4 de dezembro de 2010

canta pra subir!


Sempre tive tudo para ser uma pessoa guiada pela fé. Pensando bem, poderia até ser bastante religiosa e espiritualizada, já que algumas das pessoas a quem mais amei durante a minha infância, e com quem convivi de perto por muitos anos, eram extremamente religiosas. Quer dizer, se considerarmos que a crença no metafísico seja algo "de família", e que seguimos os exemplos daqueles que amamos como referência, seria natural que alguém com avós, tios, pais e primos religiosos fosse, igualmente, devoto de alguma forma de fé. Ao menos essa foi uma das concepções que sempre nutri da fé: uma habilidade "herdada" de nossos ancestrais, quase como um traço fenotípico ou uma cadeia genética hereditária. 

Entretanto, tal concepção mostrou-se totalmente inválida para mim no decorrer dos anos, uma vez que nunca tive fé, pelo menos não no sentido metafísico da palavra. Ateus se orgulham muito de dizer que não têm fé nem crença em nenhuma entidade religiosa e, de fato, costumam ser tão avessos à idéia da existência de "algo superior" que acabam se tornando praticantes extremistas de sua própria "não-religião". No afã de negar o sagrado a todo custo, ateus convictos passam a cultuar o dito "profano", para desenhar entre eles e os crentes uma linha divisória bem definida. Então, acabam sofrendo o efeito rebote da crença e da fé. Por almejarem o pleno distanciamento de qualquer prática religiosa, ateus extremistas tornam-se, não raro, tão cegos quanto fundamentalistas e crentes fanáticos. Revoltam-se contra pessoas que praticam qualquer tipo de rito religioso, condenando-os e taxando-os de levianos e incultos, incitam debates acalorados e preconceituosos à menor menção do sagrado e restringem-se a um universo cujas práticas sócio-culturais jamais incluem a mais leve noção de fé. Limitam-se, pois, principalmente porque se definem. O ateu convicto tem tanta fé quanto um cristão praticante. A única diferença entre eles é que o cristão tem fé no divino e na providência, enquanto o ateu carrega consigo uma fé inabalável na não-existência do divino e do sagrado. São, portanto, as duas faces de uma mesma moeda.

Eu nunca fui atéia, de fato. A bem da verdade, sempre evitei caminhar sobre o campo minado das discussões sobre religião. Certos pontos de vista são tão definidos e arraigados que, em um possível confronto entre si, não geram debate nem dialética, apenas confusão e falastrice. Como nunca tive opinião formada sobre a existência ou não do divino, abstenho-me solenemente de tais discussões sem sentido. Prefiro não rotular minhas tendências, nem me definir ou limitar a um grupo específico. Considero muito mais sensato manter as portas abertas para o mundo, inclusive para a crença no sagrado. Também não duvido nem questiono pontos de vista a esse respeito. Para ser mais exata, é como se eu pairasse por sobre a religião, o sagrado, o profano e o ateísmo. Não é de meu interesse converter ninguém a qualquer dogma, portanto, sempre toquei o barco da vida norteada por valores construídos e adquiridos ao longo dessa jornada, a saber, valores éticos, e não morais. Não por coincidência, sempre fui muito disciplinada e altruísta no trato para com os outros. Quando não se tem diretrizes religiosas a seguir, nem o temor do castigo e da punição por não seguir tais diretrizes, viver torna-se muito mais uma responsabilidade solitária. Sem um deus para orientar, proteger e perdoar, é preciso agir conforme seus próprios mandamentos e se policiar o tempo todo para ser honesto, cordato e justo, além de nunca invadir o espaço alheio. Ter fé e seguir uma doutrina não garante uma vida de recreação, indulgências e hedonismo, pelo contrário. Mas não seguir uma doutrina e viver de maneira ética pode ser igualmente complicado, já que você acaba se tornando um mártir de si mesmo, mais auto-crítico e compassivo.

Mas sinto falta da fé. Crer em alguém ou em alguma coisa, Deus, reencarnação, vida eterna, o cosmo, a força interior de cada um, não importa. Crer é uma habilidade inata e, preconceitos ateus à parte, uma habilidade e prática aliviantes e renovadoras. Sigmund Freud, um dos maiores pensadores do século XX, afirmava que a religião é o ópio das massas, já que, como o "bálsamo" extraído da papoula, alivia a dor, acalenta a alma solitária e, por final, entorpece. O que Freud nunca disse, nem publicou para a imortalidade foi que, durante anos e até o final de sua vida, foi usuário compulsivo de ópio, assim como inúmeros de seus contemporâneos filósofos e vários antes dele. Quando encontro-me numa situação de desesperança profunda, lembro-me da frase de Freud e sinto-me num beco sem saída: sem o alívio e a segurança proporcionados pela fé, através da concentração durante uma oração, por exemplo, e principalmente sem a menor sombra de ópio para me entorpecer os sentidos e permitir-me distanciar do sofrimento, mesmo que por alguns momentos, vejo-me presa fácil dos percalços da vida e tenho a certeza inabalável de que sou a pessoa mais solitária do universo.

