16 de abril de 2011

de cordeiros e lobos

Para Ricardo Ramos


"Todo mundo é lobo por dentro
ninguém é lobo mau pra sempre
tem gente que nasce lobo
responda você...
Você me disse que eu sou petulante, né?
acho que sou sim, viu...
como a água que desce a cachoeira
e não pergunta se pode passar
você me disse que o meu olho é duro como faca
acho que é sim, viu...
como é duro o tronco da mangueira
onde você precisa recostar
você me disse que eu destruo sempre
a sua mais romântica ilusão
e que destruo sempre com minha palavra
o que me incomodou
acho que é sim
como fere e faz barulho o bicho que se machucou,viu..."


Viver não é fácil porque existem opções e caminhos diversos a seguir, além de bifurcações, atalhos, desvios e encruzilhadas na estrada. Não é como receita de bolo, que se segue à risca porque não há muito o que inventar; um bolo contém farinha, água, ovos e açúcar, mas não livre-arbítrio. É a liberdade de escolha que faz a massa sovar. Entretanto, a receita da vida, por mais torta (trocadilhos à parte) que esta se apresente, é bastante simples. Imagine dois pontos, "A" e "B", dispostos no espaço. A menor distância entre esses dois pontos, aprende-se no colegial, é uma reta. Agora imagine que o ponto "A" representa o momento em que a vida começa, como a partir de um riscar de fósforo num salão mergulhado em breu; na outra extremidade do salão está o ponto "B", o instante em que o fósforo, plenamente consumido pela combustão, apaga-se. Unir o ponto "A" ao ponto "B" é a receita da vida. E todos sabemos que a maneira mais prática de fazê-lo é através de uma reta.

Colocada assim a coisa toda parece muito simplória e talvez o seja, de fato. Segundo a máxima popular dos pára-choques de caminhão, "a vida é bela, a gente é que dana com ela". Tem gente que nasce para ser retilíneo, para caminhar direito, para unir os pontos "A" e "B" com uma reta. Estes, possivelmente, não "danam" com a vida. Por "danar" entenda-se perder o rumo e o chão, investir e não obter retorno, dar murro em ponta de faca, crer no inverossímil, acertar algumas vezes e errar tantas outras. Quem "dana" com a vida nasceu para ser torto, para caminhar trôpego e para unir os pontos tal qual um rabisco de criança em pré-alfabetização. O torto é gauche na vida, chega atrasado no ponto, sai de cena quando a peça já está fora de cartaz, toma os atalhos errados, perde os desvios e erra o caminho. Alguns têm sorte suficiente para chegar ao ponto "B" e, ao olhar para trás, reconhecer-se por inteiro, ainda que torto, ainda que remendado. Outros não são tão afortunados; perdem-se no torvelinho das lágrimas e nos novelos dos sorrisos, não encontram o fio da meada e passam a vida a tentar desembaraçar os nós. O torto é como a Rapunzel acastelada, de pés e mãos atadas pelos cabelos que ela mesma falha em cortar.

Sou amante incondicional das histórias que as pessoas têm para contar. Para mim, a vida de cada torto que conheço daria um romance. Se procede a máxima de que atraímos os nossos iguais, e não os opostos, sou irremediavelmente torta e tortos são todos os que uma vez desejaram olhar-me de perto. Faz mais sentido assim; do contrário, há muito mais tortos nos caminhos sinuosos da vida do que direitos nas retas entre o ponto "A" e o ponto "B". Talvez os chineses estivessem certos desde o princípio, quando conceberam a filosofia do Yin-yang, segundo a qual a dualidade do mundo resulta em equilíbrio. Dessa forma, haveria quantos tortos para tantos direitos e, visto de cima, o padrão de retas e curvas desenhado pelos humanos seria harmonioso e belo.

Há tortos que, contrariando a sabedoria popular, tentam se endireitar. Afinal, ter um norte legítimo para seguir é o marco zero da auto-descoberta. E, a bem da verdade, não é o sonho de ninguém passar a existência correndo atrás do próprio rabo, marcando passo e cabeceando no escuro. Porém, a faceta mais intrigante da trajetória de um torto rumo à reta é a fase em que ele percebe que perdeu. Perdeu tempo, oportunidades, apostas, amores, amigos, identidade. O torto cai em si e resolve recuperar o tempo perdido, buscar novas oportunidades, apostar mais uma vez, amar de maneira diferente, fazer amizades sólidas e reconstruir sua identidade. Essa fase é intrigante porque cada torto recupera-se das derrotas à sua maneira.

