6 de maio de 2011

carrie e o bullying

A agenda sócio-antropológica do momento, revestida de pinceladas políticas tímidas, ainda que contumazes, tem-se ocupado do fenômeno do bullying. O termo deriva do substantivo "bully" que, em inglês, quer dizer "valentão". Ainda hoje a palavra é utilizada em sua acepção original: "valentão", aqui, não designa adultos como o Rambo, nem o Capitão Nascimento - muito embora os exemplos anteriores não passem de representações caricaturais de homens possivelmente reais. O arquétipo do "bully", já interiorizado por povos anglo-saxões, suscita a criança em fase escolar, independentemente da idade e do gênero, que humilha e agride verbal ou fisicamente seus colegas mais fracos, menores, mais tímidos e com a crueldade da infância menos aflorada. O problema de um assunto tão antigo quanto as montanhas cair no gosto da mídia, do público e da agenda política é que, como se banhado por uma luz de pretensa revelação, tivesse acabado de surgir aos olhos e à consciência dos pais inexoravelmente preocupados com o bem-estar de seus filhos; do corpo docente engajado; de psicólogos, intelectuais e teóricos ávidos por debater o assunto e, como a caçamba que segue a corda, lucrar com a publicação de livros de auto-ajuda; de ONG's conscienciosas que prestam extenso auxílio às vítimas de bullying, preparando-as para se adaptar à realidade e ao sistema e para voltar ao mercado de trabalho e à dignidade de uma vida social plena.

Debater, televisionar e publicar sobre bullying tornou-se algo tão corriqueiro que a palavra, originalmente estrangeira e, por isso, grafada em itálico, não o é mais: agora, basta o termo bullying. O termo incorporou o léxico tupiniquim; despensa o italicismo na grafia e as aspas. E entre a exaustiva utilização da palavra - e do conceito imbuído por ela - e a queda-livre em direção ao universo paralelo do kitsch fundamental, já não há mais uma linha divisória. Na ausência de um portal para segregar informação categorizada da exploração aleatória de um fenômeno que jamais chegou a ser novidade, o bullying transformou-se em quadro de estatísticas, pauta obrigatória de revista semanal, clichê máximo para a justificativa de todo mal envolvendo adolescentes em escolas pobres, ricas, paupérrimas e milionárias. Sugerir o bullying à revelia - e com vistas ao planejamento eleitoral, à agenda de psicólogos, à venda de periódicos e à audiência de programas de TV por assinatura - como causa e meio para a violência latente da sociedade adulta não é apenas uma analogia grosseira; é uma prova cabal de que nós, eleitores, leitores, espectadores e pais, somos considerados pelo Establishment como uma massa amorfa de acéfalos cegos, a babar sobre as gravatas.

Crianças, pré-adolescentes e adolescentes não estão apenas em fase de formação de caráter, valores, ética e crenças, mas, principalmente, num momento de desenvolvimento de estruturas cerebrais que, a posteriori, são responsáveis pelas condições cognitivas que denominamos de "caráter". Crianças são, por definição e natureza, seres com entendimento empático rústico, uma vez que o hipotálamo, região do cérebro responsável por tal habilidade, encontra-se em desenvolvimento até, em média, os 16 anos de idade. Entende-se por empatia a resposta afetiva vicária a outras pessoas, ou seja, a resposta afetiva apropriada à situação de um semelhante, e não à própria situação. Em outras palavras: empatia é a capacidade de se colocar no lugar do outro, compreender a realidade pela perspectiva do outro e experimentar reações emocionais por meio da observação alheia. Até os 16 anos, os seres humanos são, neuromorfologicamente, egocêntricos, suscetíveis a variações abissais de humor e pouco, ou nada empáticos. Adultos plenamente formados que apresentem tais características entram para o rol dos sociopatas - condição que pode variar da mais leve tendência (como a do indivíduo que prejudica colegas de trabalho sem piedade, para alcançar a promoção almejada) até o grau máximo (vide assassinos em série, estupradores e franco-atiradores em escolas).

