8 de abril de 2011

classificados

"Troco altruísmo zero-a-zero por uma porção de egoísmo um-a-um. Se você, egoísta de nascença, acha este um bom negócio, favor entrar em contato com altruísta cansado de ver a vida passar pela janela". Está aí um anúncio que sempre quis publicar nos classificados de "O Globo", partindo-se do pressuposto de que, no jornal, haveria uma seção filosófica-analítica para desnorteados, arrependidos e elucubradores de plantão. A chamada é de uma nostalgia de tal forma opressiva que só poderia mesmo ser publicada em periódico impresso; nada dessa coisa moderna de jornal online e muito menos eBay. Na situação hipotética, o leitor interessado precisaria sentar-se à mesa da sala de jantar, ou num banquinho de praça, folhear página por página, separar a seção de Cultura para a esposa e a de Esportes para o filho adolescente, circular os anúncios pertinentes com caneta bic, ficar com os dedos manchados da tinta escura do papel e, só então, deparar-se com o meu anúncio, a prova cabal de que a linha que separa o altruísmo do fracasso pessoal é tênue e enganosa.

O leite volúvel das encruzilhadas em que me permito cair azedou, talhou e virou um agridoce nauseento. Tem gente que vai às compras quando azeda; outros trovejam e fecham o tempo para si e para quem mais estiver sob sua mira. Já conheci azedumes que se escondem sob cobertores pesados, fazendo as vezes de um avestruz; e outros que, para adoçar a vida, enchem as burras de massa folhada portuguesa. Eu, para variar, escrevo quando azedo. O que me leva a confessar que entreguei-me à total inatividade literária há dez dias. Nem só de dúvidas existenciais produz um escritor; até as incertezas e os becos sem saída entram na morosidade inerte do pensamento e cegam inspiração e disciplina com o branco ofuscante do vazio. Seria muita hipocrisia da parte de quem escreve sobre a realidade que o cerca dizer que o belo, o alegre e o harmônico incitam à produtividade. Hipocrisia e uma falácia. Não há encorajamento literário maior do que a melancolia, a revolta e a feiúra. E, sobretudo, o leite azedo, que faz a alma espumar, a mente ferver e as palavras voltar à tabula rasa da imaginação.

Ao longo de dez dias o acetoso da vida veio roubar-me a gulosice na forma de revolta contra o altruísmo, esta que já considerei uma das mais veneráveis de minhas virtudes e, hoje, é tão contestável quanto ambígua. Quando penso em abnegação, vêm-me imagens de "Dogville", filme do diretor Lars von Trier, de 2003.


A película do cineasta dinamarquês segue um roteiro, em princípio, tão cru e minimalista quanto os cenários, ou melhor, a ausência de cenários de seus filmes inspirados no movimento Dogma 95, pelo qual ficou conhecido como um dos fundadores. Grace Mulligan, interpretada por Nicole Kidman, é uma fugitiva de gângsters que chega à isolada e inóspita cidade de Dogville. Tom Edison (Paul Bettany), o porta-voz da comunidade, convence os moradores a esconder o segredo de Grace e dar-lhe abrigo. Em troca, a bela e frágil fugitiva da cidade grande deve realizar trabalhos para os habitantes de Dogville, desde varrer um quintal, lavar as louças, cuidar de lojas e de bebês e auxiliar na coleta de frutas até, eventualmente, conceder prazeres sexuais a um marido bronco de outra mulher. Não demora muito para Grace ser acorrentada - tal como o único cão que dá nome à cidade - explorada pelas mulheres e violentada por todos os homens, mesmo sendo pura abnegação e doçura, pleno altruísmo e zero de revolta e empáfia.

"Mesmo sendo pura abnegação", eu disse. Mas a conjunção apropriada aqui não é "mesmo", e sim principalmente por ser pura abnegação. Pois Grace foge, de fato, de seu próprio pai, o líder da máfia na capital, de cujos princípios a moça discorda veementemente. Ora, se Grace, mulher educada e abastada, abandona seu lar por não reconhecer ali uma identidade legítima, é correto afirmar que ela abandona igualmente a vida que conhecera até então. "Dogville" é desses filmes que vale pelo final. Inconveniente é ter que assistir a duas horas e quarenta minutos de cinema Dogma para chegar ao ápice da coisa. A idealista Grace, após mergulhar na realidade nada frugal através de um sermão do pai - interpretado por James Caan, no filme chamado apenas de "the Big Man" - ordena que os capangas executem a cidade inteira, sem deixar um único habitante escapar. Depois da chacina, sobrevive apenas o cachorro que, só então, aparece como imagem real (durante todo o filme, só se ouvem seus latidos e sabe-se que ele fica amarrado à entrada da cidade, mas von Trier opta por deixar as características do animal a encargo da imaginação do espectador).

