28 de abril de 2011

sobre odisséias e pontes

Na RJ-102, no trecho de estrada que liga a cidade de Cabo Frio ao município vizinho de Arraial do Cabo, há uma ponte de ferro e cimento, abandonada sobre uma colina à direita de quem chega em Arraial. Não é tanto o estado desamparado da estrutura que prende o olhar do motorista, nem o céu chapado e sem nuvens, de um anil ofuscante. O que merece atenção, aqui, é um clichê que toma forma, ganha contornos reais e salta aos olhos, literalmente: uma ponte que liga o nada a lugar nenhum.


Qualquer metáfora sugestionada pela idéia de uma ponte como a de Arraial do Cabo é alusiva e trivial demais para que se divague sobre o tema. Entretanto, contra fatos não há argumentos; um dia essa ponte uniu um lugar específico a outro, quando a rodovia principal não existia e o mato ainda não tinha tomado conta do local. De certo os veranistas não perdem tempo procurando saber porque a Prefeitura da cidade não demoliu a ponte por completo, ou a razão pela qual começara a demoli-la. É muito provável que, diante da inutilidade de uma ponte, o projeto inicial tenha sido apagá-la do mapa, mas então as verbas do município escassearam e resolveram deixar a obra inacabada. De qualquer forma, é uma visão pitoresca em meio à paisagem litorânea da Região dos Lagos; uma ponte nunca deixa de ser uma ponte, ainda que desprovida de sua finalidade principal.

Os povos de origem anglo-saxã devem gostar muito de pontes porque, em sua língua, o vocábulo não apresenta apenas a função de substantivo, como em português, mas também a de verbo, com o significado de "construir uma ponte sobre algo". Pode-se dizer em inglês, por exemplo, que "the valley was originally bridged by the Roman founders". Esse é o tipo de especificidade lingüística da qual apenas povos sucintos podem usufruir. Brasileiros, prolixos em sua descendência, precisam do dobro de palavras para dizer a mesma coisa: "o vale foi originalmente fundado por romanos, que construíram uma ponte sobre ele".

Os falantes de língua inglesa possuem ditados curiosos com essa palavra. Veja "bridge the gap", por exemplo. Aqui, "bridge" exerce a função de verbo e significa, ao pé da letra, "construir uma ponte sobre um espaço". Ocorre que tradução literal é sempre uma temeridade lingüística e, por isso, o intérprete precisa de bom senso para não fazer feio numa conferência. Imagine que você foi convidado para a festa de 15 anos de uma prima no interior de Goiás. Lá, acomoda-se entre a sua tia-avó de oitenta e três anos e um amigo de infância, que veio para lhe fazer companhia. Entre vocês existe um "generation gap", um abismo de diferença de idades que certamente causará desconforto na comunicação. Para evitar um silêncio sepulcral à mesa e garantir uma conversa razoável, você deverá "bridge the generation gap", ou seja, construir uma ponte que nivele as diferenças e ligue você e seu amigo, através do oceano do tempo, à sua tia-avó sorridente e já um pouco surda. Lingüistas, poetas e engenheiros gostam desse tipo de ditado, cada um por razões específicas e compreensíveis.

Outro exemplo é a expressão "burn your bridges", que significa "queimar as suas pontes". O conceito imagético é interessante: você utiliza uma ponte para chegar ao outro lado e a destrói em seguida, o que o impossibilita de voltar. Imagine que você pretende pedir demissão do seu emprego; se tiver um bom amigo americano, é provável que ele o aconselhe a pensar bem antes de se demitir, já que você pode acabar "queimando as suas pontes", ou seja, tomando uma atitude irreversível. E ninguém quer ter, na vida real, uma ponte destruída e inútil como a de Arraial do Cabo; pontes são, por definição, vias de acesso, e não portas lacradas ou estradas inacabadas.

Ocorre que atravessar pontes é algo perigoso; pode-se esquecer o caminho de volta e perder-se no vão de universos intercambiáveis. É possível transitar por ambientes diversos entre si e preservar a identidade e uma trajetória única porque existem pontes para conectar esses mundos. O sujeito nasce numa cidade; seus pais mudam-se algumas vezes; ele freqüenta diferentes escolas; decide se mudar para uma cidade maior; começa uma Faculdade; desiste; faz um curso técnico; arranja um emprego; é demitido; arranja outro; demiti-se; abre o próprio negócio; dá com os burros n'água; volta ao primeiro emprego; casa-se; divorcia-se; casa-se novamente; tem filhos; volta à cidade natal; viaja para o exterior; decepciona-se; muda para o campo; abre uma loja de artesanato; faz terapia; apaixona-se; toma bondes; perde outros. Cada incursão por um território inexplorado é uma ponte que se cruza. Cabe ao viajante decidir "queimá-la" ou manter o portal de conexão aberto.

Reencontrei uma amiga de infância no feriado de Páscoa. Não a via há quase vinte anos. Confesso que o mérito foi dela, que me telefonou e não me permitiu evitar o encontro. Há pessoas que mantém uma relação sadomasoquista com o passado; ao mesmo tempo em que o celebram e mitigam, temem resgatá-lo. Se você queimar as pontes que o conduzem de um universo para o outro, pagará um preço alto por isso. Na verdade, estará em dívida com o seu presente, como se houvesse um pedágio na entrada de cada ponte e você nunca possuísse a quantia suficiente para o caminho de volta. O problema é que todas as pontes queimadas voltam para assombrar o viajante, tal como o passado, fazendo as vezes do condutor, e não do passageiro.