Nem toda criança arranca asas de besouros, subjuga cães dóceis, furta balas da mercearia e humilha os colegas mais fracos. Há os valentões, claro. Em regiões rurais, antes do êxodo nas década de 1930 e, posteriormente, 1950, quando a molecada descalça precisava caminhar quilômetros para chegar à única escola da região, os bullies eram chamados de "bichos do sereno". Como mencionado anteriormente, o dito "fenômeno" do bullying não tem nada de espetacular e muito menos de novidade. O cenário e os personagens são e sempre foram os mesmos; as coisas apenas mudaram de nome. Nos colégios freqüentados pela classe mais abastada das cidades, assim como em escolas de periferia, jovens mais tímidos e introspectivos sempre foram alvo de chacota daqueles que possuíam costas quentes, bravura juvenil inconseqüente, empatia cognitiva em desenvolvimento ou, simplesmente, potencial incipiente para maníacos do parque e afins. Não há regra, nem receita de bolo aqui; a formação da personalidade infantil, sujeita a fatores genéticos e à influência do ambiente, é uma caixa de pandora: você tem um filho; educa-o da maneira que melhor lhe parece e convém; chega a idade escolar; o rebento lhe dá adeus, merendeira na mão, mochila às costas, lança-lhe um último olhar sobre os ombros antes de tomar o ônibus para a escola. Você acaba de abrir a caixa e a vida de seu filho está apenas começando. Inexistem fórmulas capazes de prever se ele será o valentão da turma ou o cordeiro sacrificado. Mas uma certeza levita sobre os lares e as escolas: haverá sempre "valentões" para xingar, agredir e humilhar, em igual proporção àqueles que serão taxados de "bobalhões", "parvos", "medrosos" e "nerds". Esta é uma das realidades a qual o homem não possui meios de escapar: os fortes (bullies ou não), tendem a se tornar cada vez mais fortes e subir em direção ao topo. Para isso, o contrapeso dos fracos existe. Para o bem ou para o mal, este é o mecanismo de uma sociedade não estratificada em castas.

O que assombra ainda mais do que a covardia dos bullies é o extremismo banhado em justificativas simplórias dos adultos. A liberdade de expressão é linda, um direito irrevogável de sociedades democráticas; eu mesma faço uso dela em cada artigo que publico nesse blog. Entretanto, veicular matérias que associem o atentado à Escola Municipal Tasso Silveira ao bullying, é o tipo de expressão que, uma vez à tona, deveria ser censurada. Como se não bastasse aos veículos de comunicação comparar a tragédia em Realengo com a de Columbine, da mesma forma obtusa como o fariam com uma partida de futebol e outra de rugby, o autor dos crimes, Wellington Menezes de Oliveira, sobe ao púlpito das vítimas como alvo de bullies na mesma escola onde matou 12 crianças a sangue-frio. A tentativa de recriar o ambiente em que Wellington cresceu, humilhado por valentões e, posteriormente, aderindo ao fundamentalismo islâmico, é uma temeridade por parte da imprensa, nesse caso agindo sem qualquer responsabilidade social. Wellington é um sociopata e um assassino e, por essas razões apenas, matou em Realengo. E isso é tudo. Conceder-lhe matérias do tipo "perfil" é um ultraje sem precedentes para os leitores, em especial para as famílias das vítimas, pois suscita um véu de absolvição ao qual ele não tem o menor direito.

Meu filho de quatro anos, assim como eu em minha infância, é alvo de chacotas na escola por causa de seu sobrenome: "Arthur Rohen? Tá roendo o que?" Ele não dá a mínima. Outro dia, um colega ralhou com ele por causa de sua língua presa: "Por que você fala asthim?" Meu filho respondeu que é porque está aprendendo a falar inglês. Numa outra ocasião, ele puxou os cabelos de Luíza, uma menina encantadora, que o adora, e comeu um biscoito Trakinas do coleguinha Daniel, que abriu a boca a chorar. Disse para mim que "foi sem querer". Como ficou na "cadeirinha do pensamento" na escola e ainda ouviu um sermão da mãe em casa, aquela foi a primeira e a última vez que Luíza teve as madeixas puxadas pelo meu filho. Seria razoável pensar que, no mundo encantado da pré-escola de uma cidade de trinta mil habitantes, Luíza, Daniel, meu filho e outras duzentas crianças estejam sendo vítimas de bullies predadores, à espreita do momento ideal para chamar um coleguinha ou outro de "feio", "bobo" e "gordinho"? Aí está o perigo, a armadilha do extremismo e do kitsch.

