18 de dezembro de 2010

testes


Um amigo meu, talvez o único ser-humano além de uns poucos membros da minha família a quem posso de fato chamar de amigo, incumbiu-me de um teste, uma lição de casa essa semana. Antes de falar da tarefa propriamente dita, preciso dar algumas informações a respeito desse amigo, como a desenvolver o personagem, por assim dizer. Conhecemo-nos desde os 14 anos, mas moramos relativamente distantes um do outro (ele, no Rio de Janeiro, eu, no topo da Serra do Mar), embora o verdadeiro elemento responsável por tal distância sejam os nossos estilos de vida, hoje bastante díspares. Estudamos juntos e, desde os bolorentos tempos do colegial, discordamos  em quase tudo o que não importa muito na vida prática, principalmente em questões intelectuais chatíssimas, que ninguém com o mínimo senso de ridículo fica discutindo por aí. Mas esse meu amigo e eu nunca tivemos muito senso de ridículo, ou talvez apenas fizéssemos o gênero "polemizador". Em outras palavras, éramos dois nerds deslocados que sentiram um no outro o cheiro do ostracismo e acharam por bem fazer uma dupla dinâmica, mesmo às turras na maior parte do tempo.

Quando houve aquele plebiscito para os brasileiros escolherem entre três regimes de governo - presidencialismo, parlamentarismo e monarquia - tínhamos 16 anos e pensávamos que éramos muito politizados. Bem, pelo menos era essa a imagem pela qual a gente precisava zelar na escola, naquela época. Eu defendia o presidencialismo, ele, a monarquia. Pensando melhor agora, acho que esse plebiscito nem existiu. Acontecimento assim tão surreal só pode ter sido fruto de nossa imaginação adolescente muito ativa ou de uma eventual insolação de que fomos vítimas, já que passávamos tardes inteiras andando de bicicleta pela cidade, feito dois maratonistas de Belleville. Ele conhece mais de 60% das minhas mazelas - estranho isso, quantificar as mazelas de alguém - e me visita uma vez por ano. Essas visitas acontecem normalmente na época de Natal, quando ele também vem para o topo da Serra, para partir o chester e dividir as rabanadas entre os poucos mais de quinze membros de sua família. Nas ocasiões em que me visita, ele às vezes traz sua namorada, e aí a coisa toda fica muito mais divertida porque eles bebem umas cervejas e eu, que não bebo nunca, mas me comporto naturalmente de maneira ébria (o que deve ser mais embaraçante socialmente, admito), acabo me aproveitando da situação para forçá-los a jogar "verdade ou conseqüência" comigo. Meio bêbados e insones, eles dizem um monte de verdades, me fazem dizer outras tantas e a gente acaba se divertindo bastante.

Para saber quem é nosso amigo de verdade, bastam apenas três testes, relativamente fáceis de se fazer. O primeiro, é ligar para a casa da pessoa em alta madrugada, no auge do desespero emocional ou para contar uma piada esdrúxula, tanto faz. É apenas depois das duas e meia da manhã, pelo telefone, que a gente sabe se tem ou não um amigo. O segundo teste é passar seis meses ou mais sem trocar uma palavra com o candidato a amigo e, numa única conversa, constatar que tudo está mais ou menos do mesmo jeito como da última vez em que se falaram. Quer dizer, vocês basicamente continuam rindo das mesmas coisas e brigando pelas mesmas bobagens. Esse exemplo pode até parecer meio simplista e, à luz do relativismo, cair por terra. Mas, no frigir dos ovos, por mais que a gente rodopie na vida como elétrons, ninguém se permite sofrer alterações radicais em sua essência em seis meses. Você pode até passar a ouvir um estilo de música diferente, casar, descasar ou entrar para uma seita de bebedores de Matte Leão, mas a essência, aquela argila de que somos feitos e que nos molda a personalidade e os valores, esta não muda muito, se é que se modifica de fato. O terceiro teste, obviamente, é passar uma noite jogando "verdade ou conseqüência" com seus amigos e, na manhã seguinte, todos continuarem sãos, salvos e amigos. Bem, talvez esse teste não seja dos mais fáceis de se fazer, afinal.

