21 de maio de 2011

registros

Para Milene Portela, Luciana Hipólito, Ivy Gobeti, Maíra Zanoli e Martha Bueno: pequenas, grandes garotas que salvam os seus arquivos.


Há certas ocasiões em que tudo que um escritor precisa é de um diário. Não há estatísticas para isso - e confesso que números sempre foram mais uma pedra em meu sapato do que uma mão na roda; mas o fato é que ninguém mais escreve diários. Dia desses fui a uma papelaria com ares de loja de conveniência em busca de um diário à moda antiga, com um cadeado na capa e uma pequena chave de valor simbólico, apologia da privacidade. Não posso dizer que me surpreendi ao não encontrá-lo; viver à moda antiga, estando aí inclusos escrever e resguardar a privacidade, tornou-se artigo dos mais démodé entre o que se convencionou ser o ideal da vida moderna. As atividades mais próximas de um diário, ao que parece, são as mensagens instantâneas do Twitter e as declarações à guisa de "o que estou pensando no momento" do Facebook. É claro que ambos os casos não se equiparam ao hábito de auto-confissão de quem escreve um diário e, a bem da verdade, nem se propõem a isso. Pessoas mudam, o mundo evolui e costumes tornam-se obsoletos. Não aceitar a condição inexorável da volubilidade, empacar no meio do caminho, vestir a mortalha da nostalgia e insistir em cultivar hábitos antigos é doloroso e contraproducente; deve haver maneiras mais práticas de dar vazão à verborragia sem que se precise sair em busca de um diário com chave e cadeado.

Se você não for um autor de renome que tem a prerrogativa de publicar um livro de memórias, que nada mais é do que um diário póstumo, escrito de trás para frente, e ainda assim encurvar-se sob o peso do desejo onfalópsico de falar de si nos moldes de um diário, para esse mal há um paliativo: os blogs. Pensando melhor, esse argumento que acabo de usar é esdrúxulo. Eu poderia simplesmente comprar um caderno, rechear as páginas com conteúdo auto-avaliativo e guardá-lo na prateleira mais alta da estante. No entanto, o desejo é mais profundo e um pouco mais complexo: tanto ao autor renomado quanto ao pretenso escritor não basta escrever sobre si; é preciso que alguém leia essa confissão e, por meio da confidência compartilhada, haja a redenção. A escrita é a forma mais elaborada da fala. Quem deseja falar sobre si mesmo em tom declarativo tem qualquer culpa a expiar e pretende se redimir, ainda que inconscientemente. A absolvição do escritor são os olhos do leitor e, a priori, todo diário tem o desejo secreto de ser descoberto e avidamente explorado. Se não fosse dessa forma, não haveria biografias, álbuns de retratos, nem livros de memórias e ninguém guardaria registros de correspondências ou cartas de amor. Afinal, descartar é mais conveniente do que salvar e quem preserva evidências palpáveis da memória não o faz por mero acaso: naquele que conserva registros do que já não existe a não ser no universo da lembrança, jaz o desejo de que alguém abra a caixa de Pandora do passado e sopre a poeira em olhos alheios.

Por vezes o passado me ronda como fantasmas agourentos; em outras ocasiões, como suaves borboletas. A agonia ou a placidez dependem, obviamente, da lembrança e das cores com as quais ela ficou impressa na memória. Conheço gente que, à revelia de reminiscências trágicas, retém toda recordação em techinicolor e, vezenquando, visita o que ficou para trás como se estivesse dando um passeio no parque numa tarde de domingo. Meu êxito em conter a inveja desses viajantes do tempo é nulo pois pertenço a outro grupo: aquele que fotografa o passado em preto e branco e, na melhor das hipóteses, em sépia. Talvez por isso as reminiscências que guardo do passado sejam apenas isso: vagas e brumosas lembranças. Nas prateleiras e gavetas da minha vida não há registros tangíveis do que passou. Escolhi compactar e formatar meus arquivos dessa maneira não porque eu odeie o passado, ao contrário; é por viver dele que, muitas vezes, encontro-me enraizada como um tronco retorcido à beira da estrada. Entre nós - o passado e eu - é imperativamente desaconselhável a existência de provas físicas, como cartas, fotografias, documentos e registros; na minha caixa de Pandora só posso guardar o que ainda acontece, pois o que já aconteceu nunca me vem luminoso, brando e doce como um passeio no parque. Entre fantasmas e borboletas, são os primeiros que vejo mais quando abro o meu livro de memórias. E calafrio é o que sinto nessas ocasiões.