Há não mais de cinco anos, bullying ainda era grafado em itálico e não fazia parte do vocabulário e do imaginário populares no Brasil. Hoje, tornou-se clichê, figurinha repetida e justificativa para assassinos, delinqüentes e vagabundos que - perdoe, pai, eles não sabem o que fazem - são o resultado direto de bullies na escola e da sociedade capitalista que lhes suprime o direito a melhores condições de vida. O extremismo é perigoso; a relativização dos acontecimentos, também. Mas o discurso pasteurizado, perene e óbvio da Esquerda socialmente engajada é muito mais pernicioso. Para extremistas, recomendo a leitura de "Carrie", de Stephen King, escrito em 1974, ano em que a ebulição do bullying - trocadilhos à parte - ainda estava longe de acontecer. O livro é pequeno - apenas 180 páginas na reimpressão de 1983 - e de leitura ágil, compulsiva e eletrizante. Pergunto-me porque ninguém pensou em marcar uma entrevista com o autor que, na longínqua década de setenta, já vislumbrava a realidade e a "naturalidade" do bullying sem nem ao menos mencionar a palavra.

King afirmou, por ocasião do lançamento de "Carrie", que "a função do terror é levar o leitor ou o espectador a viver o seu nível humano mais primitivo e essencial". O escritor, que antes de abraçar a fama trabalhou como professor em colégios do ensino fundamental nos Estados Unidos, valeu-se de sua experiência e de uma aguda percepção da psicologia dos adolescentes para contar a história da jovem Carietta White, cria única de uma beata histérica, dada a sessões de auto-flagelação, extremismo religioso e espancamento da filha. Carrie tem problemas de ajustamento social, mas deseja ser uma garota comum, como qualquer outra. No entanto, três elementos a impedem de realizar o objetivo primordial de sua vida: a mãe, que a considera maligna e impura; as colegas de escola que, seja por (oops...) bullying ou hipocrisia, contribuem para os abusos que a jovem sofre dos cinco aos 17 anos; e o seu poder de telecinese, liberado pela puberdade e por estados de stress, estes mais do que corriqueiros para Carrie.

Repito: foge-me à compreensão o fato de Stephen King não ter sido convocado para dar a sua opinião sobre o "fenômeno" do bullying no século XXI. Porque o que ocorre em "Carrie" é bullying puro, essencial e de primeira, elevado à enésima potência: a garota se depara com as primeiras regras menstruais no salão de banho da escola e, acreditando estar se esvaindo em sangue, vira alvo de tampões e toalhas higiênicas que as outras lhe atiram. Até então, os xingamentos de que era vítima não pareciam incomodá-la tanto; afinal, Carrie admite que é "estranha", embora não queira sê-lo. A garota é levada ao baile de formatura pelo rapaz mais popular da escola e, para surpresa própria e de todos os presentes, é coroada rainha do baile com ele. Ocorre que uma trama malévola é urdida literalmente nos bastidores do baile para humilhar Carrie: Billy Nolan, um marginal bem retrato por King, e a psicopata mirim Christine Hargensen, derramam dois baldes cheios de sangue de porco sobre a moça, no momento máximo da coroação. Claro que Carrie não hesita em utilizar seus poderes telecinéticos para mostrar aos colegas que não é a idiota que pensam. Quem leu o livro ou assistiu à adaptação para o cinema de 1976, do diretor Brian De Palma, sabe o final.

Pergunto-me se a mãe de Luíza ou a de Daniel e, pior, a Coordenação Pedagógica da escola, seriam tolas o suficiente para acusar o meu filho de bullying - afinal, não se fala de outra coisa, não é mesmo? Porque, particularmente, não ventilo a menor possibilidade de taxar como bullies as crianças que ralham com o sobrenome do meu filho e com o seu jeito "Romário" de falar. Também não queimo a mufa quando ele chega da escola com um boneco sem braço, fruto de uma amputação malfadada de um coleguinha. E sei que chegará o momento em que o chamarão de "branquelo azedo", assim como de "quatro olhos", se um dia usar óculos, e de "boca de ferro", se precisar de correção ortodôntica. Não vejo como qualquer dessas atitudes, tão banais num ambiente de crianças e adolescentes, possa ser considerada bullying. Mais essencial do que categorizar coisas e fazer ferver um caldeirão sem sopa, é preparar nossos filhos para que estejam acolchoados por sólida auto-estima e para que aprendam o mais importante dos princípios para a convivência em sociedade: o seu limite acaba exatamente no ponto onde começa o do outro.

