19 de dezembro de 2010

Go, Rocky!



Filmes de Natal são geralmente muito cansativos, sem falar nos roteiros, que são basicamente a variação não muito criativa do mesmo tema: o filho pródigo que à casa torna, dessa vez com a noiva, para cear em família e confrontar seu Complexo de Édipo invertido, as DRN (Discussões de Relacionamento Natalinas) típicas que culminam na resolução de inúmeras neuroses antes da chegada de Santa Claus, o moleque endiabrado que os pais esquecem em casa e você já sabe todo o enredo de cor. É inevitável. A uma semana do Natal começa nas televisões paga e aberta a maratona de exibições desses "clássicos" e, o mais espantoso, a indústria cinematográfica americana, que parece nutrir uma obsessão à parte pelo tema, continua produzindo essas pérolas no mesmo ritmo em que a MGM, há sessenta anos, produzia seus inesquecíveis musicais. O X-mas movie, como é chamado, já é um gênero consagrado da liturgia norte-americana de Natal, tão essencial como o peru, as meias penduradas à lareira, o boneco de neve com uma cenoura no lugar do nariz e o indefectível mistletoe, aquela plantinha parasita com frutos vermelhos que os gringos usam para adornar suas guirlandas. O filme de natal não precisa necessariamente estar direcionado ao público infantil, como "O Grinch", "Scroodge", "O Expresso Polar" e "As Crônicas de Nárnia". Basta que haja neve, uma história de amor com final feliz, gente se reencontrando no La Guardia e o eterno tema da culpa e reparação para que a película seja rotulada como um X-mas movie.

Há que se respeitar as tradições, mesmo que não se comungue delas. E, em termos de tradições natalinas, não há povo mais prolífico e imagético do que o anglo-saxão. Mesmo que você nunca tenha passado um único X-mas Eve na Inglaterra ou em qualquer estado da ex-colônia britânica, seu lastro cultural é de tal forma difundido que já habita parte do nosso próprio repertório natalino. Sempre penso nisso quando vou a algum shopping nessa época do ano e me deparo com o papai-noel de barba de algodão e trajes vermelhos, crédito da Coca-Cola Company, é importante lembrar. Quer dizer, não é difícil pensar na estranheza de um sujeito da tez morena de sol tropical, encapotado de vermelho, sentado num trenó puxado por renas de papel machê, uma garrafa de Minalba geladíssima a seus pés e um enorme ventilador a sua frente, para impedir a desidratação do pobre Noel devido aos quase quarenta graus do Rio de Janeiro. O ideal de Natal que compramos é tão perfeito, limpo e lindo que ninguém imaginaria, por exemplo, um membro da tribo dos Tapajós distribuindo talos finos e macios de cana-de-açúcar para a criançada sob uma frondosa mangueira e pegando carona num boto para voltar à sua fábrica de brinquedos lá no distante Amazonas. Esse é o poder imagético da cultura: não se pode adaptar um modelo pronto a uma realidade diversa. Ou se compra esse modelo e o adota integralmente, ou inventa-se uma mitologia própria, totalmente específica, para adornar os ritos culturais.

Por esse sentimento de estranheza que tenho quando vejo guirlandas de mistletoe, dúzias de candy canes - os pirulitos em forma de bengala - e bonecos de neve enfeitando nosso natal ensolarado e esturricante, não vejo legitimidade na maneira como celebramos o Natal. O choque entre as incomunicáveis formas do kitsch cultural anglo-saxão e latino-americano é o que gera em mim certa repugnância do Natal, da árvore com pisca-piscas e dos atores vestidos de Santa Claus, que as crianças menores, com sensibilidade estética mais aflorada e pura do que a de marmanjos indiferentes, temem como ao bicho-papão. Na verdade, dá até para dar umas boas risadas nessa época. Dia desses, durante minha caminhada vespertina na cidade, passei pela sacada de uma casa que se destacava com guirlandas enormes, mistletoe para dar e vender, um boneco de neve de isopor sorridente e um pinheiro de plástico digno das mais autênticas florestas de coníferas do Canadá, com uma reluzente estrela de Davi na ponta e pinhas salpicadas de neve artificial. Olhando aquela sacada e o cenário cuidadosamente montado, senti-me no ringue de patinação do Rockefeller Center. Ocorre que a tal casa se situa bem acima de um boteco super movimentado do qual, por um desses mistérios aos quais nos foge a compreensão, começou a tocar um axé "arretado" naquele exato momento, num volume de nem sei quantos decibéis. Ali estava o absurdo confronto entre o kitsch anglo-saxão e o kitsch tupiniquim.