Milan Kundera fala sobre pontes de mão-dupla no livro "A Ignorância", de 2000. Os personagens Josef e Irena se reencontram por acaso após vinte anos, numa viagem de regresso ao seu país natal. Vislumbram, então, a possibilidade de retomar uma história de amor, interrompida há duas décadas. Tudo é estranhamente familiar e, ainda assim, completamente estrangeiro; o "gap" dos anos e da distância é abissal demais para que consigam construir uma ponte que os una à pátria, um ao outro e a si mesmos. "A Ignorância" é, sobretudo, um romance sobre memória e anoranza – palavra espanhola que compartilha a raiz etimológica latina do verbo ignorare – e que é utilizada como equivalente à saudade.

No livro, a nostalgia é causada por reminiscências do passado, onde o pathos (sofrimento) provém da ignorância: o ser amado e a pátria-mãe estão distantes e os personagens ignoram o que acontece com eles. Sofrem porque desconhecem o presente; tornam-se nostálgicos porque é no passado que ainda encontram eco daquilo que já não existe mais. No entanto, Josef e Irena não queimaram suas pontes; a eles é permitido pagar a taxa de pedágio e fazer o caminho de volta. À imagem de Ulisses, que abdica do presente idílico com Calipso em nome da lembrança vaga de um amor ideal por Penélope, os personagens de Kundera também ingressam numa odisséia de retorno, onde imperam frustração e vulnerabilidade. Josef e Irena, tal como o Odisseu de Homero, agarram-se a lembranças tão voláteis e fugazes quanto miragens.

Eu jamais deveria ter lido esse livro. Seria injusto e improvável culpar o escritor tcheco pelo hábito tolo que adquiri de interditar as pontes e fechar as cancelas da minha vida. Se "A Ignorância" não representou motivo suficiente para isso, pelo menos corroborou o meu temor de cruzar uma ponte no sentido contrário, de percorrer o caminho de volta a um universo envolto em brumas, outrora abandonado. Ulisses não deveria ter retornado a Ítaca; afinal, o único a reconhecê-lo após uma eternidade de ausência foi Argos, o seu cão fiel, que morreu logo depois de lamber a mão do dono. Irena e Josef não deveriam ter retornado à República Tcheca, nem poderiam ter tentado resgatar um amor soterrado há vinte anos. Nenhum deles foi capaz de "brigde the gap" para cruzar o precipício que o tempo e a distância cavam no peito e na memória. No retorno, a Ítaca idealizada por Ulisses era-lhe tão inóspita e estrangeira quanto a paixão e a Tchecoslováquia revisitadas pelos personagens de Kundera. Partir é difícil; mas fazer o caminho de volta é mais perigoso.

A nostalgia é minha velha companheira; abraço-a de peito aberto. Cruzar uma ponte, olhar para trás e espiar o outro lado de longe é confortável. À distância o passado é sempre suavizado, envelopado por uma aura de empatia e glamour que o presente jamais poderia ter. De longe, o sofrimento adquire proporções heróicas e românticas; as guerras deixam de ser catastróficas barbáries para virar História; a dor é bela; a alegria é mais vivaz; as paixões, mais reais. Em sépia, o bom parece melhor e o ruim, não tão mau assim. Então, não satisfeita com a fotografia do passado, a nostalgia invade-nos os sentidos e infla-nos a alma de desejo de retornar, revisitar, rever. E aí... Pluft! Desfazem-se a magia, a beleza e o élan que apenas a distância do passado é capaz de imprimir às lembranças.

A imagem da ponte abandonada na RJ-102, a caminho de Arraial do Cabo, ainda me assombra. Sou uma entusiasta de pontes, tanto no sentido literal quanto no figurado. Sem elas, distâncias aparentemente intransponíveis e universos em princípio paralelos jamais se uniriam. Cruzá-las já é um desafio considerável para mim e talvez por essa razão eu as queime em seguida. Mas, sobretudo, é o amor à nostalgia em si mesma, mais do que ao próprio passado, que me faz temer atravessá-las de volta. Olhar de longe e mitigar o pretérito não faz mal; mas retornar a ele com as mesmas expectativas de outrora pode dar muito errado. Talvez o prefeito de Arraial pense dessa forma e, por isso, tenha demolido a ponte pela metade, unindo um trecho desolado de mato ao espaço vazio. Assim, ninguém mais consegue cruzá-la; nem na ida e muito menos na volta.

4 comentários:

  1. Pri Rohem28.4.11

    Beta me identifiquei muito com o penúltimo parágrafo... tenho estado meio assim estes últimos dias. Mas sei bem, que o passado tem um lugar e que muitas vezes não podemos/devemos fazer pontes muito concretas entre ele e o presente, sob o risco de causar insatisfação, tristeza...

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  2. Exatamente, minha linda. E o pavor de voltar atrás e descobrir que nada, absolutamente nada permaneceu da maneira como a memória idealizava...?

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  3. Alberto Lacerda4.5.11

    Oi Roberta, concordo com você que olhar de longe e mitigar o pretérito não faz mal; mas caso não queimemos a ponte e tivermos vontade de retornar, acho que não devemos retornar a ele com as mesmas expectativas de outrora e sim com a visão que temos das coisas nos dias atuais.Com isso a chance de dar tudo errado diminui consideravelmente,e sendo assim, como você citou Ulisses,poderíamos reencontrar as "Penélopes " que mesmo depois de tantos anos, ainda continuam a nos esperar.

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  4. Faço suas as minhas palavras, amigo. E cito o poeta: nunca corte nós que podem ser desatados. Abraço de panda!

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