14 comentários:

  1. quando eu tinhas uns 15 anos, Roberta fez bullying comigo: uma vez deitada com a cabeça no meu colo, disse pra mim que eu não devia ter me enxugado direito, pois estava cheirando a xixi. chorar? não, soltei uma bela gargalhada!
    só pra revidar, uns dias depois, já que não sou tão oprimida assim, ela me perguntou, do alto do seus 15 anos tão analisados, se eu achava que ela devia mudar alguma coisa. estudávamos na mesma escola. eu disse a ela: eu acho que vc só tem que mudar UMA coisa: o colégio. =P

    eu acho que o bullying deve ser algo presente nos gens dos Rohen e nos dos Portela tbm, sei não... rsrs

    sei que após tantas moléstias e gracinhas ditas, hje somos amigas, né? ou somos mulheres de malandro e gostamos de apanhar, ou esse bullying não tá com nada mesmo.

    beijo!

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  2. Puxa, eu não me lembro disso. Absolutamente. Sabe quando a pessoa imagina uma coisa, conta isso para si mesma tantas vezes e acaba acreditando piamente...? ;-)
    Eu acho que esse nível de bullying realmente não tá com nada. Veja: eu não me mudei de colégio e você, até hoje, é a moça mais cheirosa de MP. E se o bullying estiver presente nos genes dos Rohen e dos Portela, somos "bullies do bem", com certeza.
    Beijo, amada!

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  3. não entendi a parte do "sabe quando a pessoa imagina uma coisa..."? que cê quer dizer com isso, humpf? FOI VERDADE, todos os seus bullyings sem noção constam nos meus registros de traumas antigos, nem venha se safar pra parecer mega boa mãe pra Arthur. rsrs

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  4. Anônimo10.5.11

    Rebuscada, racionalizada ao extremo, possessiva, simbiótica
    Bullying é o que você faz com seu filho, o expondo assim!
    Deixe seu filho respirar!
    Um dia ele vai tentar se livrar de seus tentáculos...e o que vai ser de você?

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  5. Anônimo10.5.11

    Uma mulher italiana da localidade de Ferrara foi condenada a três anos de prisão por dedicar um "amor excessivo e patológico" a seu filho, o que foi entendido pelo tribunal como uma espécie de maus tratos. Ocorre que o garoto, de 13 anos, praticamente não sabe nem correr, porque sua mãe e seus avós jamais permitiram que o fizesse, por medo a caia e se machuque.

    O garoto também não sabe subir escadas -desde bebê foi proibido-, precisa de ajuda para ir ao banheiro e é incapaz de comer alguma comida que não tenha sido preparada por sua mãe ou sua avó materna.

    O adolescente cresceu encerrado entre quatro paredes, só com licença para ir a escola, ainda assim rodeado sempre de fortes medidas de segurança par evitar que os numerosos perigos do mundo pudessem espreitá-lo, e jamais praticou algum esporte ou brincou em um parque.

    O tribunal de Ferrara acaba agora de sentenciar que a criança foi vítima de um amor doente e que a hiperproteção não permitiu que crescesse. E, com esse argumento, condenou a mãe a três anos de prisão; o avô, a três anos e seis meses; e a avó, a dois anos. Porque, segundo sentenciou o juiz Silvia Marini, o amor extremo pode chegar a ser uma forma de maus tratos.

    Foi o pai do menino que levou o caso aos tribunais. O homem, que se separou da mãe pouco depois que o filho nasceu, só conseguiu ver o filho três vezes em 13 anos, sempre a escondidas. Mas mesmo a distância conseguiu perceber que alguma coisa de errado existia na criação do filho ao perceber que só aprendeu a andar aos 7 anos devido aos excessivos cuidados de sua abnegadíssima mãe e avôs.

    O que ninguém ainda sabe é se o menino será capaz de sobrepor as overdoses de amor insano que recebeu durante toda sua vida. No momento é uma criança que olha o mundo exterior com absoluto terror, que acha que o perigo está do lado de fora de sua casa e do amor incondicional de sua mãe e seus avôs, e sobretudo que odeia seu pai, a quem culpa de querer tirar de sua bolha de amor.

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  6. Anônimo10.5.11

    Quanto maiores as asas mais seres infelizes elas criam

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  7. Mi, eu realmente não me lembro, amiga! Você deveria escrever sobre esses traumas. Ou melhor, vamos...? Quem sabe não ficamos milionárias?