Quando digo que a fé é uma habilidade inata, não me refiro a templos, pregações nem dogmas. Aqui, falo da fé primordial e inerente, da capacidade que o indivíduo tem de entrar em comunhão com a sua própria consciência, num exercício de meditação que nada mais é do que uma forma de extrema concentração mental. Dessa maneira, a pessoa mentaliza o objeto de sua fé, depositando nele confiabilidade e, de alguma forma, acreditando que terá um retorno positivo de sua prece, terá o bálsamo para a sua dor. Um cérebro em concentração ou meditação regula automaticamente a respiração e os batimentos cardíacos do corpo, desacelerando-os naturalmente. Além disso, o lobo frontal do cérebro, concentrado em uma oração, libera altos níveis de endorfina, dopamina e serotonina, neurotransmissores responsáveis pela sensação de paz, alegria, conforto e recompensa. Ora, se somos ou não filhos criados à semelhança do Pai, isso não importa tanto quanto a idéia de que o divino reside em nossas próprias mentes e que, através da capacidade de crer, não nos sentimos tão vulneráveis e sós. Suponhamos que a fé esteja inscrita num código de pares de genes. Se quiser analisar a questão de forma menos "científica", pense na fé como uma chave em posse da qual você já vem ao mundo. Assim, não possuir a capacidade de ter fé é uma desvantagem na corrida pela seleção natural.

Tome um exemplo: um amigo meu consegue contornar as emoções dilacerantes de um luto, em parte com suas orações, ou seja, com a concentração, mentalização e, em última instância, com a fé. Diante do peso da derrota, da solidão e do luto, eu, em contrapartida, mal consigo abrir as janelas de manhã sem precisar de uma ou duas pílulas da felicidade adequadamente legalizadas pela Anvisa e pelo FDA. Quem está em franca desvantagem aqui? Meu amigo, que usa sua crença para sair do lamaçal e leva seu cérebro a produzir neurotransmissores de serenidade e plenitude naturalmente, ou eu, que em busca da mesma plenitude e serenidade, acabo por engordar a caixinha de natal do laborátorio Wyeth, obtendo como resultado um cérebro embotado e uma passageira irritação gástrica?

Fizeram-me pensar sobre isso dois novos amigos que ganhei da vida, do cosmo, das circunstâncias, de Deus. Um deles é Lucinete, minha "boneca" guerreira, que vem me telefonando insistentemente há duas semanas, dizendo-me palavras de incentivo e quase pondo-me porta afora de casa aos pontapés, para que eu encare a vida, a batalha e a escada. Esta é a segunda vez que escrevo sobre Lucinete, por ela e para ela. O outro amigo que ganhei "de lambuja" é, na verdade, o pai e mentor da "boneca", uma criatura que, com um abraço apertado e a frase "você é maravilhosa, menina! Olhe, o dia é maravilhoso!" dita olhando-me nos olhos, ganhou minha admiração e lealdade com meia hora de prosa. Se Lucinete é a "boneca", Tim é o "berço" que embala, acalma e renova como uma noite de sono e paz.

O cosmo deve, de fato, conspirar a favor de nós, mortais confusos, sofridos, enraivecidos e mudos. Eu não consigo ter fé, embora nutra o desejo perene de possuí-la. Mas a "boneca" e o "berço", meus mais novos amigos, a têm de sobra, por eles e por mim. E talvez nesse loco, no momento em que os dois vêm ao meu encontro para me mostrar que o céu está azul, que há vida em abundância e que é preciso derrotar cada obstáculo para que se possa ver o azul e a vida, e não o cinza e o adormecido, talvez nesse momento o cosmo faça votos de felicidade para mim e Deus... bem, Deus simplesmente saiba que eu, a "boneca", o "berço" e você existimos.

Não há ninguém mais apropriado do que a "boneca" para entrar numa trincheira ou sarjeta com você e tirá-lo de lá, mesmo que ela precise carregar o fardo nos próprios braços pequenos, mas fortes. Ninguém seria mais adequado do que ela para passar uma noite assombrosamente escura ao seu lado porque todas essas mazelas, a trincheira, a sarjeta, a fossa e a escuridão, são velhas conhecidas de Net. Ela me abraçou apertado, olhou-me bem dentro dos olhos e contou-me um pouco de sua história. A "boneca" chora quando se lembra das trincheiras onde teve que se esconder, das sarjetas em que viveu porque simplesmente não tinha lugar algum para ir, da escuridão das noites em que fantasmas do passado e de um presente brutal vinham-na assombrar. Ela chora, o que é compreensível, mas em segundos seca as lágrimas e diz: "Cara, se você tem um obstáculo na vida, pode ter certeza que também tem a solução para ele". Parece simples, e é simples, de fato, embora não necessariamente fácil. Vendo meu olhar velado e descrente, ela contra-ataca com um argumento irrefutável: "É, sim, cara. A solução tá no nariz da gente, mas a gente não vê, porque tá ocupado demais olhando pra merda do problema!". Palavras duras que só a "boneca" pode pronunciar  se quiser torná-las leves, reais e belas.

Nas lágrimas de Lucinete vejo e sinto o sal das minhas próprias. Mas ela está a alguns passos a frente do caminho: tem fé e uma perseverança que me assombram. E, mais do que isso, a "boneca" tem a alma forjada por um otimismo que toma conta do espaço que ela ocupa como gás, expandindo-se. Com Net, você só fica no breu e no sereno se quiser, porque ela faz de tudo para levá-lo para um quintal onde é sempre meio-dia. Quando se despediu de mim, disse-me mais uma de suas frases tão peculiares: "Amiga, sai da concha, vai pra vida, cai pra luta e canta pra subir!" É impossível não sorrir ao recordar essas palavras e a imagem do rosto e do riso de Lucinete. Diante de tal força, otimismo e fé, a gente acaba entendendo que precisa pegar aquela mão estendida em nossa direção e começar a engatinhar, para depois caminhar e, finalmente, correr com as próprias pernas, intrépidas e fortes. A lição da "boneca" é, na verdade, bastante simples: "Se eu consegui, cara, e olha que ninguém dava nada por mim, por que você não conseguiria?". Faz sentido. Total sentido. E canta pra subir, Lucinete!

Nenhum comentário:

Postar um comentário