que adora a temporada e começa a montar suas árvores no início de novembro. E dá-lhe pisca-pisca, estrelas, cartões, bolas coloridas e até chocolate. É. Aparentemente virou moda enfeitar a X-mas tree com chocolates Batom, Bis e bombons, esses últimos fazendo as vezes das antigas bolas de vidro.

Natal e réveillon sempre foram dias de nostalgia, quase melancólicos para mim. Não saberia dizer exatamente porque. Quem sabe o meu lado Vandinha Addams não fale mais alto nessa época do ano. Ou, talvez, eu simplesmente não goste de enfrentar filas, estacionamentos lotados e listas de presentes. Às vezes me pergunto se, de fato, o holiday season não tenha como propósito desabrochar em nós o sentimento de nostalgia. Até porque a nostalgia embala qualquer situação num papel dourado de beleza e brilho que, na plena efervescência e euforia do presente, não existiriam. 

Acima de tudo, natal e ano-bom são uma tradição, um ritual, tal como ler antes de dormir, passar fio dental após as refeições ou ouvir Dolores Duran nas horas de dor-de-cotovelo. Minha família nunca cultivou os hábitos de natal per si, a não ser a troca informal de presentes e as fornalhas de rabanada com bastante canela e leite condensado, esta, sim, uma tradição irrevogável. De uns anos para cá, até tentamos montar uma árvore pequena, assar um chester e cear antes da meia-noite. Mas, de alguma forma, a coisa não fica natural e autêntica como as rabanadas. Pelo menos não aos meus olhos e sentidos.

De fato, eu tenho meus próprios e esquisitos rituais de natal. Houve um tempo em que tudo que eu almejava era adormecer lá pelo dia 23 e, como a princesa Aurora, só despertar com um beijo do príncipe encantado depois da quarta-feira de cinzas. Como hibernar não consta nos autos das habilidades humanas e príncipe encantado já virou alvo de chacota em comercial de cerveja, acabei abandonando essa idéia macambúzia lá pelo final da adolescência. Afinal, não há nada mais impróprio e fora de moda do que ficar bancando o romântico fin de siècle em pleno século XXI.

Mas não é de todo kitsch que se consegue escapar ileso. Assim, à primeira visão de uma árvore de natal montada, de um presépio de cidade pequena ou de guirlandas coloridas penduradas às sacadas, eu fico naturalmente nostálgica e meio dândi, repleta de impressões estéticas sobre as festividades e um desejo enorme de rever filmes antigos, ouvir músicas espectralmente velhas, reler livros garimpados em sebos, enfim, habitar a morada sentimental com velharias conhecidas que, de tão enfronhadas na alma, já adquiriram valor de símbolos, verdadeiros estandartes. Porque, pensando bem, o natal e todo o período de comemorações posterior a ele estão envoltos por uma aura de simbologia: presentes, velas, ceias, árvores, guirlandas, família reunida, Renato Aragão e o Criança Esperança, tender à califórnia, consumo excessivo de calorias e horas a fio de suor e lágrimas na esteira depois. E o homem nada mais é do que o resultado das metáforas existenciais e emocionais que os símbolos marcam em sua vida. Sem rituais simbólicos somos meros espantalhos inertes e nus, confundindo-se com a paisagem seca dos tempos de estiagem. Meu ritual simbólico de natal, por mais bizarro que possa parecer, é adentrar o universo da naftalina. Poderia ser pior. E se eu achasse simbólico e lindo pernoitar em botecos, acompanhada de garrafas de gim e músicas bolorentas de juke box...?

A poucas semanas do natal, nada me fascina mais do que cantigas celtas, gaitas de fole, filmes épicos com, no mínimo, três horas e meia de duração, patinação no gelo e literatura russa. Eu sei que essa é uma simbologia muito aloprada, quiçá psicodélica. Mas, convenhamos, símbolos alternativos não precisam de coerência nem explicação. Basta que façam sentido para alguém e pronto; acende-se uma vela no castiçal das metáforas de fim de ano. Na desordem primal do subconsciente moram muitos símbolos. Talvez os meus façam parte de um único e gigantesco quebra-cabeça que me escapa à percepção e compreensão. De qualquer forma, dezembro e janeiro são meses de férias, e todo bom psicanalista que se preze sai para viajar com a família, tomar um sol em Búzios e se livrar, ao menos por um tempo, de seus pacientes neuróticos. Então, fica o subentendido pelo perfeitamente explicável.

Amazing Grace faz parte do elenco simbólico dos meus rituais natalinos. A música, originalmente composta pelo inglês John Newton, em 1779, como hino de louvor, tornou-se um clássico mundialmente conhecido. Está para nascer um cantor famoso que não tenha gravado pelo menos uma versão própria de Amazing Grace. Reza a lenda que John Newton, membro da Marinha Real da Inglaterra, iniciou sua carreira como traficante de escravos. Quando teve seu barco praticamente destruído por uma tempestade em alto mar e a vida por pouco não tomada pelas ondas selvagens, percebeu que somente a graça divina poderia tê-lo salvado de tal catástrofe. Newton abandonou, assim, a profissão lucrativa e nada politicamente correta - nos dias atuais, claro - de traficante de negros africanos, para abraçar a carreira de pastor e escrever aquela que, mais tarde, seria uma das músicas mais populares da língua e cultura anglo-saxãs.

A música soa como cantiga de natal para mim. Sempre gostei da canção, não posso negar, mas, nessa época do ano, não ouvir Amazing Grace seria, para mim, pior do que não comer pelo menos uma dúzia de rabanadas. Em 2006, o diretor Michael Apted lançou o filme de mesmo título, adaptado para o português como "Jornada pela Liberdade". A produção conta a história real de um membro do Parlamento inglês, William Wilberforce, líder do movimento abolicionista britânico. Por suas conquistas, Wilberforce entraria, alguns anos mais tarde, para a Câmara dos Comuns. Entre seus amigos, o filme mostra John Newton e a circunstância em que, hipoteticamente, ele compôs Amazing Grace. Não assistir ao filme, pelo menos uma vez antes e/ou durante o natal seria, para mim, como passar o natal sem chester nem recesso do comércio. 

De qualquer forma, a música, preconceitos levianos à parte, é bela, simples, sonora, comovente e aliviante. Ouvi-la no natal, réveillon, carnaval ou em qualquer ocasião, vale a pena. Ao menos para mim, cuja partitura simbólica da vida vibra com a melodia e a letra de Amazing Grace. Além do mais, saber que uma canção composta no século XVIII ainda é cantada hoje, da mesma forma que John Newton a elaborou, toca  meu acorde saudosista e nostálgico e embrulha meu fim de ano com o tal papel dourado, quase místico, que dá sentido aos rituais e celebrações. Posso não montar uma árvore de natal, nem ficar acordada até a meia noite do dia 24 para compartilhar o arroz com passas com os convivas, mas, na solidão que cada ser humano encerra dentro de si, escuto Amazing Grace e sinto-me mais próxima de ideais autênticos. Mais próxima do divino, que é belo, simbólico e atemporal. Como a canção de Newton e a própria concepção que temos do natal.

"Jornada pela Liberdade", 2006