Por outro lado, as cores da memória - e das fotografias - dependem grande parte das lentes com as quais o passado é retratado. Há dias azuis que, a despeito do real que eu sei existir, enxergo cinza. Quem tem as retinas tingidas de chumbo de dentro para fora, dificilmente será capaz de pintar um quadro que não seja monocromático, monótono, monolítico, autônomo. Alguém me disse certa vez que os meus temas são sempre os mesmos: um tom sobre tom de cinza.Talvez este seja um defeito da alma que me comprometa a visão, mas quando observo um retrato em branco e preto, ainda que de uma cena bela e feliz, é sempre solidão que vejo. Retinas escuras e lentes acortinadas devem atrair o cinzento e o nebuloso como um ímã porque, na ausência de cor, não há passado nem presente que se possa resguardar na companhia de um segundo observador. Pessoas mudam, o mundo evolui e costumes tornam-se obsoletos. Eu gostaria mesmo é de mudar a cor dos meus olhos, a começar pelo avesso, até o colorido interior jorrar para o mundo lá fora. Dessa forma talvez eu pudesse enxergar em techinicolor cada instantâneo, vendo-o envelhecer, lembrança em que se transforma, sem desbotar nem amarelar. E assim, quem sabe, o temor dos registros me abandonasse de vez.         

4 comentários:

  1. Martha Bueno23.5.11

    Roberta,

    Você mesma diz: “Entre fantasmas e borboletas, são os primeiros que vejo MAIS quando abro o meu livro de memórias”. Logo, você cai em contradição quando enfatiza: “o que já aconteceu NUNCA me vem luminoso, brando e doce como um passeio no parque”. Você já viu borboletas e as verá toda vez que QUISER enxergar borboletas em vez de fantasmas. Mas o “X” da questão não está na cor dos olhos, nem nos tons sobre tons do mundo, mas no verbo.

    Que bom que os diários à moda antiga se foram! Se o desejo é ter seus escritos descobertos e explorados, é difícil imaginar alguma coisa que possa fazer isso de forma mais rápida, democrática e sem censura do que a internet. Mas, com uma vantagem: que bom que vivemos em tempos onde, com a facilidade de um click podemos mudar nossos rumos, opiniões, deletar as memórias ruins, reescrever e salvar em cima o que foi equivocadamente registrado.

    Viver de passado é como apegar-se a uma roupa velha, desengonçada, que já não te cabe mais e deixá-la ocupando o espaço de um lindo vestido que PODERIA estar no armário.
    “Ontem”JÁ ERA! O negócio é olhar para frente. Você tem medo dos seus registros porque o passado foi preto e branco? Sépia na melhor das hipóteses? Então, minha amiga, que seu futuro seja colorido. Mas, para ele ser colorido, luminoso, brando, doce e cheio de borboletas como em um passeio no parque, cabe SÓ a você fazê-lo assim. Bela ou triste constatação, dependendo dos olhos de quem a vê: estamos sozinhos nesta jornada.

    Mas, se você preferir insistir, reforçar e registrar – especialmente em um caderninho trancado a chave – que as suas retinas são tingidas de chumbo de dentro para fora, eu te afirmo, minha cara, que facilmente você só será capaz de pintar quadros monocromáticos, monótonos, monolíticos, autônomos e não precisa ser gênio para saber que seu passado, daqui a alguns anos, será todo sobre tons de cinza...

    Não podemos pintar seu quadro por você, mas, se quiser um lápis de cor para começar, eu te empresto.

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  2. Lindo, Martha. Concordo com absolutamente tudo, minha irmã. Só não tenho a chave certa para a porta que eu gostaria de abrir. Ou, talvez, tenha a chave mas não encontre a porta. Ou talvez eu seja apenas muito medrosa, complicada, chata e cinza. Que tal me emprestar não UM lápis de cor, mas a caixa com 36? Rola? Beijo do tamanho de um universo colorido.

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  3. No último texto, chamado "Colibri", eu vi muitas cores. As tintas que você usou foram emprestadas? Ou, os textos de fins de semana tendem a ser mais coloridos do que os textos de meios de semana, naturalmente!?

    :p

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  4. Matheus, você deveria abandonar essa carreira super, hiper, mega bacana de produtor de bandas e virar psicanalista. Que tal...?
    Beijos, meu amigo querido.

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