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  8. Querido(a) Anônimo(a):
    Comentários de leitores são sempre uma brisa. Assim, não me resta outra alternativa a não ser agradecer-lhe. "Rebuscada, racionalizada ao extremo, possessiva, simbiótica". Hum... Refere-se à crônica ou à autora?
    1. Rebuscada: nem foi preciso o Aurélio para esse post!
    2. Racionalizada e simbiótica: essas duas palavras em uma mesma sentença são um oxímoro. E "oxímoro", sim, é um vocábulo rebuscado.
    3. Possessiva: apenas no uso dos pronomes de mesmo gênero, como meu, seu, teu, nosso, vosso...
    4. Tentáculos: ser comparada à vilã da Pequena Sereia é tão honroso quanto ganhar um Pulitzer.
    O caso da "abnegadíssima mãe" de Ferrara é a cereja do bolo. Tema certo para uma próxima crônica.
    Continue comentando. Opiniões assim são como pó Royal!

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  9. Anônimo11.5.11

    Um pouco mais de pó para seu bolo:

    A MÃE FÁLICA (DEVORADORA)
    (de bolos? ou de criancinhas?)

    O desejo de ser mãe, nem sempre é o desejo de criar um filho.
    Mulheres que ao atingirem a maturidade sexual, permanecem insatisfeitas com sua função feminina e passam a atuações ( acting-out) na busca por um filho , busca esta, muitas vezes , realizada de forma dissociada do objeto de amor ou até mesmo , sem dar ao filho o estatuto de pessoa , mas sim de posse, determinadas mães perpetuam em suas crianças um estado mental fusional narcísico, indiscriminando, estimulando uma idealização mútua, cristalizando o tempo e sonegando a percepção da separação e dos movimentos da vida, e assim utiliza a mente da criança como continente de suas emoções, se livrando da angústia da separação, sentida como a perda de si mesmas, perda desse eu que não se fortaleceu em sua própria constituição. Nestes casos a criança não irá se deparar com a falta, e assim não existirá desejo . Isto o impossibilita de ser um sujeito e de até fazer escolhas, como da sua própria estrutura. O sujeito não poderá falar por si, mesmo sendo um corpo, mas um corpo preste a ser devorado. A demanda de amor da mãe com a voracidade de um devoramento: "meu filho é tudo para mim!"
    A mãe devoradora constitui um campo virtual de aniquilação simbólica, no qual todos os objetos que há de vir a tirar, cada um por sua vez, seu valor simbólico. A criança finaliza o tempo de dependência, se alimentando de nada. A partir daí, a relação mãe-filho é invertido, fazendo-se por esse meio, o mestre da onipotência à vida de fazê-la a viver, ela que depende da onipotência. É esta mãe que depende do desejo, estando a sua mercê. À mercê das manifestações de seu capricho, à mercê da onipotência de si mesma.

    Nas entrelinhas do que escreve, seu inconsciente aflora. Não é a toa que seu blog seja Expresso do Inconsciente.

    Receba meus comentários como uma tentativa de fazer algum sentido...

    "A Arte"

    A arte de perder não é nenhum mistério
    tantas coisas contém em si o acidente
    de perdê-las, que perder não é nada sério.
    Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,
    a chave perdida, a hora gasta bestamente.
    A arte de perder não é nenhum mistério.
    Depois perca mais rápido, com mais critério:
    lugares, nomes, a escala subsequente
    da viagem não feita. Nada disso é sério.
    Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
    lembrar a perda de três casas excelentes.
    A arte de perder não é nenhum mistério.
    Perdi duas cidades lindas. Um império
    que era meu, dois rios, e mais um continente.
    Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
    Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)
    não muda nada. Pois é evidente
    que a arte de perder não chega a ser um mistério
    por muito que pareça (escreve) muito sério.