Tem torto que nasce cordeiro. Não há metáfora mais feliz do que aquela que compara os inocentes a cordeiros. Tudo nesse animal remete à candura: seu pêlo macio, o balido frágil, que é quase um queixume, seu andar cadenciado e pacífico e o olhar ovino, translúcido e órfão. Quando um torto que é cordeiro por dentro percebe que perdeu demais e quer se endireitar, ele cisma em maquiar-se de lobo: insurgi-se contra os padrões que o levaram à ruína, distancia-se das origens, torna-se um marginal. Porque o torto é, por definição, contraditório e, na busca do reto, resvala pela encosta do bom senso e cai no ostracismo. Lembro-me do conselho que um pai, reto, deu a seu filho torto: "se quiser endireitar-se na vida, deve ser uma pessoa comum, como todas as outras". O cordeiro perdedor, assim, veste a pele do lobo vitorioso para dançar conforme a música e ajustar suas medidas tortas às formas rígidas do mundo.

Tem gente que nasce lobo, torto ou direito, tanto faz. Maniqueísmo nunca foi o meu forte, mas às vezes sucumbo ao conforto da imagem do "lobo mau" em contraste com a do "inocente cordeiro". A vida, além de difícil, é muito estranha; há lobos por essência que são retos por excelência e, devorando os espaços, conquistam impérios de sucesso. Há lobos tortos que, nos dédalos da estrada, perdem-se feito ovelhas desgarradas. E há também os cordeiros retos, que traçam a menor distância entre os pontos "A" e "B", não devoram ninguém e ainda plantam uma árvore. Desse tipo já ouvi falar, mas nunca cruzei com um. Em meu habitat viceja a incongruência: cordeiros fingindo-se de lobos e vice-versa; tortos que desejam ser retos e, nessa busca, tornam-se ainda mais tortuosos; retos que obtiveram êxito em tudo o que fizeram e, apáticos e entediados, começam a dar os seus primeiros passos trôpegos; desnorteados temerosos de acender a luz e iluminados que se enclausuram em bolhas e observam a vida passar pela janela.

Viver é difícil e dói, mesmo com tantos caminhos a seguir e papéis para escolher representar. Ou talvez exatamente por isso. Bichos machucados, ferimos outros, fazemos barulho, recolhemo-nos e, conseqüência inafastável, ficamos desgarrados do bando, perdidos, nus e tortos. Então viramos lobos ou cordeiros, o que de fato não faz muita diferença porque, ao final, todos buscamos o direito, o farol, o norte. Confesso que, na trajetória entre o riscar do fósforo e o seu apagar, por vezes sinto-me abatida, consumida pela inércia que a melancolia traz, essa saudade vã do que já se perdeu, do que já foi meu. Mas então pouso os olhos no horizonte e percebo que existem caminhos que ainda podem ser meus, contanto que consiga livrar-me da poeira inútil do passado, desembaraçar os nós e imbuir-me de coragem para a conquista. No entanto, meu sonho não é ser lobo, nem cordeiro; reto, nem torto. Eu queria mesmo era ser balão de gás, para flutuar sobre os melindres do mundo, conversar com as gaivotas, fazer amizade com o vento e ver a terra encontrar com o mar.

12 comentários:

  1. Suas crônicas são bastantes poéticas, leitura muito gostosa. Te desejo muito sucesso...beijo grande.

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  2. Rïcardo16.4.11

    Roberta,

    Estamos caminhando sempre em busca de um ponto B na vida.. Alguns, os mais simples e os que têm melhor aceitação às coisas que a vida lhes impôem, acham facilmente e convivem bem com a junção de A e B. Tornam as suas vidas bem retilíneas e sincronizadas com esse "padrão" de hoje, aquele podrão, digo, padrão que é visto em novelas, filmes, etc.. Ainda estou no caminho, fingindo querer achar o ponto B, mas querendo de verdade não passar nem por perto.. Depois de vários acertos errados, tentando me transformar em quem eu não sou, resolvi pegar as rédeas e assumir o comando, hoje sou dono do que me resta pela frente e assumo as responsabilidades pelos meus atos, errôneos ou não, ou vice versa, tanto faz..Nesse alfabeto de tantas letras que nós temos,B não é a letra que mais me atrai, está muito perto de A, acredito eu, que o caminho é mais longo para aqueles que querem realmente andar por curvas sinuosas e algumas rotas alternativas.. Tenho certeza que eu ainda precise vestir muita pele de lobo pra passar despercebido entre os fiés cordeiros(aqueles que preferem K,H), talvez com sorte eu chegue além de!

    Beijos!

    R.R.

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  3. Eu tenho absoluta certeza, meu querido, de que você vai chegar muito além do "B", com as rédeas em mãos, traçando os seus caminhos sinuosos e tomando rotas alternativas. Sabe, Ricardo, gostei dessa palavra: "alternativo". Tem gente que não nasce torto; nasce alternativo. E de fato não busca o direito e o retilíneo, até porque estes não lhe cabem. Talvez esse seja o seu caso, o meu e o de tantos outros que se perderam num desvio mas retomaram a direção, sendo esta qual for. Por isso gosto tanto daquela frase do bigodudo: "Transforma-te em quem tu és". Você fez isso, a trancos e barrancos, derrotas e vitórias, e só por ter tido a coragem de fazê-lo, já merece a realização pessoal, o encontro. Você vai chegar. Pode crer. E eu ainda vou escrever um romance sobre a sua vida, publicar, ficar milionária e dividir os créditos com você. Beijo grande!
    R.R.

