20 de maio de 2011

colibri

O texto a seguir é parte de uma carta que escrevi numa segunda-feira nublada, ouvindo a celeuma das crianças de uma escola a trinta metros abaixo da janela do apartamento onde estava, sentindo a brisa fria e salobra bagunçar-me os cabelos. As palavras abaixo não nasceram para ser publicadas, mas para fazer brilhar os olhos de alguém que amo, trazer-lhe um sorriso aos lábios e aquecer-lhe o coração nos momentos em que nem a algazarra das crianças, nem a brisa e nem eu poderíamos preencher - ou ter preenchido - suas lacunas. Por íntima, vai aqui apenas parte da missiva. E porque fez brotar tanta emoção, cedo à tentação de compartilhá-la com outras violetas.  


Há uma canção de um violeiro que diz assim: 

“(...) Disparo balas de canhão 
É inútil, pois existe um grão-vizir 
Há tantas violetas velhas 
Sem um colibri(...)” 

Até pouco tempo, havia feito morada em minha consciência a idéia de que já me tornara uma “violeta velha”, sem nunca ter provado o beijo de um colibri, nem avistado, atônita, o pulsar de suas asas que, de tão ágeis e leves, mais se assemelham a pinceladas num quadro expressionista. Houve também o tempo em que ainda disparasse balas de canhão, eu, ilha flutuante, contra sólidos continentes. Mas, uma ilha sem um grão-vizir é como um sultanato sem o seu califa; os disparos são aleatórios e desmedidos e o coração, vazio e sem um senhor, é território estéril, donde brotam flores que, por frágeis, transmutam-se em soldados violáceos a travar quixotescas batalhas.

No entanto, cada disparo solitário de canhão é um grito abortado, que morre na garganta antes de chegar ao palato, inflar-se ao vento e ganhar a liberdade das palavras. E todo grito emudecido e áspero é o som incontido de um temor; pois a ilha teme a glória e a maldição de poder-se governar no anonimato das memórias, sem um náufrago que aporte em suas praias, monte ali o seu palácio e, na indolência do ocaso, quando o céu laranja parece ser ainda maior e mais infinito do que a própria vida, vá visitar a estufa onde a flor aguarda pela redenção de um beijo, o primeiro ruflar silencioso das asas de um colibri-vizir.

Ainda sou ilha. Mas, “ilha” não é apenas um pedaço de terra cercado de água. “Ilha” é qualquer coisa que se desprendeu de qualquer continente. Assim, um garoto tímido, abandonado pelos amigos no recreio, é uma ilha; um velho, que esperou a visita dos netos para o Natal em que ninguém compareceu, é uma ilha; até um sujeito, assoviando leve e bem-humorado, numa rua cheia de trânsito e stress, é uma ilha; tudo em nosso peito, que não morreu, cercado por tudo o que mataram, é uma ilha. E toda ilha é verde. Uma folha de plátano emaciada, tombando da árvore ao solo, é uma ilha cercada de vento. Até a lágrima é uma ilha, deslizando no oceano da face.

Ocorre que, nos raros momentos em que soldados ilhados baixam a guarda e avistam ao longe a presença de outra ilha, o temor dos gritos abortados, dos sonhos desconhecidos ou sepultados e da solidão parece agigantar-se no coração da terra e crescer para transbordar, para implodir, para inexistir. Dessa erupção formam-se arquipélagos; e as violetas, de velhas, virgens e violáceas, tornam-se frescas, desbravadas e brandas. Ah, mas a junção de ilhas não é fácil, nem costumeira... E muito embora seja o desejo mais íntimo de toda ilha, é nos gritos ocos, roucos e surdos da solidão, ainda que a dois, a três ou aos milhares, que muitos homens e mulheres hão de continuar disparando seus canhões inutilmente, sem a segurança e o aval de um vizir e sem o beijo indelével de um colibri.

Sim, ainda sou ilha. Mas meus territórios são agora mais vastos e meus olhos, outrora velados, hoje vislumbram os contornos dos domínios meus com mais nitidez. E minha ilha, hoje maior em extensão, propriedade e significado, possui um vizir a regar-me as violetas num intervalo de tempo que, por intermitente, estende-se ao infinito, tal qual o céu no ocaso, a inspiração dos poetas e o querer dos amantes.

2 comentários:

  1. Anônimo21.5.11

    Roberta, li o 'β' da Martha. Me deu uma vontade de deixar um recadinho ou talvez de te dar um presente, principalmente por seu comentário. Eu tô cada vez mais apaixonado com a vida simples e plena que Deus tem me proporcionado, mas sabendo de sua resistência... (e pra falar a verdade, nem tenho tantas censuras a vc: Jesus tem mesmo sido mostrado como mais um "cara legal" que pisou essa terra e não como o DEUS VIVO) Então deixo este presentinho (que não chega ao pó do que eu realmente queria te dizer): o link da principal revista cultural brasileira, a Dicta e Contradicta. Este artigo é uma verdadeira aula sobre Machado de Assis. Poucos ou nenhum outro foi capaz de perscrutar deste modo a alma e evolução de nosso maior escritor. Clique em: http://www.dicta.com.br/os-espelhos-secretos/
    Sua amiga de sangue é mesmo a Martha, mas saiba que eu ficarei muito muito feliz no dia em que eu puder te chamar de minha irmã! Um beijão nocê, queridona.

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  2. Obrigada, meu amigo. E olhe que já o considero meu irmão, mesmo que a minha vida ainda não seja plena e simples como a sua. Beijão procê, queridão!

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