    Elizabeth Bishop

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  10. Vejo que bebe em fontes de Klein, caro(a) anônimo(a). Uma pena. Para psicologia infantil, ainda considero Lacan, principalmente em sua teoria da linguagem associada ao subconsciente. Mas, isso é outra história. Depois de tanto pó para um bolo que, certamente, assa sozinho no forno de sua casa, resta-me confessar que, sim, e infelizmente, a síndrome de Zuckerman de fato existe. Segundo a tal síndrome, o leitor pensa conhecer intimamente um autor através dos textos que lê. E mais: acredita que tudo o que ele escreve é um reflexo de sua identidade, como um paralelo exato da vida real do escritor em face à sua obra. O efeito Zuckerman é maléfico. Explico-me: é como se, ao ler "Crime e Castigo", de Dostoievski, por exemplo,o leitor acreditasse que o autor assassinou as duas velhas, que Raskolnikov é Fiodor. Um contra-senso sem precedentes. Para leitores assim, não há obra que se sustente.
    Poucas pessoas de fato conhecem a autora dos textos do Expresso e, ao que parece, caro(a) anônimo(a), você tampouco. Desnecessário afirmar que é de sua total e cega suposição a pretensa realidade que, em seu construto mental, aflorou como sendo a minha, a de meu filho e, em última instância, a da própria natureza deste blog. Não é à toa que se chama Expresso do Inconsciente, de fato. Mas dói-me afirmar que o nome não se refere ao inconsciente da autora e, sim, à capacidade de um texto adentrar o subconsciente de quem o lê, o que parece, e com sucesso, ter acontecido com você. Inflo-me de profundo orgulho e contentamento; afinal, meus textos cumprem o seu propósito.
    Essa escritora que, talvez um dia, venha a ser autora, é uma contumaz devoradora de bolos, biscoitos, brownies, doces em compota, comida de fazenda e, claro, Coca-Cola, meu vício maior. Mas a carapuça de "mãe castradora", ó, venerável Sigmund, não me cabe. Se me conhecesse (e lesse outras publicações aqui mesmo) saberia que a minha cruzada pessoal é a construção de uma identidade legítima, para mim e para os que amo. Devorar identidades, à la Oráculo de Delfos e afins, é a negação máxima do que sou, escritora, jornalista, professora, mulher e mãe.
    Quanto à poesia de Bishop, agradeço. Esta, sim, caiu como uma luva, não em relação à arte de perder (ou deixar partir) um filho, mas à necessidade que tenho de reconstruir estradas para que o caminhar se torne possível.
    No mais, sinta-se à vontade para continuar visitando o Expresso e, principalmente, comentando. Talvez o tom belicoso com o qual se insinua seria melhor aproveitado de revestido de naturalidade e, quiçá, um pouco de humildade. Por anônimo(a) que seja, com certeza você não é Delfos.

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  11. Anônimo12.5.11

    Humildade...
    todos nós precisamos, certo?


    1o. não se trata de psicologia infantil e sim psicanálise.

    2o. Quanto a fonte, não é Klein, e sim Lacan.

    A possibilidade de controlar o inconsciente infelizmente não é condição humana.

    Tudo o que se faz, fala, cria, escreve, transborda inconsciente.

    Assim, em Raskolnikov há Fiodor.
    Mas nem todos podem ver.
    Os mais sensíveis ou disponíveis ou mais frequentemente, os estudiosos da psicanálise, os analisandos. .. estão mais habituados


    "o homem não é senhor de sua própria morada" , a famosa frase de Freud. E como previa Freud: "nem depois de 100 anos a psicanálise será aceita em nossa sociedade".

    E sou realmente um anônimo, pois não nos conhecemos. Entrei em seu blog através de uma busca na internet, sobre o filme Carrie a estranha.

    Estou enviando um texto de Freud, sobre um de seus autores preferidos (dele, Freud, e parece que seu também).

    Peço desculpas pelo tom provocador e invasivo de minhas manifestações aqui.

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  12. Anônimo12.5.11

    “Dostoievski e o parricídio”

    Crime, Culpa e Castigo: "Dostoievski e o Parricídio", uma breve síntese (se é que é possível fazê-la)
    No texto, Freud destaca quatro facetas da personalidade de Dostoievski, são elas: o artista criador, o neurótico, o moralista e o pecador.

    Como artista criador, Dostoievski é facilmente indicado por sua rica produção literária que, segundo Freud, não dista muito da riqueza das obras de Shakespeare.

    Quanto ao aspecto moralista, Freud destaca que é moral aquela pessoa que é exposta ao pecado e mesmo assim não atua como pecadora, que consegue conciliar comportamentos e pensamentos de natureza mais animal com as reivindicações da sociedade. O que pode se ver (na página 210 do texto de Freud) pelo fato de que Dosto teve seu pai assassinado quando tinha 18 anos, e não por isso tornou-se assassino ou passou a praticar ações vingativas reais.