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  4. Cris, obrigada! Sucesso para você no Rapadura http://rapaduracronica.blogspot.com/. Beijo enorme!

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  5. Permita-me fazer uma comparação. Tenho viajado bastante: nos últimos finais de semana, saindo de BH, fui pra Juiz de Fora, Barbacena e Uberlândia. Para todas essas direções, a geografia dos lugares permitiu aos homens construir estradas mais seguras, com menos curvas, muitas vezes até duplicadas e que no final das contas, me permitia imprimir uma velocidade maior no carro e chegar ao destino com mais rapidez.
    No último final de semana porém, nosso destino era Governador Valadares. O caminho incluía cento e poucos quilômetros na BR 381, mais conhecida como rodovia da morte e mais duzentos e poucos na BR 262, que vai para Salvador. Ambas estreitas, infestadas de caminhões, cheias de curvas, pontes e em altos de serras.
    Acredito que qualquer pessoa, assim como eu, preferiria e primeiro cenário para uma viagem, de modo que fiquei muito apreensivo e preocupado ao dirigir na estrada tortuosa que me levava até Valadares.
    No entanto, para minha grande surpresa, essa última viagem foi a mais prazerosa: como a velocidade era menor, todos no carro estavam menos tensos, a paisagem se fazia mais visível, pois o alto das serras mostrava o lindo azul do céu contrastando com verde mais vivo das matas.

    Às vezes, o torto pode nos surpreender. No caso das minhas viagens, eu só precisei ter menos pressa para entender que uma viagem pode ser muito mais do que entrar e dirigir um carro.

    Imagine se eu tivesse menos pressa ainda e pudesse ir de balão de gás?

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  6. Alberto Lacerda16.4.11

    Roberta, lendo seu texto,comecei a fazer uma reflexão sobre mim,e confesso que,não me vi sendo,nem torto ,nem reto, nem lobo e nem somente cordeiro.Acho que sou um pouco de todos,talvez por estar num momento em que o caminho que me levaria ao ponto "b" sofreu um forte impacto,e ele foi destruido,e ainda não descobri outro caminho pra me levar até ele.No momento resta-me acender outro fósforo,tentar encontrar outro caminho que me leve até ele da melhor maneira possível,seja ela caminhando por estradas sinuoas ou quem sabe,a bordo de um balão de gás.

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  7. Matheus, você PRECISA publicar esse comentário seu no Letruário. Chorei. Só tenho isso para dizer. Você, que ainda está longe dos trinta, pode se dar ao luxo de ter grandes emoções. Eu, balzaquiana convicta, um dia ainda infarto. E volto para te assombrar (...rs). Lindo, Matheus. Obrigada. O "adendo" saiu infinitamente melhor do que o "soneto".

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  8. Alberto, meu amigo, fico feliz em saber que um texto meu possa tê-lo feito refletir. Conheço um pouco da sua história e entendo essa sensação de ponte ruída, trajetória destruída e a inércia que se sobrepõe aos impactos. Não duvido em momento algum de que alguém especial como você há de reinventar caminhos infinitos para recomeçar, seja de trem, à pé ou de balão. Torço para que seja de balão... Abraço, meu amigo.

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  9. E como diria alguém que já disse isso antes de mim: "É muito difícil abandonar, deixar toda a bagagem para trás quando o trem chega na estação. Quando chega a hora de embarcar no expresso."

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  10. É, querida. É doloroso, complicado, dificílimo. E mais difícil ainda é ter coragem de embarcar, vendo a bagagem acumulada na estação, a medida que o trem avança, ficar cada vez menor, até não restar nada mais que um borrão de tinta na memória.

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  11. Anônimo22.4.11

    Antes que o dia deixe de ser dia, a vida não parará de doer, e meus pés são tortos por natureza, têm até um osso a mais, que nem me deixa calçar sapatos, até os mais confortáveis conseguem me doer. É só calçar que dói, e depois que tira ainda fica doendo muito, muito mais. Roberta, nossa vida é sinuosa, sei que não é conselho pro torto que está cansada de tropeçar nos próprios pés, mas e essa coisa enorme no tempo-espaço de sermos que acontece, simplesmente se faz, de repente, imenso e invisível, essa fina camada de magia que fica pairando por dentre nós, em tudo o que nos rodeia, cada vez que nos levantamos...o que é isso? O que é isso aqui, agora? Você acha que a linha reta chega um dia a conhecer isso?
    Essa loucura linda, grande, presente, viva, que nem o brilhozinho que sai da varinha da fada, que vai ficando mais lindo a cada movimento de curva que ela faz.

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  12. Ivy, o sinuoso é lindo e mágico, eu sei. E tropeçar nos próprios pés e sentir a vertigem, o chão se aproximando, tudo isso é a essência do torto. Por mais que às vezes almeje o reto, é nas curvas que gente como nós se encontra, um ao outro e a si próprio.

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