"Dogville" não apenas vale pelo final. O filme tem toda a sua argumentação fundamentada na fala do pai de Grace, ao vê-la subjugada física e psicologicamente aos moradores da cidade, a quem ela jamais prejudicara. Porque a idéia do diretor dinamarquês, exímio explorador do que há de mais vil e infame no ser humano, é fazer alguém bom em princípios e intenções compreender que a bondade pode, sim, ser relativa. E Grace aprende isso com os moradores de Dogville, gente simplória que ela considera em altos padrões justamente por ser simplória e a quem se dedica sem reservas e sem pedir nada em troca. É como se a jovem, contrariada pelo estilo de vida a que seu pai protetor a expõe, precisasse se eximir de uma culpa auto-infligida, permitindo que esses moradores lhe infligissem todo tipo de violência. A isso, o pai de Grace chama de soberba. Ele diz à filha: "você odeia sua vida e as benesses que ela lhe traz, então foge para cá, por pensar que aqui as pessoas podem ser melhores do que lá." Entretanto, Grace descobre que os moradores de Dogville não são pessoas melhores, mas acredita que ela mesma o seja. E, para tentar inundá-las com a sua pretensa bondade e fazer delas pessoas melhores apenas por conviver com ela, a moça submete-se ao pior de si mesma e ao pior dos seus algozes; estabelece-se, assim, um jogo inescrupuloso de abusos, poder e sadismo, em que Grace também é culpada: por seu orgulho, sua subserviência e, acima de tudo, por sua ingenuidade disfarçada em altruísmo.

"Troco altruísmo zero-a-zero por uma porção de egoísmo um-a-um. Se você, egoísta de nascença, acha este um bom negócio, favor entrar em contato com altruísta cansado de ver a vida passar pela janela". Pergunto-me até quando vou bancar Grace Mulligan. Às vezes cansa. Noutras, frustra. E, nas demais, azeda. Em cinema e com a "bondade" de Nicole Kidman associada à beleza loira, vale tomar um banho de água fria, perceber que ninguém quer ser ajudado e muito menos aperfeiçoado na vida e mandar uns gângsters da pesada fuzilar a malta. Mas, pensando melhor, Grace é a malta, seu pai é a malta, eu e você somos a malta; o que muda é a percepção do mundo e das oportunidades, o número de bondes que se perde e os que se inventa e a consciência de si mesmo. Noves fora, se você está em dia com a filantropia, é um cidadão cônscio de seus direitos e deveres civis e não mata nem morre por ninguém, é melhor que a sua energia altruística esteja canalizada inteiramente para a melhoria da sua própria vida. A realização pessoal é um bem incrível não apenas para o indivíduo que a persegue, mas para todos que o rodeiam e que, por conseqüência, irão usufruir dos privilégios desse sucesso. Por outro lado, viver em função do outro, seja por ingenuidade, comodismo, abnegação ou, no caso de "Dogville", soberba, não só vai em direção ao fracasso, como também abre as portas para o desentendimento e o rancor. Se você não é filho de gângster, nem escreve quando fica azedo, é melhor viver a sua vida como personagem principal dela, antes que se acostume a ser mero coadjuvante.  

2 comentários:

  1. Alberto Lacerda9.4.11

    A cada texto seu que tenho a honra de ler, só faz aumentar minha admiração por seu trabalho e por você Roberta. Você conseguiu usar seu momento “agridoce nauseento”, pra dar aos seus leitores um “adocicado bem estar”.Acho também que uma porção de egoísmo lhe fará bem,mas sem que você deixe de ser altruísta,porque altruísmo é a generosidade, a nobreza, o amor ao próximo. É um valor que não cai do céu,mas que se forja no dia a dia, à medida que crescemos e amadurecemos para a vida.

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  2. Obrigada, mais uma e pela milionésima vez, Alberto. Bom saber que tenha sentido bem estar com esse texto. Quando o terminei, também senti. A preparação para ele é que doeu (...rs). Um pouco de egoísmo é, de fato, bastante necessário. Mas, posso lhe contar um segredo? Não consigo. Para o bem e para o mal, conceder é o meu verbo. Abraços, abraços, abraços!

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