26 de maio de 2011

mergulho


Inspirado por uma elucubração de Renato Pontual.

Olhava para o fundo da piscina, a água cristalina refletindo o sol do final da tarde, como se ali houvesse uma centena de minúsculos diamantes. Azulejos brancos, antigos, adornados com ramos de flores azuis, delimitavam aquele espelho d'água, que bem poderia ser uma lagoa ou o mar. No entanto, preferia espaços exíguos, onde não se perderia dentro de si mesma. A vastidão amargava em sua boca o gosto do infinito, do qual insistia em fugir.

Estava bem próxima à borda, os dedos dos pés, se os esticasse o suficiente, poderiam tocar a água. Seus olhos estavam semi-cerrados pela luz e pelo cansaço. Olhou para o céu. O ocaso, escreviam os boêmios, era vermelho, mas tal expressionismo funcionava apenas na poesia. A abóbada que cobria a cidade, o clube e a piscina era de nuvens róseas, com bordas cor de laranja, por onde vazavam os raios de sol que lhe tocavam a face. Apreciava aquela carícia. Prendeu os cabelos num coque firme, cobriu-os com a toca emborrachada dos nadadores e se manteve ali, de pé à beira d'água, o rosto voltado para o sol até que já não mais lhe pudesse sentir o calor. Era o fim das coisas, o fim das horas, o fim do dia; e até o sol, em sua hora, ia-se embora. 

Permaneceu. Não havia outros associados nem visitantes no clube e, em poucos minutos, o zelador fecharia as portas, não sem antes tocá-la de leve no ombro, como a acordá-la do mais remoto dos sonos, e dizer: "Hora de fechar, dona". Não se importaria, assim como não se importou nas últimas vezes. Todos iam-se antes dela, que ficava até o soar final do gongo, até a última luz se apagar.

Suspirou fundo. Sentiu de longe, carregado num balão por uma brisa suave, o aroma de temperos que as mães escolhiam para preparar o jantar, enquanto esperavam por seus filhos e homens. Ela jamais usava temperos e não comprava panelas, pratos, talheres e copos pois não possuía filhos nem um homem por quem esperar e para quem cozinhar. Baixou a cabeça e fixou novamente os olhos na água. Estava escura agora e parecia-lhe fria e densa, quase plástica.

Mergulhou o pé direito. Estava mais do que fria; aquela água era gelo a derreter. De repente lembrou-se que o universo é regido por algo denominado tempo e que este divide-se em anos, meses, dias, horas e estações. Era junho e o vento tocava a parte nua de sua costas, que vazava pelo maiô, num sopro áspero, de lhe arrepiar a pele. Sorriu um riso contido e torto; não era mera coincidência que poucos tivessem vindo ao clube naquela tarde. As pessoas tinham casas, famílias e jantares para preparar, atividades em nada semelhantes à exposição ao mau tempo à beira da piscina de um clube.

Ela era diferente. Anacrônica. Preferia a quietude do inverno, a solidão da água crispada, o som dos bem-te-vis nas amendoeiras e o temor paralisante de mergulhar naquele gelo líquido. Tocou o peito com a mão direita, os dedos arroxeados e endurecidos por causa do frio. Seu coração pulsava, mas não tão rapidamente como seria o caso de alguém que sentisse medo. As pessoas se habituam às melhores e às piores condições de vida. Natural ou forçadamente. Habituam-se até ao pavor. E acostumam-se com tal morosidade e torpor à comodidade e à adversidade que acreditam mesmo jamais ter vivido de maneira diferente. Acima de tudo, ela tinha pavor dos costumes.

Abaixou-se de joelhos e mergulhou as mãos. O gelo era cortante. Deixou-as submersas, revirando-as feito serpentes marinhas. Olhava as próprias mãos com uma sensação de estranhamento, como se não fossem suas, mas de outra mulher, em outro tempo, num outro planeta. Afundou um pouco mais, até a água lhe cobrir à altura dos cotovelos. O frio subiu-lhe pelos braços, alcançou o centro do seu cérebro e, em seguida, desceu-lhe espinha abaixo, envolvendo o seu corpo numa névoa espessa, glacial. Quando perdeu o tato e constatou que os dedos estavam completamente enrugados, rijos e sem cor, retirou os braços. O vento frio tocou-a ali e a sensação do ar roubando-lhe o calor do corpo para secar a pele foi insuportável.

Levantou-se. Estava acostumada demais com o pavor para mergulhar. O medo embaça a visão e a dela há muito havia se fechado para o mundo. Ouviu de longe uma coruja chilrear. Arrepiou-se inteira com aquele piado de morte, um augúrio de que talvez ela jamais viesse a mergulhar, a abrir os olhos e a viver novamente. Sentiu um movimento à sua esquerda. Era o zelador que caminhava em sua direção, ombros curvados e passos constrangidos. Mais uma vez ele teria que lhe pedir para sair, porque era chegada a hora de fechar o clube. Mais uma vez ela o acompanharia até a saída, enrolando-se em seu roupão amarelado, fingindo para si mesma que não se importava em ter passado uma tarde inteira à beira da piscina sem mergulhar. Mais uma vez. E àquela vergonha, ao sentimento de derrota de acompanhar o zelador com a pele seca e, ainda assim, fria, a isso ela não poderia se acostumar.

Ignorou o zelador, que já distava poucos passos dela. Inspirou fundo e reteve o ar nos pulmões. Não pensou. Nenhuma imagem lhe veio à mente, nada do presente, nem do passado. Naquele momento ela era não mais que um corpo desconhecido e sem consciência, em busca de si mesma. Deu um salto e jogou-se na água com os joelhos dobrados na altura do tórax, um feto de volta ao útero. A piscina era a sua mãe; a água era a sua mãe; o mundo eram os seus pais. Por alguns segundos, apenas o silêncio. E as bolhas de ar que lhe escapam aos lábios. Então ela sentiu o gelo, a friagem entrar por cada poro seu e fazê-la sentir-se menos fria por dentro. Quando voltou à tona, seus olhos estavam completamente abertos, seu corpo estava vivo e ela, plenamente desperta.       

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