Da mesma forma que esse confronto me faz sentir estranheza com relação à celebração de Natal e a todos os elementos dela imbuídos, os X-mas movies também o fazem. Daí, para não ficar numa constante geléia cultural e não sentir meu cérebro derreter com as canções do Bing Crosby, eu evito a programação nessas duas últimas semanas como o diabo corre da cruz. Ontem à noite assisti, pela milionésima vez, a um filme sobre a Guerra do Vietnã de que gosto muito. Não há nada mais reabilitante no Natal do que uma salva de tiros cruzados entre vietnamitas e soldados americanos prestes a perder o que restava de sua inocência. Mais tarde, conferi a programação de um canal pago, mas logo desisti quando vi a cara verde do Jim Carey, praticamente irreconhecível na pele do insuportável Grinch. Num protesto solitário, assisti ao "Labirinto do Fauno", uma fábula sombria do diretor mexicano Guillermo Del Toro. A visão dos rebeldes de tocaia nas montanhas espanholas, lutando contra o regime opressor de Franco, e a construção de identidade de uma menina cujo companheiro de aventuras é um bicho-de-pau que vira fada, levou-me definitivamente para longe, muito longe do Grinch.

O Universal Channel Brasil resolveu reprisar na manhã de hoje "Rocky Balboa", de 2006, algo que me fez pensar sobre essa pantomima de dezembro. Todos os cinco filmes da série foram lançados no Natal, nos Estados Unidos, e isso não aconteceu por acaso. Em outras palavras, os produtores de "Rocky" categorizam-no como um X-mas movie ou querem que a gente acredite que seja um. Para mim, isso sempre foi uma contradição porque não vejo em Balboa muito apelo aos corações encantados pelo Jingle Bells. Talvez a história de superação do boxeador e a própria idéia de uma nação construída por imigrantes bastem para que o filme seja considerado uma boa opção de entretenimento no Natal. Enfim, "Rocky" é um desses filmes que eu preciso ver, não importa a hora nem a época em que esteja de reprise na TV. Quer dizer, depois do Superman, do T-101 e do Maverick, Rocky Balboa é o herói de grande parte da população que viveu o auge da adolescência nos anos oitenta. Talvez seja a escalada rumo à vitória do "Italian Stallion" interpretado por Stallone, ou a cena clássica do boxeador erguendo os braços para o céu após subir as escadas do Museu de Arte da Filadelfia, ou as lutas coreografadas para ferver o sangue do espectador ou, simplesmente, a música tema eletrizante, "Gonna Fly Now", de Bill Conti, vai saber. Mas, contra fatos não há argumentos. Rocky Balboa rules, e mesmo que ele enfrentasse Ivan Drago, Clubber Lang ou o durão Apollo Creed com um gorro vermelho na cabeça, ainda assim seria o bom e velho Rocky.

No filme que o Universal exibe essa semana, o sexto da série, Balboa está viúvo e vai ao ringue pela última vez para enfrentar o campeão mundial dos peso-pesados, Mason Dixon. A película em que foi rodado lembra em tudo o primeiro filme, de 1976. Mickey, o antigo treinador de Balboa, está lá. A música tema, a escadaria do Museu, o açougue e as corridas pelos subúrbios da Filadelfia também. A camaradagem e o forte senso de família do boxeador são os mesmos. Stallone, com sessenta anos em 2006, ano em que a última seqüência foi lançada, tem rugas e bolsas de gordura ao redor dos olhos e a voz enrouquecida pela idade, mas os músculos do peito, dos braços e do abdômen ainda fazem inveja a muitos garotões sedentários de vinte e tantos anos. O lema do filme é simples e condiz com a figura do "coroa" de cara inchada que, há exatos 30 anos, estava no topo da cadeia alimentar do boxe profissional: na vida, não importa o quanto você bate, mas o quanto você aguenta apanhar firme até o final. É um clichê catchy e agradável de se ouvir, que você compra com facilidade e, sem se dar conta, acaba torcendo pelo "garanhão italiano" agora da mesma forma que torceu nos outros cinco filmes. 