Voltando à vaca fria, meu amigo me incumbiu de um teste essa semana. Nada muito complicado, talvez algo um tanto desafiador, o tipo de tarefa que só faz a gente esturricar os miolos se vier de alguém que consideramos um amigo na mais alta estima. Ocorre que esse meu companheiro de credo e de cruz - e aqui cabe uma ressalva: ambos ficamos no placar "zero de credo a mil de cruz" - ocupou-me o tempo com o desafio de escrever o que ele chama de "poema sujo". Danou-se. A coisa toda surgiu a partir de um telefonema meu para lhe dar os parabéns por ter passado no Doutorado. Este é dos grandes objetivos de vida do meu amigo, um norte para o destino por vezes confuso que ele traça. O mínimo que eu poderia fazer era ligar para ele no meio da tarde, gastar os tubos com um interurbano de quarenta minutos, contar as novidades e ouvir as novidades. Claro que, a uma certa altura, perguntei porque ele não lê esse blog. Afinal, o cara é meu amigo. Deveria ser um leitor assíduo, caramba, postar comentários, chocar a burguesia blogueira e mais o pacote completo que um escritor frustrado pode esperar de um amigo e escudeiro fiel. Diante das minhas cobranças e da evidente carência de público que me acometia, meu amigo não perdeu tempo. Postou-se em frente ao PC, ainda com o fone em mãos, e pôs-se a ler alguns textos em voz alta. E como rimos juntos!


Acontece que meu amigo me disse que, ao enveredar pelo terreno do texto erótico, eu mais pareço uma vetusta e puritana senhora escolhendo palavras apropriadas, leves e formais para falar do que há de menos apropriado, leve e formal, ou seja, o coito. Puxa, aquilo foi um tapa na cara, um soco no estômago, um chute na canela, uma rasteira na minha aspiração literária! Tudo bem, vai, estou exagerando. Mas o leitor faz alguma idéia de como é complicado escrever um texto erótico sem, digamos, vasto conhecimento de causa? Isso sem falar em inspiração. O que me levou a crer que, de fato, talvez haja muita repressão judaico-cristã em meu repertório ou, para ser honesta, um certo complexo de Édipo mal resolvido na minha caixola, no sentido bíblico da palavra, para escrever como Paul Verlaine, Madame Bovary e Hilda Hilst. Segundo meu amigo, eu estou mais para uma Emily Brontë ou, na melhor das hipóteses, um Nathaniel Hawthorne pudico e bigodudo. Valha-me Deus. É de Hawthorne o romance "A Letra Escarlate". Se você não o leu, não vá investir seu tempo nessa novela específica justamente agora, a poucos dias do Carnaval, cara-pálida. Se quiser, alugue o filme baseado no livro, com a deslumbrante Demi Moore, como a colonial casada e infiel até o último fio de cabelos, e o sorumbático e eterno Drácula, Gary Oldman, como o reverendo por quem ela se apaixona. Uau. É tudo muuuito picante, até a galera aviltada de Massachussets acender as fogueiras para assar a bela, adúltera e corajosa Demi. Ainda em tempo, o filme não é lá essas coisas para reacender o fogo de casais abrandados pela rotina, mas a trilha sonora, de Jonh Barry, é esplendorosa.