    O aspecto criminoso de Dosto se torna perceptível justamente em suas tramas literárias, relatando histórias de personagens violentas, homicidas e egoístas (aí então podemos ver a personagem Nina), o que mostra que ele mesmo tinha tendências semelhantes, mas que, no entanto, dirigiam-se pra ele mesmo, gerando masoquismo e culpa (e dessa culpa acredito que se torna perceptível o aspecto neurótico).

    Para a compreensão da neurose de Dosto, Freud utiliza a análise do sujeito do sintoma, nesse caso da epilepsia. Pois bem, Dostoievski era epilético e, segundo suposição de Freud, os sintomas neuróticos teriam assumido forma epilética a partir do assassinato de seu pai. Aí se torna visível a questão do parricídio; Como demonstrado pelo complexo de Édipo, Dostoievski (como qualquer outra pessoa) teria ao mesmo tempo ódio do pai por vê-lo como rival pelo amor da mãe e identificação com ele através da admiração e desejo de ocupar seu lugar, fundando uma relação ambivalente. O ódio, no entanto, seria reprimido pelo que Freud traz como “temor à castração”, e permaneceria no inconsciente. Quando presente um fator bissexual como constitucional da criança, o amor pelo pai faz com que o menino queira assumir a posição da mãe, porém, para isso a criança seria igualmente castrada, de modo que o medo da castração dessa vez causa um medo também à atitude feminina (um homossexualismo latente).

    A repressão do ódio pelo pai e a identificação com ele (por buscarem o mesmo lugar em relação à mãe) fundam o superego. Freud traz o exemplo de que “se o pai for duro, violento e cruel, o superego assume dele esses atributos, e, nas relações entre o ego e ele, a passividade que se imaginava ter sido reprimida é restabelecida”.

    Há relatos também de que as crises de Dostoievski o levavam a ter sensação de estar morto. Isso é explicado pelo sadismo do superego e a passividade do ego, em forma de punição; Dostoievski desejava de maneira inconsciente assumir a posição do pai, agora o pai está morto e ele “é” o pai.

    Concluo por relacionar Freud à obra de Dostoievski através da idéia de que todos os criminosos (e todo crime se fundamenta na vontade de matar o pai em busca de ser/ter o falo) (e à exceção dos psicóticos) têm desejos inconscientes de serem punidos (principalmente através da culpa), de modo que todo criminoso neurótico já é castigado por si mesmo, como é demonstrado em “Crime e Castigo”.

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  13. Meu amigo Anônimo:
    Estamo-nos falando tanto por aqui que, de fato, já o considero um amigo. Pois é: o "Dosto" é, de fato, um de meus autores favoritos. E de Freud gosto tanto que, se pudesse viajar no tempo para conhecer alguém, seria ele a minha escolha, muito embora tenha certeza de que ele não daria a mínima para mim, apenas mais uma neurótica, com o diferencial de ter vindo do futuro. Quanto ao seu tom, não precisa se desculpar. Invasivo? Não muito. Apenas repito: você me julgou/analisou mal como mãe. Fora isso, seus comentários são pertinentes e, sendo da área de psicanálise, mais do que relevantes num blog que aspira à transporte do inconsciente. Mais uma vez, seja bem-vindo para comentar. Mas, que tal comentar outros textos e esquecer a Carrie?

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  14. Anônimo9.12.13

    Discord do autor.

    Geralmente assassinos em massa (escolares) são sim ex vítimas de bullying. O problema é que a tortura escolar às vezes é só um acontecimento isolado, um apelidinho de quatro-olhos.

    E há o que chamo de bullying severo. É o que sofri na infância. Apanhava todos os dias, tinha apelido de mongolona, todos riam de mim e cochicavam de mim, ninguém me queria em trabalhos de grupo, ninguém brincava comigo, nem podia (pois passariam a ser isolados e execrados se o fizessem). Eu não tinha o direito nem de ter alguém para conversar.

    A capacidade de ser torturado em silêncio sem revidar tem limite - uma hora acaba. A violência pode estar em qualquer lugar, com qualquer pessoa – e o sofrimento pode transformar qualquer um em um psicopata, pois as pessoas têm um limite. Quando este limite é transgredido, não dá para saber qual será a reação

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