A razão pela qual os filmes de Rocky são sempre lançados no Natal ainda se mantém um mistério para mim. Tudo é muito melancólico para combinar com a efervescência natalina que o povo tanto aprecia: Filadelfia, cenário e personagem dos filmes, é uma cidade que ostenta mais o antigo do que a modernidade dos shoppings e das inevitáveis compras de Natal; Balboa é um lobo solitário, que vive o sonho americano mas jamais abandona seus companheiros negros, latinos, pobres e marginalizados; embora o enredo seja sempre uma história de superação pessoal, o clímax dos filmes são as cenas de luta, em que o diretor não nos poupa do sangue, de cortes no supercílio nem de olhos inacreditavelmente inchados; a música tema e a inesquecível "Eye of the Tiger" têm um ritmo de marcha e guitarras que destoam dos sinos e harpas dos carols natalinos. Até as cores privilegiadas, muitos tons de cinza, céus nublados e penumbras, são um contraste com a iluminação efusiva e o multicolorido habitual de filmes do gênero. O fato é que Rocky faz parte da programação de Natal da TV brasileira e, felizmente, não me lembro de nenhum boneco de neve nem de um único ramo de mistletoe em nenhum dos seis filmes. Mas a negação psicológica é um fenômeno poderoso e talvez Adrian, a esposa de Balboa, possa ter decorado a casa num ou outro Natal o que, então, eu apagaria convenientemente da memória.

5 comentários:

  1. Conversava sobre esse treco ridículo que é o natal no Brasil ainda ontem, com colegas historiadores - nada é mais representativo da capacidade nacional de ingerir lixo que a adoção entusiástica da parafernália kitsch de natal... em um país tropical!
    O integralismo, nos idos de 1930, tentou resolver essa babaquice com outra estultície ainda maior: o Vovô Índio.
    Sim, é surreal - mas é verdade. Veja: http://construindohistoriahoje.blogspot.com/2010/12/papai-noel-x-vovo-indio.html

    Outro comentário que me vejo forçado a fazer é sobre as datas de lançamentos da série "Rocky". A jornalista não checou suas fontes - de todas as seis películas da série, apenas duas foram lançadas em dezembro: a I e a VI (respectivamente, em 1° de dezembro de 1976 e 20 de dezembro de 2006). Rocky II foi lançado em 15 de junho de 1979, III em 28 de maio de 1982, IV em 27 de novembro de 1985, e o V em 16 de novembro de 1990. Minha fonte, claro, é o Internet Movie Database, IMDB. Se não conhece, acesse. Agora.
    DITO ISTO, revelarei o mistério da vinculação de um deformado pugilista e Papai Noel - Rocky I e VI são histórias de superação pessoal. De, ainda que na derrota, perseverar e, com isso, ter a vitória moral.
    Dificilmente um tema poderia ser mais natalino - renovação, confiança, reafirmação dos valores tradicionais americanos/quackers: coragem, trabalho duro, família, perseverança.

    Por fim, recomendo DOIS filmes de Natal: um clássico INDESCULPÁVEL e um "anti-natalino". O primeiro é "It's a Wonderful Life" (Frank Capra, 1946), com o James Steward no papel de sua vida (segundo o próprio). Basicamente esse é o pai de todos os Christmas Movies - e de longe o melhor.
    Em segundo, "Bad Santa" (Terry Zwigoff, 2003), com o Billy Bob Thornton posando de ladrão fantasiado de Noel, falido, trash... e hilário. É o Natal visto por gente "normal", off-kitsch.

    E, no mais, sempre gosto de lembrar: natal é o cacete! A festa foi roubada de Mitra, que por sua vez foi roubada dos cultos solares.

    Beijos!

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  2. A-ha! Mas o que as suas fontes não sabem, amigo, nem o tal IMDB, é que as seqüências lançadas em maio, junho e novembro, renderam uma bilheteria tão estrondosa que a MGM, na época, resolveu fazer um "re-opening" no Natal. Pasme. As que foram lançadas em novembro, cacete, podem ser consideradas lançamento de Natal. Os WASP's já entram nesse clima muito antes de o os corais de carol tocarem suas campanhias. Cara, Vovô Índio. Fiquei em estado de estupefato choque quando vi isso. Agora, a gente bem que podia formar um clube de adoradores de Mitra, usar uns chifres bem pagãos e celebrar o Natal à nossa maneira, o que acha? Sem o sangue dos sacrifícios, claro.

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  3. Anônimo22.12.10

    Sem maldade http://bandasetevidas.blogspot.com/2010/11/nesse-natal-seja-legal-com-o-brasil.html

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  4. Sensacional essa iniciativa de voltar com o Papi Noel!
    Se TEMOS de escolher uma ficção pro Natal, que ao menos seja uma que faça algum sentido em nosso quitodiano tropical. Que Clio me perdoe, mas nessa eu fecho com os integralistas de quase cem anos atrás - não ao Noel da Coca-Cola Company e pela volta do Vovô Índio!

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  5. Clio, musa das historia? Ou Calipso, musa da poesia...? Tambem fecho com os integralistas. Mas confesso qua ainda tenho certo receio do Vovô Indio...

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