Claro que eu contestei. É óbvio que tentei salvar minha pena erótica. Afinal, os textos já foram postados, quem teria que os ler já o fez, então o mínimo que eu podia fazer era defender a minha honra manchada pela crítica construtiva do meu amigo. Mas, confesso, ele fez aqueles contos parecerem realmente literatura para senhoras apaixonadas no climatério. Daí surgiu o desafio. A bem da verdade, tudo seria muito mais simples se saíssemos para um duelo de espadas em pleno nevoeiro invernal da Serra do Mar. Para aonde, logicamente, eu enviaria não um espadachim em meu lugar, mas um habilidoso pistoleiro do Morro do Alemão para passar fogo no meu amigo. Enfim, o desafio estava lançado e, em tese, eu me redimiria se conseguisse escrever um conto ou um poema "sujo", desses que não falam "sexo umedecido" mas, vá saber, "boceta gotejante"? Puxa, como isso é embaraçoso. Admito que me aventurei por cinco, talvez dez linhas. Mas, quando via o resultado, eu brochava muito antes do clímax e do desfecho textuais, por assim dizer. Minha verve poética brochava literalmente, literalmente. O que, por mais que meu orgulho saia ferido e eu tenha ímpetos de esganar meu amigo pornográfico, atesta meu total fracasso na real, fina e boa poesia erótica. Jogo a toalha. Não consigo escrever sobre sexo sem o véu esgazeante do jogo de palavras, dos adjetivos comportados e dos verbos e substantivos idem. Quem sabe um dia eu ainda consiga escrever um verdadeiro conto erótico. Mas, por enquanto, falar de amizade, duelos de espadas, natais irritantes e todas essas coisas legais, mas nada eróticas, é mais fácil para mim. You win, buddy.


Já bati a minha. Três vezes. Telas de LCD, watch out.

2 comentários:

  1. Primeiro, colocarei meu ego em sua devida titulação - sou doutorando, não mestrando. Já sou mestre há mais de um ano...
    Segundo, Hawthorne tem de ser lido - me entristece conhecimentos de literatura americana serem construídos a partir de uma película, ainda por cima hollywoodiana. Cinema é não apenas outra mídia, mas mídia de massa - na tradição norte-americana, que dominou o mundo, coisa de analfabeto.
    Em terceiro, que negócio é esse de "pouca experiência" na área erótica?! Virou virgem?? Pois saiba que escritores têm fama imortal de serem as criaturas mais tediosas - e injetam essa "Vida", que falta em suas rotinas, em suas obras.
    Então, você não precisar ser exatamente uma Messalina para poder escrever (e bem!) sobre sacanagem...
    E quanto à sua "broxada literária"... escrever é esforço intelectual ou capricho estético? Se é capricho, não tem importância - se é esforço, não seja impedida pelo seu puritanismo.
    Na verdade, o que temos aqui não é um problema literário, mas cultural! Ah, essa formação judaico-cristã, em colégio de freiras...
    Liberte-se.

    Beijo!

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  2. Desculpa, doutor. Vou lá AGORA corrigir meu erro. Você sabe como esses títulos imponentes me deixam confusa. Eu não sei, eu não sei, eu não sei! Quanto a sugerir que a galera de fato LEIA Hawthorne, Marcelo, fica um pouco difícil. Ninguém lê esse blog. Se eu começar a "catequizar" literariamente os poucos visitantes, aí é que não vou ter leitor nenhum! Só você, para a gente continuar brigando. Nem minha mãe me dá crédito!
    Não, eu não virei virgem, seu zé-couve. Mas estou longe, muito longe de um Verlane, por exemplo. Quanto a injetar vida nas mentiras que a gente escreve, bem, isso é negociável. Escrever é esforço intelectual, mas não só isso. O capricho estético é inerente a quem escreve. Isso tem outro nome, na verdade: estilo. Quando se escreve, é preciso que a gente saboreie o que escreveu, que aquilo soe como poesia, mesmo sem ser poesia e, sobretudo, que seja legítimo, autêntico. Não dá para queimar os miolos, escrever um texto puramente técnico, mesmo que perfeito, e não se encontrar ali. Talvez o problema seja, de fato, cultural. Puritanismo? Pode ser. Resquícios de uma adolescente metida a "tomboy"? Provavelmente. Quem sabe a libertação não venha de outras maneiras, que não através dos textos...?

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